Assustados ao verem sintomas como "necrólise epidérmica tóxica", "hemorragia gastrintestinal" e "nefrite intersticial" serem descritos como possíveis efeitos de alguma vacina ou medicamento, alguns pais estão optando por uma abordagem mais "natural" para prevenir os filhos de doenças. Esses grupos citam o livre arbítrio para escolher o que consideram melhor e pregam que a própria vacinação, feita atualmente, seria a causa de muitas enfermidades.
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Os médicos afirmam que, ao não seguirem o calendário de vacinação definido pelo Ministério da Saúde – concentrado em crianças até quatro anos, mas prevendo doses para a vida toda –, esses pais podem estar colocando em jogo um trabalho histórico de prevenção de doenças no país e no mundo. Adotando recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o calendário nacional, citado como um programa público de qualidade, é tido como responsável pelo controle de doenças como poliomielite, difteria, rubéola e tétano.
Na Europa, um surto de sarampo foi registrado em pelo menos 14 países e contaminou milhares de pessoas desde o início do ano. O contágio em massa de uma doença até então considerada praticamente controlada foi em parte atribuído por autoridades de saúde a movimentos "antivacinistas". A incidência de sarampo foi confirmada em alguns dos países mais ricos do continente, como Alemanha, França, Itália e Suíça.
Só na Romênia, foram 3,4 mil casos desde 2016, com 17 mortes. Mais do que uma decisão individual ou algo que cabe aos pais definirem se querem ou não dar aos filhos, a vacinação é considerada questão de saúde pública. Uma queda acentuada, ainda que gradual, na cobertura vacinal poderia significar que males como o sarampo passassem a circular novamente entre as crianças no mundo todo – algo que, defendem as autoridades em saúde, poderia ser evitado com uma simples injeção.
"O Programa Nacional de Imunizações [...] propiciou resultados importantes como, por exemplo, a erradicação da varíola, o controle da poliomielite e a eliminação do sarampo e da rubéola congênita como problemas de saúde pública. Para garantir estes últimos avanços e conquistar resultados semelhantes contra doenças cujas vacinas foram recentemente incluídas no calendário nacional, é essencial a manutenção (da vacinação)", afirmou, em nota sobre a atuação dos "grupos antivacina", o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).
Sem controle, doenças podem voltar a aparecer
Na primeira campanha nacional de vacinação, em 1904, a cidade do Rio de Janeiro virou quase um campo de batalha. Devido a uma lei que tornava obrigatória a vacina contra a varíola, milhares de pessoas se revoltaram, incorrendo em uma insurreição popular que ficaria conhecida como a Revolta da Vacina.
A Cidade Maravilhosa era, então, um antro de doenças: peste bubônica, febre amarela e varíola assolavam a população e afastavam quaisquer visitantes de fora. Executado "a qualquer preço", o projeto sanitário do médico Oswaldo Cruz, feito com métodos autoritários e vacinação à força, contribuiu para a revolta em uma época em que não se sabia a importância e os efeitos da imunização. Ainda que por vias tortas, o método deu certo. No ano do levante, cerca de 3,5 mil pessoas morreram de varíola. Dois anos depois, o total caiu para nove.
– A vacinação é o ato de saúde pública com maior impacto na sociedade – diz o pediatra Benjamin Roitman, coordenador da Equipe de Vigilância em Doenças Transmissíveis da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre.
A varíola é hoje considerada erradicada no mundo. Em 1973, o Brasil recebeu certificação internacional da erradicação da doença, e em 1980 teve fim a obrigatoriedade da vacinação contra esse mal no país. Mas ver tomar forma uma versão moderna da Revolta da Vacina, com potencial de trazer problemas semelhantes novamente à tona é algo que tem preocupado as autoridades em saúde.
Há muitas doenças que ainda circulam pelo mundo, mas em diversos países, como o Brasil, estão em uma fase considerada controlada. É o caso de coqueluche, tuberculose e sarampo: ainda se ouvem casos de pessoas que apresentam seus sintomas, mas elas já não se espalham mais indiscriminadamente. Quando isso ocorre, geralmente estão envolvidos no problema questões de saneamento básico, fatores ambientais ou o vaivém entre países.
– Algumas correntes mais holísticas ou ditas alternativas têm a visão, às vezes até apoiadas por médicos, de que a vacina não é necessária – diz Marilina Bercini, diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS) da Secretaria Estadual de Saúde.
– Só que essas pessoas vivem em uma chamada "imunidade de rebanho": quando você tem um grande grupo vacinado, aqueles que não foram imunizados acabam se protegendo – complementa Roitman.
Seguidores online
Atento à atuação de grupos de pais contra a vacinação, o diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, João Paulo Toledo, avalia que a situação acende um alerta no país. Dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), o governo observa queda no índice de cobertura de alguns imunizantes. No ano passado, por exemplo, a cobertura da segunda dose da vacina tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola, teve adesão de apenas 76,7% do público-alvo.
Quem prega que os possíveis males causados por vacinas justificam a falta de imunização, ou que deixar o próprio corpo combater uma doença é melhor do que se vacinar, geralmente encontra coro em grupos reunidos online. Ainda que a decisão seja individual, o objetivo da reunião coletiva, por meio das redes sociais, é também "evangelizar" outros pais e convencê-los a não recorrer à medicina tradicional para prevenir doenças.
Há alguns anos, esses movimentos ganharam força depois que um artigo foi publicado em 1998 na revista científica The Lancet. De autoria do médico britânico Andrew Wakefield, o texto relacionou a vacina tríplice viral a casos de autismo. O estudo virou bandeira para a defesa da não imunização. Entretanto, em 2010, foi descoberto que Wakefield havia forjado os dados da pesquisa, o que resultou na sua perda de registro para atuar e em um processo criminal.
Alheios a isso, há pais que compartilham notícias publicadas em blogs, a maioria de outros países e em inglês, sobre as supostas reações às vacinas – citando o autismo como uma delas. Em cinco grupos no Facebook, há mais de 13,2 mil pessoas lendo e publicando estratégias para "garantir" a imunização das crianças de forma alternativa e recomendando que a decisão não seja comunicada a médicos ou autoridades sanitárias.
– Os movimentos antivacina existem no nosso meio, mas felizmente não observamos, até o momento, que tenham levado a algum grande impacto nas coberturas vacinais no Brasil – relata Juarez Cunha, médico do Comitê de Infectologia e Cuidados Primários da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul.
Mãe de uma menina de três anos, Suzana (nome fictício) conta que ficou sabendo das possíveis reações adversas ainda durante a gravidez. Ela cumpriu, até a vida adulta, com as etapas de vacinação recomendadas pelo Ministério da Saúde em seu próprio caso, mas decidiu interromper futuras imunizações para si e abdicar completamente das vacinas para a filha. Não tendo contado a decisão ao ex-marido e aos médicos, a moradora de Alvorada prefere manter o anonimato.
– Se dizem que tem risco de a minha filha desenvolver autismo, por que vou dar vacina para ela? Enquanto eu puder evitar, não dou – diz a mãe.
No Brasil, direito assegurado às crianças
Ainda que não seja mais imposta no Brasil, como ocorreu em criticados métodos no século passado, a vacinação é um direito assegurado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), Carlos Kremer, explica que, nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias, a vacinação de crianças é obrigatória:
– A vacinação é uma medida de proteção preventiva em que o coletivo prepondera sobre o individual, salvo situações especiais de não recomendação médica em face de algum risco à saúde, como alergias.
Ele explica que, em caso de negativa dos pais ou omissão, pode ser aplicada uma medida de proteção pelo juiz. Segundo o advogado, o não provimento da saúde dos filhos pelos responsáveis legais, o que inclui a imunização, pode repercutir, em último caso, na perda da guarda.
Benefícios maiores do que os riscos
Qualquer vacina pode causar efeitos colaterais. É com essa frase em destaque que começa uma página dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC) dedicada a tirar as principais dúvidas sobre a vacinação – e não é raro, seja nos Estados Unidos, no Brasil ou em outros países, que pessoas questionem a eficácia, a necessidade e os possíveis malefícios da vacinação.
– Um aspecto importante é que esses eventos graves e raros, quando acontecem, são infinitamente menos importantes do que as complicações que a doença natural pode causar – afirma o médico Juarez Cunha.
Ao listar eventuais efeitos como dor de cabeça, diarreia e febre (mais comuns) e até reações alérgicas graves, desmaio e dano cerebral (bem mais raros), o órgão de saúde americano destaca que, independentemente de a escolha dos pais para as crianças ser ou não recomendada, é importante que as pessoas que convivam com alguém que não seja vacinado sejam informados sobre a decisão. Em caso de necessidade médica, será fundamental ressaltar que não houve imunização para um atendimento adequado.
Efeito colateral ao sucesso das doses
Para médicos, os movimentos antivacina seriam uma espécie de efeito colateral do próprio sucesso das doses. Com sua eficácia e a consequente percepção mais baixa de doenças antes comuns, ficaria aberto o caminho para que se diga que esses males não existem, ou que são fabricados.
– Uma das dificuldades que se observa com as vacinas é que elas são vítimas do próprio sucesso. Exemplo: sem vacina contra a poliomielite, hoje seriam 10 milhões de pessoas com paralisia. A vacina eliminou a doença no Brasil, nosso último caso da doença foi em 1989. As pessoas não conhecem poliomielite, nunca viram, então pensam: por que vacinar para uma doença que não existe? – diz Cunha.
A resposta, como para tantas outras questões da medicina, estaria na frase "é melhor prevenir do que remediar". Para a diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde do Rio Grande do Sul, Marilina Bercini, os malefícios mais comuns da imunização pouco representariam diante da importância de manter a vacinação coletiva em dia:
– Esse fato de as doenças terem diminuído muito também faz com que as pessoas, principalmente os pais jovens, não tenham essa ideia de que essas doenças ainda existem. Algumas ainda eram muito presentes até recentemente, mas agora têm sido controladas. Isso não quer dizer que podemos interromper a vacinação. Muito pelo contrário.
"Deveríamos utilizar as vacinas com prudência", diz médica norte-americana
Especialista em medicina interna, a norte-americana Meryl Nass é uma das mais proeminentes vozes em oposição à necessidade de vacinar toda a população. Com experiência no tratamento de pacientes com Síndrome da Guerra do Golfo e males relacionados à vacina contra o antraz, a médica critica a imunização em massa e, apesar de apontar que faltam dados quanto a efeitos negativos das vacinas, defende que todos deveriam poder escolher se querem ou não se prevenir de algumas doenças. Por e-mail, ela falou a ZH:
As vacinas são nocivas? O que tornaria sua aplicação um problema?
Em primeiro lugar, as vacinas são um subconjunto de medicamentos e deveriam ser pensadas assim, como remédios. E não dizemos que medicamentos, como uma categoria, são ruins ou bons. Em vez disso, usamos um quando é preciso, quando é o certo a se fazer em cada caso específico.
Uma abordagem mais controlada do uso de vacinas seria mais indicada?
Na minha modesta opinião, é preciso equilibrar os riscos e os benefícios, e isso deveria ser feito para cada indivíduo. Isso exige que você conheça os riscos e os benefícios de cada vacina, mas algumas vezes temos apenas informações limitadas.
A vacinação em massa pode já ser ou acabar se tornando um problema de saúde pública?
Infelizmente, não temos dados precisos o suficiente para saber realmente quais são os efeitos negativos das vacinas a longo prazo, e com que frequência acontecem.
Seria mais saudável deixar o próprio corpo combater as doenças?
Isso varia de pessoa para pessoa.
Há riscos de que pessoas não imunizadas acabem desenvolvendo uma forma mais grave de uma doença e a espalhem não só localmente, mas também para outros países?
Sim, isso é possível com algumas doenças.
Você vê outros médicos, ainda que identifiquem riscos graves relacionados à vacinação, evitando falar abertamente sobre isso?
Depois que o doutor Andrew Wakefield perdeu a licença médica por investigar possíveis ligações entre a vacina tríplice viral e o autismo, em 2010, os discursos relacionados aos efeitos adversos da vacinação esfriaram.
Quais seriam os efeitos de uma nova geração não tão imunizada quanto a atual e as anteriores?
Podemos olhar para diferentes países na Europa e para os Estados Unidos. Algumas nações utilizam apenas cerca de 60% das vacinas que os EUA usam. Enquanto esses países têm alguns casos a mais de sarampo que os EUA, em geral suas populações são mais saudáveis. Penso que deveríamos utilizar as vacinas com prudência, e estudar com cuidado o efeito tanto de adicionar quanto de subtrair vacinas do calendário atual. Atualmente, as crianças norte-americanas recebem cerca de 70 doses de vacinas antes de completarem 19 anos. Nos Estados Unidos, continuamos acrescentando vacinas (algumas vezes as mudamos), mas nunca as retiramos, mesmo quando descobrimos que elas não funcionam bem, como as vacinas contra a gripe.
Poderíamos estar contribuindo para o fortalecimento de doenças que não seriam tão resistentes se não fosse pelas vacinas?
Não tenho uma boa resposta para isso.
Haveria maneiras melhores de lidar com as doenças na população?
Até termos dados mais completos sobre as vacinas, é difícil pesar seus reais benefícios e malefícios. É preciso ser específico quanto a casos específicos de combinação entre doença e vacina. Por exemplo, temos virtualmente zero casos de hepatite B em crianças pequenas cujas mães não têm hepatite B. Recém-nascidos (são 4 milhões por ano nos Estados Unidos) recebem vacina contra a hepatite B no primeiro dia de vida, quando isso não traz benefícios a 3,999 milhões deles. Ao mesmo tempo, porque os recipientes são recém-nascidos, é muito difícil saber se eles foram prejudicados pela vacina, já que o bebê recém nasceu e não sabemos como ele poderia ficar sem a vacina. Na minha opinião, isso é algo ruim.
A vacinação deveria ser tornada opcional?
Nos Estados Unidos, muitas crianças não podem ir à escola sem ter recebido cada vacina. Ainda assim, as regras governamentais de vacinação incluem requerimentos para vacinas contra a influenza e contra hepatite B, cujos benefícios são questionáveis e os riscos podem ser significativos. Na minha opinião, os governos nem sempre tomam decisões razoáveis para a saúde da população. Assim, penso que os pais, que têm muito mais chance de ter o melhor interesse para a saúde de seus filhos do que o governo, deveriam tomar essa decisão.