Lentamente, a água começa a baixar e a revelar a sujeira e a destruição nos bairros da zona sul de Porto Alegre, onde a situação continua complicada. Apesar da diminuição de nível, o Guaíba ainda invade inúmeras casas e avenidas da Capital nesta segunda-feira (20). Geladeiras, brinquedos, garrafas, peixes, pedaços de casas e móveis são alguns dos itens que podem ser vistos ainda boiando ou enlameados e amontoados nas ruas.
No bairro Lami, o Guaíba ainda toma completamente a Avenida Beira-Rio, próximo à Praia do Lami, onde se quebra em ondas. A maioria dos moradores está fora de casa, mas retorna com frequência para verificar a situação de suas residências. Em algumas ruas, como na Sônia Duro, centenas de galhos, bem como freezers e caixas, tomam conta da estrada e calçadas com o recuo da água. Imagens aéreas revelam que a maior parte dos entulhos, entretanto, está represada em áreas não visíveis do bairro.
Ainda que alguns pontos do Lami estejam com luz, o bar de Waldir Gustavo, 74 anos, localizado na mesma rua, está às escuras. A água chegou a invadir o local, atingindo uma altura de dois dedos. Sua casa, porém, mais próxima ao Guaíba, foi totalmente inundada até a altura do peito. As enchentes do ano passado já haviam afetado a casa e o bar – que, por esse motivo, mudou para o novo endereço.
— Agora foi devastador, não teve ninguém que escapou. Ali mais na beira foi tudo (destruído). A minha casa continua uns pedaços — conta.
Waldir não conseguiu remover nada da casa, tendo apenas levantado os móveis, acreditando que a água não subiria tanto. No bar, os danos foram reduzidos: perdeu uma geladeira. Agora, nos fundos do estabelecimento, uma cama improvisada sobre um sofá é seu novo lar. Ele afirma que voltar será difícil, mas não pretende ir embora, a não ser que não encontre outra saída.
— É um sentimento de perda, muita coisa — afirma. — É desanimador, mas fazer o quê, tem que continuar a vida, vida que segue. Tragédia acontece em tudo que é lugar.
O serralheiro Paulo Roberto da Silva, 57, passou na mesma rua para tentar ver a situação de sua casa, que fica à beira do Guaíba e está inundada com 1m de água. Paulo, que está alojado na casa de um amigo, tem medo de novos roubos – muitos aconteceram na região no início da tragédia, conta. Ele estima que cerca de 50 casas foram destruídas, e outras três continuam sob risco de desabamento.
— Daqui até a igreja foi tudo varrido. Ficou tipo um navio afundado. Tragédia total — relata.
Quando a água baixar, o serralheiro pretende voltar para ver o que sobrou da residência e tentar recuperá-la. Os dois moradores relatam, no entanto, que o rio está instável, tendo tornado a subir, apesar da visível diminuição de meia quadra, perceptível também nas paredes dos imóveis.
— A pergunta é: e ir para onde? — acrescenta Waldir.
Casas balançam no Guarujá
No Guarujá, parte da população também segue alojada na casa de parentes e amigos ou em imóveis alugados. Com a redução do nível da água, alguns já começam a retornar para tentar limpar as residências, tomadas por lama e detritos. A família da advogada e funcionária pública Carla Soveral, 61, que alugou um apartamento em outro local, removeu, na manhã desta segunda, um dos carros afetados pela enchente. Para tirá-lo da garagem, foi preciso conduzi-lo pela rua ainda alagada em frente à casa.
Na casa, o nível da água alcançou 75cm. Além da garagem, o Guaíba invadiu o gabinete, a área de serviço e a cozinha, com móveis planejados. A família estima que o prejuízo mínimo será de R$ 150 mil para refazer a casa. A advogada reclama que o bairro tem sido esquecido pela administração pública.
— Nunca acreditei, eu moro aqui desde os 18 anos, que a água pudesse chegar nesse ponto — conta. — É um fenômeno climático, mas tem a responsabilidade do ser humano, tem o descarte inadequado de lixo.
A reportagem também visitou, de barco, outros pontos ainda submersos no bairro, com o auxílio de Paulo Ricardo Parulski, 35, morador do Guarujá. O marceneiro utiliza sua embarcação para ajudar a transportar moradores que queiram ir até suas residências e para fornecer ração a pets que ficaram.
Ao navegar com o barco à beira do Guaíba, foi possível avistar casas destruídas pela enchente – mais de 10 tiveram a estrutura parcial ou completamente comprometida, segundo os moradores. Próximo à Avenida Orleans, a estrutura que restou de uma casa de madeira chacoalhava e rangia. No trajeto pela Avenida Guaíba, era possível ver vegetações, garrafas e móveis boiando, além de carros que ficaram submersos.
Esposa de Paulo Ricardo, Amanda Oliveira, 27, auxiliar jurídico, tem tentado limpar a casa da família. Na residência, a água alcançou a cintura, e, na garagem, ficou no nível do peito. Nesta segunda, entretanto, depois de uma limpeza inicial, Amanda viu a água tornar a subir 10cm. O casal não sabe mais se quer permanecer na região.
— Agora baixou bastante, mas a gente teve muitas perdas, móveis sob medidas se foram, máquinas ficaram embaixo d’água, material de cliente do meu marido. O que foi possível retirar, retiramos. A gente tentou se precaver ao máximo, subimos o que deu, mas veio muita onda. Um móvel bateu com a força da água e abriu a parede — relata Amanda.
Moradores reivindicam luz
Na Rua Guenoas, os esgotos transbordam e se misturam à água da enchente, deixando um odor desagradável. Em alguns locais, a água já retrocedeu cerca de duas quadras, expondo a lama nas ruas e residências.
Ainda que haja água potável no bairro, na região, há moradores no escuro há 16 dias, mesmo em áreas onde não há enchente, em função do perigo de descargas elétricas em regiões alagadas. Por esse motivo, a população reivindica o seccionamento da rede para retomar a energia em pontos onde a medida é possível.
— A gente tem crianças pequenas, filho autista, então é bem complicado estar sem luz e internet. Claro que tem gente muito pior, a gente sabe disso, mas ao mesmo tempo, é bem desumano ficar tanto tempo sem luz — afirma Patrícia Strauss, 47, advogada.
Além dos transtornos causados pela enchente, o medo de saques é uma constante na Zona Sul – agravado pela falta de eletricidade, sobretudo à noite. A reportagem avistou a Guarda Municipal no bairro Guarujá, mas há relatos de roubos no bairro. Em função disso, os moradores têm se revezado para realizar rondas noturnas ou, então, contratam um serviço privado de segurança.
— A gente tem que dormir com um olho aberto e um fechado — afirma Karine Borges, 46, enfermeira, que ficou em sua casa, onde a água não chegou a atingir, para garantir a segurança.