Neste momento, o Rio Grande do Sul contabiliza mais de meio milhão de migrantes climáticos. Em balanço divulgado na quinta-feira (16) pela Defesa Civil do Estado, 538.164 pessoas se encontravam hospedadas na casa de amigos e familiares e outras 77.199 estavam em abrigos, totalizando mais de 615 mil fora de suas residências.
Popularmente chamados de “refugiados climáticos”, os atingidos por desastres naturais como ciclones, deslizamentos, inundações e tremores de terra não são, legalmente falando, refugiados de fato, por dois motivos: o primeiro é que o refúgio só é concedido quando envolve uma mudança de país; o segundo é que, na Convenção de Genebra, de 1951, que inaugurou o Estatuto dos Refugiados, se prevê refúgio especificamente para casos em que há “fundado temor de perseguição por motivo de guerra, de raça, de nacionalidade, de etnia e questões políticas”, sem a citação de situações envolvendo o clima.
— Temos outro documento na América Latina que é a Declaração de Cartagena (de 1984), que ampliou o conceito, colocando, além do fundado temor de perseguição, a previsão de refúgio também para a grave e generalizada violação de direitos humanos e a ordem pública — explica Patrícia Noschang, coordenadora do Balcão do Migrante e Refugiado/Cátedra Sergio Vieira de Mello da UPF.
É o caso, por exemplo, dos milhares de venezuelanos que receberam o título de refugiados no Brasil nos últimos anos. Apesar de não haver guerra na Venezuela, o Estado brasileiro entendeu que essas pessoas passavam por uma situação de grave violação de direitos humanos.
Se uma vertente enxerga a inclusão da questão climática dentro da pauta de migrações como algo que pode enfraquecer as proteções envolvidas na concessão de refúgios, outra parte dos pesquisadores e pessoas que trabalham com migrantes defende que deslocados por desastres ambientais sejam integrados ao conceito. O assunto tem sido debatido em etapas regionais preparatórias da 2ª Conferência Estadual de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar), prevista para novembro.
A migração ambiental ocorre em duas circunstâncias: quando uma pessoa precisa sair de onde mora devido a um desastre natural súbito ou devido a um processo progressivo de degradação ambiental, como é o caso das mudanças climáticas.
— Se tudo o que tu tinha foi destruído, vai haver, com certeza, um deslocamento forçado para outras regiões, e podemos falar até em permanente, porque, para aquele local, muitos não voltam mais. Pode ser que a cidade mude de lugar, mas para a moradia, realmente, muitos não voltam — sintetiza Patrícia.
No Brasil, o refugiado recebe condições, de modo geral, igualitárias às de cidadãos brasileiros, com algumas exceções, como o direito ao voto. Entretanto, como não há refúgio legal para vítimas de desastres ambientais, alguns instrumentos têm sido criados no lugar. Em nível mundial, o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular estabelecido em 2018 e vinculado à ONU, conta com dispositivos que preveem a migração devido a fatores como a mudança climática, mas não estabelece normativas, por exemplo, para o acolhimento dessas pessoas. O Brasil assinou esse documento, mas deixou de participar de iniciativas para a sua implementação em 2019, no governo Bolsonaro, retomando as atividades em janeiro de 2023.
Apesar de o migrante climático não ser protegido por nenhuma legislação, o governo brasileiro publicou, em situações pontuais, portarias específicas de acolhimentos de pessoas que se enquadravam nesses casos. Foi o que aconteceu em 2018, quando o Haiti sofreu um terremoto, e em 2023, quando o mesmo ocorreu na Turquia.
Deslocados internos
São considerados deslocados internos, conforme os princípios orientadores relativos aos Deslocados Internos da ONU, de 1998, “pessoas ou grupos forçados ou obrigadas a fugir ou abandonar as suas casas ou seus locais de residência habituais” devido a “conflitos armados, situações de violência generalizada, violações dos direitos humanos ou calamidades humanas ou naturais”.
— São pessoas forçadas ao deslocamento, mas que continuam dentro das fronteiras de seus Estados — explica Andrea Pacífico, professora da UEPB e coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Deslocados Ambientais.
O número de deslocados internos — que permanecem no seu país, mas precisam morar em outro lugar — no mundo todo atingiu 71,1 milhões em 2022, o que representa uma alta de 20% em relação a 2021. Os dados são do relatório anual de 2023 do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (Idmc).
Nas Américas, o Brasil teve a maior quantidade de deslocados internos, sendo mais de 5 mil deles por conflitos por terra e 708 mil por desastres naturais, em especial chuvas e deslizamentos de terras. A quantidade de afetados por condições ambientais foi a maior em uma década. O Banco Mundial projeta que até 216 milhões de pessoas se tornem migrantes climáticos internos até 2050, se não forem realizadas ações combinadas.
Segundo a pesquisadora da UEPB, algumas das consequências do deslocamento interno são violações de direitos humanos, como o alto custo com habitação, a perda de renda, a dificuldade no acesso à educação, à segurança, à vida social e cultural, o aumento das desigualdades e dos conflitos, entre outros. Diante das mudanças climáticas, o crescimento de deslocados internos acontece, em especial, em países menos desenvolvidos, cuja agricultura é fonte básica de subsistência, como o Paquistão, diferentes países da África e o sertão do nordeste do Brasil, com secas recorrentes.
No país, três aspectos fazem com que Andrea identifique descaso do poder público e invisibilidade com os deslocados internos:
— Essa categoria vulnerável de pessoas é, em primeiro lugar, chamada de migrante, quando migrante é aquele que sai do seu local de origem voluntariamente, enquanto o deslocado é forçado a sair ou fugir. Em segundo, as normas brasileiras não reconhecem a categoria de deslocado, mas apenas de removidos, desalojados, desabrigados. Em terceiro, o Brasil não recepcionou em seu sistema jurídico a Declaração de Cartagena, que expressa preocupação pela situação das pessoas deslocadas em seu próprio país, para protegê-los e assisti-los, contribuindo para aliviar a angustiosa situação em que estão.
Se são invisibilizados, os deslocados climáticos não são exatamente novidade no Brasil. Claudio Angelo, coordenador de Comunicação e Política Climática do Observatório do Clima, lembra do êxodo rural ocorrido no Nordeste nos anos 1970, decorrente de fortes secas. Mesmo assim, os dados relativos a esse tipo de migração são pouco consistentes, em sua visão.
— Ninguém mapeia, ninguém sabe quantos são, ninguém sabe muita coisa, e não é só no Brasil: os números no mundo são incertos, porque não há uma definição legal de refugiado climático, e isso é importante. No Rio Grande do Sul, teremos situações semelhantes ao Nordeste dos anos 1970, em que as pessoas vão se mudar e não voltam para o lugar delas nunca — diz o coordenador do Observatório do Clima.
Angelo cita o exemplo de Muçum, por onde o rio passou por cima de parte do município tanto em setembro do ano passado quanto agora:
— Esta não foi a última vez que Muçum ficou debaixo d’água. Ou você faz obras mil para garantir resiliência, constrói em um lugar mais alto, aumenta a drenagem, ou desocupa e migra.
Ainda que a migração aconteça no próprio país, o movimento dessas pessoas se mantém desafiador, uma vez que demanda, em novos lugares, a oferta de acolhimento e serviço para uma população acrescida dos deslocados climáticos.
Projeto de lei
Apesar de ser campeão continental de deslocados internos, o Brasil não possui legislação própria que trate do assunto. Agora, com a tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul, isso pode mudar: na semana passada, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) protocolou um projeto de lei que cria uma Política Nacional para Deslocados ou Refugiados Climáticos.
A proposta prevê instrumentos econômicos, financeiros e socioambientais que permitam auxílio emergencial e apoio contínuo às populações atingidas por eventos climáticos extremos, além de adotar estratégias integradas e intersetoriais de apoio e reconstrução das condições de vida, especialmente quanto à moradia, à educação e à empregabilidade. Entre medidas previstas, estão o fomento de tecnologias sociais e pesquisas que visam a prevenção desse deslocamento com medidas de mitigação e adaptação, a identificação das populações vulneráveis à migração climática e a implantação de centros de proteção aos deslocados climáticos e ambientais.
O texto da proposta é comemorado por Andrea, que aponta que, entre deslocados internos, falta assistência jurídica, social e psicológica, abrigamento, alimentação, medicamentos e vestuários, no período emergencial, e, em um segundo momento, apoio na reintegração às atividades de rotina, com acesso à habitação, educação, saúde, apoio psicológico e reunião familiar.
— O Brasil precisa criar um plano nacional e planos estaduais e locais, com o fim de coletar e disseminar dados sobre deslocados internos, criar mecanismos para implementar leis e políticas efetivas, envolver-se ativamente nos fóruns regionais e internacionais, implementar uma abordagem integrada com setores como transporte, habitação, saúde e meio ambiente, financiar mais pesquisas sobre deslocados ambientais e climáticos e capacitar a população local e outros atores envolvidos — defende a docente da UEPB.
Andrea destaca, ainda, a necessidade de ouvir os próprios deslocados durante a elaboração desses planos, “que devem, necessariamente, ser ouvidos na criação de leis e políticas de interesse deles”.