Para uma cidade que foi estabelecida e que se desenvolveu às margens de um rio, a atividade das águas normalmente é sinônimo de progresso. Não foi esse o caso nesta última semana em São Leopoldo, que, a menos de três meses de completar 200 anos, se vê lutando para superar a maior tragédia de sua história.
Fundada em 1824, São Leopoldo é considerada o berço da imigração alemã ao Brasil, relação que completa dois séculos no próximo 25 de julho. Em razão do alto volume de chuva que atinge o Estado desde a última semana, o Rio dos Sinos, histórico aliado do município, superou a marca de oito metros, reforçando o alagamento de boa parte do centro e das zonas norte, leste e oeste da cidade. A prefeitura estima que por volta de 40 mil casas foram diretamente atingidas pela enchente, desalojando aproximadamente 180 mil dos 217 mil habitantes, cerca de 83% do total.
— É a maior tragédia da história do município. Agora que vamos completar 200 anos, parece até que voltamos a 1824, pois vamos ter um grande trabalho de recuperação e reconstrução pela frente — destaca o prefeito Ary Vanazzi, que além de ter precisado mudar provisoriamente a sede da prefeitura — hoje em uma unidade da companhia de saneamento do município —, também teve a própria casa alagada.
Nesta quarta-feira (8), uma parte significativa do município continuava embaixo d'água. Barcos com voluntários e agentes de segurança pública seguem saindo ao longo de todo o dia de um ponto próximo ao Carrefour, no Centro, para continuar com os resgates ou para levar mantimentos à minoria que resistiu a sair de casa.
Além dos que conseguiram alojamento em casas de parentes e amigos, muitas vezes fora do município, cerca de 12 mil pessoas foram acolhidas nos 70 abrigos montados na cidade. O maior deles fica na Unisinos, que recebe hoje aproximadamente 2 mil pessoas e cem animais de estimação.
— Vim pra cá no sábado, saindo já com a água no joelho. Perdi absolutamente tudo que eu tinha em casa, consegui salvar apenas meus documentos e a roupa do corpo. As crianças choravam muito, nunca tinham visto nada parecido com isso. Na verdade, nem eu — afirma suspirando Iracema Trindade da Luz, 49 anos, que está abrigada na Unisinos com o marido e três filhos.
— A gente nunca acha que vai acontecer com a gente, foi tudo muito rápido, parecia um filme. Quando a gente viu onde a água já estava deu um desespero muito grande — complementa Jefferson Capoá, 29 anos, que também está com a esposa e os três filhos no abrigo.
Os acolhidos na universidade estão alojados no ginásio, e dormem em colchões e tapumes dispostos nas quadras de esporte. No local, são servidas quatro refeições por dia, e também há enfermaria — que realiza cerca de 75 atendimentos a cada seis horas —, farmácia, áreas de lazer para crianças e serviços como assistência psicológica, mantidos principalmente por doações ou recursos do município, e organizados por servidores da prefeitura, funcionários da Unisinos e mais voluntários solidários, como a estudante de medicina Maria Rita Marcon, 25 anos.
Quando a gente viu onde a água já estava deu um desespero muito grande.
JEFFERSON CAPOÁ
Morador
— Sinto como se fosse um dever estar aqui — reforça Maria.
São Leopoldo fica a cerca de apenas 40 quilômetros de Porto Alegre, mas o deslocamento à cidade desde a Capital tem levado entre quatro e cinco horas nos últimos dias, em razão dos estragos causados pela chuva nas rodovias gaúchas. Uma das principais cidades do Vale do Sinos, o município é o nono mais populoso do Rio Grande do Sul, e tem o sétimo maior PIB do Estado, cerca de R$ 10,9 bilhões.
Com uma parte significativa do município ainda alagada, e cerca de 45 mil pontos sem energia elétrica, uma boa parcela do comércio da cidade ainda está fechado, como nota quem caminha pela Rua Independência, tradicional via comercial local. Um destes estabelecimentos que ainda não está funcionando é a Radiadores Bickel, no Centro. Fundada em 1957, a loja hoje é administrada pelos irmãos Carlos e Maurício, a terceira geração da família à frente do negócio.
— Com as perdas de estoque, equipamentos estragados e dias que ficaremos fechados sem atividades, já calculamos um prejuízo de pelo menos R$ 100 mil. Se Deus quiser, vamos trabalhar para recuperar o que for possível, mas a primeira vez que eu entrei na loja depois da chuva, no domingo, ainda com água nos joelhos, e vi tudo boiando, eu desabei em choro — lamenta Carlos, 63 anos.