Sem nome nem dono, o cão resgatado da enchente teima em se equilibrar sobre a casinha, desconfiado da terra firme onde está a salvo há mais de 24 horas. Sem casa nem pernas, o aposentado Solomar Krüger, 77 anos, se pergunta como conseguir outra cadeira de rodas quando deixar o ginásio onde passa os dias estirado sobre um colchonete.
Há um trauma coletivo inoculado em Canoas, seja no canil improvisado em um antigo depósito ou no condomínio de flagelados montado em uma universidade. Ninguém sorri e muitos choram no terceiro mais populoso município gaúcho, um dos mais afetados pelo cataclismo que há duas semanas castiga o Rio Grande do Sul. Quem anda devagar está sofrendo e quem anda depressa está salvando.
Desde sexta-feira (3), quando os rios dos Sinos e Gravataí começaram a avançar lentamente sobre a cidade, metade dos 348 mil habitantes deixaram suas casas nas regiões alagadas. Com 60% do território embaixo d’água, um em cada cinco pediu socorro por telefone. Um em cada quatro foi levado para abrigos. Oito morreram e 10 estavam desaparecidos até a tarde de sexta-feira (10).
O frenesi de gente e carros que molda a rotina local foi substituído por uma procissão de retirantes cruzando as passarelas que interligam a cidade sobre a BR-116. São fugitivos da enxurrada, abandonando a Zona Oeste, submersa, em busca de refúgio na Zona Leste, preservada pela cheia.
Aos 68 anos, Maria Isolda Pirola surge abraçada à filha Cristiane. Moradora do bairro Mathias Velho, um dos mais alagados, a aposentada saiu de casa com a água nos joelhos. No dia seguinte, só era possível enxergar o topo do telhado. Acompanhada do marido, Joel Souza, se aninhou na casa de Cristiane no bairro Guajuviras, onde agora cinco adultos e uma criança dividem um apartamento de dois quartos.
— Perdi tudo, 46 anos de vida dentro daquela casa. Sorte que minha filha mora na parte seca — diz Isolda, que todo dia cruza a passarela de volta para ver se a água baixou.
Com 12 quilômetros de extensão e 52 mil moradores, Mathias Velho é o maior bairro de Canoas. Suas ruas, antes repletas de pedestres e veículos, se tornaram hidrovias por onde circulam barcos à procura de sobreviventes. É uma navegação traiçoeira por cima e por baixo, pela proximidade dos fios de alta tensão e equipamentos escondidos pela água, como paradas de ônibus e placas de sinalização.
À medida em que se avança bairro adentro, a desgraça se sucede. No alto da igreja, só escapou a cruz. Na fachada das casas, a cerca elétrica e o arame farpado, impotentes para reter enxurrada que estourou janelas e enlameou o mobiliário. Há lixos por todos os lados, carros virados e caminhões do Exército só com o teto de fora. Em cada telhado, um buraco feito às pressas serviu de escotilha para a salvação.
Com a mão esquerda segurando o leme e a direita na pistola presa ao peito, o terceiro-sargento da Aeronáutica Davi Fonseca acompanha um grupo do Exército na busca por vítimas. Após 20 minutos de navegação, eles deparam com um idoso sangrando em um caiaque.
A gente perdeu tudo, tudo, tudo. Sabe o que é não ter mais nada?
ARNO KAUSSI
Aposentado
Aos 63 anos, Arno Kaussi está abrigado em uma unidade do Sesc, mas voltou ao Mathias Velho para buscar o rottweiler Renki, deixado há quatro dias sob o teto de uma fruteira. No retorno ao caiaque, Kaussi perdeu o equilíbrio e se agarrou a uma calha, mas a estrutura não suportou o peso e se partiu, rasgando sulcos ao longo de quatros dedos da mão esquerda do aposentado.
— A gente perdeu tudo, tudo, tudo. Sabe o que é não ter mais nada? E não sei onde vou deixar ele agora, porque ele é brabo e estou em um abrigo — lamenta Kaussi, enquanto recebe um curativo.
Segundo a prefeitura, 32 mil animais foram resgatados em Canoas — 12 mil sem tutores. Ao pé do viaduto da Mathias Velho, um antigo depósito abriga cerca de 300 cães. Todos passam por triagem, recebem remédio para pulgas e infecções e depois são separados por sexo — os mais ferozes ficam sozinhos. Voluntários dão água e comida, guiam donos em busca do pet perdido e montam baias feitas de palets. Por todo lado há olhares assustados e ganidos de tristeza.
Perto dali, à beira da água que inunda o estacionamento do Carrefour, a auxiliar de nutrição Taciana Sucher almoça feijão com massa numa marmita de isopor enquanto espera carona para buscar seu pitbull deixado no teto de casa. Ao lado dela, a dona de casa Márcia Kreff acaricia a calopsita cinza resgatada da igreja alagada onde havia se abrigado da enchente.
— Achei que nunca mais ia ver o meu bebê — suspira Márcia.
Rotina nos abrigos
Dona do terceiro maior produto interno bruto (PIB) do Estado, Canoas é uma cidade pujante e industrializada, embora desigual, com 68% da economia puxada pela atividade fabril. Cindida de norte a sul pela BR-116 e pelos trilhos do Trensurb, não dorme, espalhando dia e noite o ruído de homens, máquinas e veículos. Pelo menos era assim até o último final de semana.
Com a água chegando ao segundo andar dos edifícios, agora há mais abrigos (97) do que escolas de Ensino Fundamental (95). O barulho reinante é de helicópteros rasgando o céu, sirenes rompendo o trânsito e os gritos de quem tem fome e sede. Angustiados, eles formam uma fila de 170 metros na esquina da Avenida Inconfidência com a Rua Santa Rosa. Numa ironia do destino, alguém pichou a frase “perto dos portais da loucura” na fachada do galpão de 1,7 mil metros quadrados em que a prefeitura montou uma central de distribuição de donativos. No canteiro central da avenida, um servidor de microfone em punho tenta organizar a algaravia dos flagelados.
— Tem cesta básica para todo mundo. Ontem (quinta-feira) fomos até a meia-noite. A água não vai baixar. Na enchente de 1941, levou 32 dias — avisa, gerando calma e ansiedade ao mesmo tempo.
Quem sai da fila da comida segue para a do vestuário, num ziguezague sem fim de quem tenta um recomeço. Rodeado por cinco sacolas, um galão e um fardo de água mineral, o açougueiro Júnior Santejano, 33 anos, leva mantimentos para as 15 pessoas da família que estão alojadas na casa de amigos no bairro Guajuviras. Ao lado da mulher e dos nove filhos, ele foi resgatado de barco na madrugada de sábado.
— Consegui arroz, feijão, fraldas, um pouco de tudo. Agora quero ver se consigo vestir as meninas, que só saíram com a roupa do corpo — diz Santejano.
No caleidoscópio de dramas que se repetem, não há desabafo mais reiterado do que “perdi tudo”. Ele é onipresente nas filas diante de tomadas energizadas que carregam celulares e de torneiras que espirram água, mas sobretudo na sede Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), cujos 900 mil metros quadrados de área se tornaram o maior campo de refugiados climáticos do país. Somente no domingo (5), ápice da diáspora da enchente, 35 mil pessoas passaram pelo local. Um levantamento da prefeitura aponta agora a presença de 7,5 mil abrigados, um contingente superior a quase dois terços dos municípios gaúchos.
Sem ter para onde ir, famílias inteiras dividem salas de aulas e oito quadras do ginásio, tentando preservar um pouco da intimidade erguendo lençóis como divisórias. Em cada porta, há uma lista com as famílias acolhidas e as regras de convivência, desde a proibição de andar de camisa à aceitação ou não de cães e gatos. As refeições são coletivas, sempre com hora marcada e sem atropelos. Para reduzir a tensão, policiais circulam a pé e de viatura, guarnecendo o ambiente.
Em meio a tanta gente necessitada, alguns precisam de cuidados especiais. Um andar inteiro foi reservado para as famílias com algum membro portador de transtorno de espectro autista. Isoladas dos demais, 111 pessoas ocupam as 22 salas do segundo andar, sempre monitoradas por profissionais de saúde.
— São crianças e adultos que já precisam de organização numa rotina normal. Imagina nesse ambiente confuso e após o trauma que passaram — explica a psicóloga Jaqueline Silva.
No andar debaixo, outra voluntária tenta distrair as crianças distribuindo lápis de cor e folhas em branco. Colados à parede, os desenhos refletem sentimentos e cenas do cotidiano, como retratos da família, uma canoa em meio ao mar bravio e um coração partido.
— Perguntei à Rithiele, de seis anos, por que ela desenhou o coração partido e ela disse que ele está triste, porque não tem mais casa para voltar — conta a corretora de imóveis Fernanda Ambrósio, 27 anos.
Fernanda e Jaqueline são voluntárias, assim como a maior parte da força de trabalho na cidade. O comissário de voo Fabiano Machado trocou o aeroporto pela coordenação do prédio 14, e a cientista política Janaína Vargas substituiu os estudos pela recepção na capela, talvez o único recanto silencioso em todo o campus.
Do outro lado da cidade, o analista de sistemas Lauro Becker está desde sábado (4) ajudando no resgate de quem teve a casa inundada. Aos 62 anos, ele perdeu a conta de quantas vezes desbravou as correntezas do Mathias Velho, sem jamais entrar em pânico. Na quinta-feira (9), porém, ele soube que haviam arrombado o Centro Educacional Integrar, onde é professor voluntário de 90 jovens carentes.
Desesperado porque mantinha todo o conteúdo das aulas em dois notebooks em cima de uma classe, ele chegou às 7h no píer de asfalto da Avenida Rio Grande do Sul em busca carona até o Integrar. Como não queria ocupar o lugar de um refugiado, esperou por seis horas até o movimento diminuir, para só então ir de jet ski até o prédio abandonado às pressas. De volta à terra com os computadores recuperados, tirou meio litro de água de cada uma das botas enquanto chorava de emoção.
— São alunos que correm o risco de não ter um futuro e aqui dentro tem muita coisa que pode transformar a vida deles. Agora tô tranquilo. Vou para casa botar outro macacão sequinho e volto para seguir nos resgates — diz Becker, renovando a onda solidária que move a reconstrução de Canoas.