A soma das idades do casal João Boaventura Gonçalves e Hercília da Silva Gonçalves mostra o quanto de coisas já viram nessa vida. O marido tem 96 anos, enquanto a esposa, 92. Mas esses 188 anos nunca testemunharam tanta água vinda do céu e dos rios.
— A coisa mais difícil foi sair de casa — desabafa João, sentado em uma cadeira de rodas à espera de um prato de sopa quente.
Na tarde desta terça-feira (7), ele havia chegado à sala 57 do prédio 11 do campus da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, na Região Metropolitana. Na instituição, pelo menos 6 mil desabrigados da cheia ocupam as salas de aula depois de passarem por tamanha provação.
Mas João não pôde degustar a esperada sopa assim que foi abraçado pelos filhos. Dias antes de tanta chuva vir do alto, o que ocasionou o transbordamento do Guaíba, Sinos, Gravataí, Taquari e outros mananciais pelo RS, o ex-pedreiro havia tirado quatro dentes. Está com os pontos dentro da boca. E isso dói. Mas ele está vivo. E estende a mão para a esposa cadeirante Hercília, deitada em um colchão sob o olhar dos demais familiares. Todos acompanham a cena. E todos choram, inclusive os dois voluntários presentes.
Quase 20 familiares resgatados
O vigilante aposentado Carlos Augusto Gonçalves, 60, é filho do casal. Toda a família mora em quatro casas no bairro Mathias Velho. São quase 20 parentes. O resgate de todos se estendeu por três dias consecutivos. Começou na quinta-feira da semana passada e terminou no sábado. Foram retirados de barco.
— Primeiro, foi retirada a minha mãe. O meu pai depois — conta o filho, que chora em muitos momentos da narrativa.
A água chegou ao segundo piso da casa na Rua Uruguaiana. Ninguém imaginou que a cheia seria tão grande. Carlos Augusto comenta que jamais pensou em passar por algo assim. Em 45 anos morando no local, já viu chuva. Mas não um dilúvio como o que assolou de forma impiedosa milhares de gaúchos no empapado território da parte mais baixa do mapa do país.
— Perdemos tudo. Dependemos de ajuda até para uma pasta de dente — continua o filho, dizendo que não conseguiram salvar os cachorros.
E os resgates foram dramáticos. O pai não queria sair da casa e tem saúde debilitada. A mãe vive em cadeira de rodas em função de um antigo acidente vascular cerebral (AVC). E a chuva não parava. E a água subia. E cada vez mais. Um metro, dois, três. Era uma escada. A cada momento, mais um degrau.
Os problemas iam além dos idosos que precisavam ser resgatados antes do pior. Outro filho deles, José Jandir Gonçalves, 66, tem deficiência visual. Foi outro resgatado em meio à inundação. Era muita provação. Mas naqueles três dias houve um pacto silencioso entre todos. Ninguém iria morrer nessa família. Não durante essa cheia apocalíptica.
Eva Helenice Gonçalves, 60, também é filha do casal. Com os olhos cheios de lágrimas, mas com uma força que vem lá do fundinho do peito, ela relata o que é bastante difícil para quem tanto trabalhou na vida para ter algo.
— Saímos só com a roupa do corpo — compartilha.
Essa é a história da família Gonçalves. Essa é a trajetória de quem saiu do meio das perigosas águas para a vida. Naqueles três dias de provações, eles decidiram não morrer. Perderam tudo. Mas nunca a esperança. A cheia foi derrotada por cada um deles.