Eram pouco mais de 11h desta sexta-feira (10), quando o almoço começou a ser servido no abrigo do Sesc da Avenida Protásio Alves, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. No local, 250 pessoas estão abrigadas depois de precisarem sair de casa diante da cheia do Guaíba e de outros rios. O cardápio era de abrir o apetite: arroz, feijão, estrogonofe de frango e salada. Para beber, água ou suco. E a sobremesa contemplava frutas e bolachas doces.
Os abrigos temporários se espalham pela Capital, assim como em tantas outras cidades. Para muita gente são a única opção neste momento de desamparo. A reportagem de GZH passou o a manhã desta sexta acompanhando a rotina do abrigo no Sesc da Protásio, que foi aberto no sábado (4). Além de encontrar uma estrutura bem organizada, ainda foi possível testemunhar a determinação e a esperança de quem perdeu tudo.
É o caso da dona de casa Andréia da Silva Rosa, 39 anos. Moradora da Rua Frederico Mentz, no bairro Navegantes, ela conta que não sobrou nada na residência de dois pisos onde vive com oito filhos e cinco cachorros.
— Quando a água subiu precisei sair caminhando com os filhos nas costas e tivemos ajuda de uma balsa — relata, dizendo que o cão Hulk veio com eles, mas os demais animais ficaram na casa.
Ela está na companhia da família em uma barraca verde do Exército. Há pessoas abrigadas no ginásio esportivo, em um miniauditório e em uma quadra de futebol sete. Neste último espaço, ficam as seis tendas que lembram um acampamento de guerra e onde Andréia procura não perder a fé. Porque os bens todos se foram com as águas do Guaíba na maior enchente da história do RS.
— A gente fica triste porque perdemos tudo o que conquistamos com muito esforço. Mas, graças a Deus, estamos todos vivos — reflete Andréia.
Até chegar a um abrigo temporário, os flagelados têm um caminho a trilhar. Primeiro devem passar por uma triagem que inicialmente era feita pela prefeitura no Teatro Renascença, perto do Ginásio Tesourinha. Mas com a inundação também dos bairros Menino Deus e Cidade Baixa, essa etapa foi transferida para o Grêmio Geraldo Santana, no Santo Antônio.
O Sesc da Protásio Alves recebia pessoas vindas da região do Quarto Distrito. Eram moradores dos bairros Floresta, São Geraldo, Navegantes, Humaitá e Vila Farrapos. Porém, com o agravamento da situação na Capital, foram chegando até moradores de outras cidades da Região Metropolitana.
Na entrevista, o desabrigado passa por nova identificação. Recebe pulseira, atendimento médico, a pressão e os sinais vitais são aferidos. Além disso, aqueles que tomam medicamentos de uso contínuo já recebem os remédios. O encaminhamento para o espaço procura manter as pessoas da mesma família juntas.
— É gente que perdeu tudo. Trata-se de trabalhadores. Na grande maioria são serralheiros e marceneiros — explica Luciana Stello, gerente de Cultura do Sesc/RS.
O abrigo visitado está longe de representar algum tipo de confinamento para os residentes temporários. Tem gente que leva o cão para passear na rua, quem tem algum dinheiro pode ir no supermercado ou na padaria, e tem até aqueles que saem para trabalhar e voltam ao fim do expediente para dormir.
A organização é uma das marcas do espaço. Todos os abrigados possuem pulseiras de identificação. Além disso, coordenadores usam coletes vermelhos, voluntários vestem a cor amarela, enquanto profissionais da saúde trajam azul.
Quatro refeições por dia e banheiro monitorado
As refeições têm hora marcada. O café da manhã é servido das 7h15min às 9h; o almoço das 11h15min às 13h; o lanche das 15h às 16h, enquanto o jantar das 18h15min às 20h. Mas sempre há biscoitos, frutas e água à disposição. Os coordenadores pedem para que as pessoas reutilizem os copos e garrafas para evitar desperdício. Às 22h30min, o ambiente fica à meia-luz para que todos possam dormir.
Também estão disponíveis vestiários com chuveiros. Existe um revezamento durante as 24 horas do dia de monitores cuidando de cada pessoa que entra e sai dos banheiros. A medida é para garantir a segurança, principalmente de mulheres e crianças, no uso dos espaços. Banheiros químicos foram instalados na parte externa.
Há espaço para a recreação das crianças, onde os pequenos recebem atenção, podem brincar e pintar. Além disso, foi criada uma biblioteca.
Quem precisa de roupas pode escolher à vontade. As peças estão organizadas e dispostas nas arquibancadas do ginásio.
Entre cães e gatos, havia 42 animais em um espaço reservado. Um coelho também foi acolhido. Os tutores ficam responsáveis por recolher o cocô dos pets. Equipes do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) auxiliam na limpeza dos ambientes.
A integrante do gabinete da prefeitura Carlise Pinheiro revela algumas demandas comuns:
— Aqui vemos as necessidades das famílias, como pedidos por óculos e por carrinhos de bebês.
Atendimento médico e corte de cabelo
Atendimentos médicos e psicológicos também acontecem. Voluntários das áreas da psiquiatria, psicologia, fisioterapia e nutrição se fazem presentes. E sempre tem alguém à espera da sua vez.
Aos 63 anos, Júlio Fernando trabalha auxiliando o trânsito em frente ao Pão dos Pobres. Morador de uma pensão na Rua Luiz Afonso, na Cidade Baixa, ele esperava para cortar o cabelo perto do meio-dia desta sexta. A chuva que caía forte respingando em suas calças não o perturbava. O que o incomodava era um calo no pé direito. Estava inchado e doía. E tinha ainda outro problema.
— Estou sentindo falta de ouvir rádio — dizia Júlio.
A assistente social do Senac Comunidade, Aline Tavares, 40, compartilha que muitas das pessoas atendidas têm empregos formais e estão preocupadas com o futuro.
— Estão ainda na fase da angústia — percebe ela.
Quando os parentes são encontrados, as equipes procuram encaminhar o abrigado para a casa dos familiares.
Ter de sair de casa, às pressas e debaixo d’água, deixou marcas em alguns dos abrigados.
— Tem chegado muita gente com contratura muscular. É muito difícil se locomover dentro da água — comenta a estudante de Medicina Luara Quaresma, 33, voluntária no local via Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), citando ainda demandas de saúde mental.
A vida segue
A aposentada Maria Luísa, 67, vive no Humaitá. Estava pegando uma receita de medicação para dor de garganta. Ao sair de casa, caminhou muito dentro da água e não consegue esquecer os difíceis momentos de provação.
— Foi bizarro. A pior enchente que passei. Parecia que eu estava caminhando dentro do rio — recorda.
Ao lado do filho, o profissional autônomo Cleito Freitas de Oliveira, 31, ela faz um desabafo:
— Choro todos os dias.
Dona Maria Luísa caminhou mesmo dentro do rio. É fato que as águas do Guaíba tiveram um alcance jamais visto antes. E agora ela sabe que venceu a cheia. Sobraram cicatrizes emocionais. Mas a vida segue.
O papeleiro Setembrino Moraes Chaves, 54, tomava mate sentado em uma cadeira e cercado por colchões. Ele mora na Vila Farrapos com a esposa, a recicladora Maria dos Santos, 45. Os dois estão no abrigo porque perderam tudo.
— Fui salvo de uma enchente em Espumoso quando eu era criança. Minha mãe me carregou nas costas — narra, segurando a cuia.
A esposa menciona que antes da fuga desesperada, jogou todos os documentos dentro de uma sacola e trouxe junto.
— Nunca pensei em desistir de nada. Tenho perna. Tenho braço — diz a mulher, com força no coração.
Um casal de haitianos vindo do bairro Sarandi está entre os abrigados do local. O alfaiate Asnel Vertismat, 41, demonstrava tranquilidade ao lado da esposa, a costureira Marthe Vertismat, mais dos dois filhos, de oito e quatro anos. Eles viviam em uma casa alugada, que deixaram antes de a água inundar a região.
— Nunca pensei passar por isso — fala Asnel, que está há oito anos no Brasil e veio de Saint Michel de L’Attalaye, uma comuna do Haiti.
Apesar da incerteza, o casal estrangeiro já tem planos para o futuro.
— Pretendemos construir uma casa, porque pagar aluguel é como jogar dinheiro fora — observa Asnel.
Mas a história mais impressionante talvez seja a da professora Cristiane Porto Maciel, 49. Ela e o marido Luiz Fernando Santa Rita, 74, precisaram ser resgatados do Sarandi no sábado. Ele vive acamado, tem mal de Parkinson, neoplasia na próstata, não enxerga e sobreviveu a três acidentes vasculares cerebrais (AVCs).
— O psicológico da gente está arrasado. Antes, a dor era individual. Agora, é coletiva — afirma dona Cristiane.
Há uma cama de hospital no espaço deles no ginásio. Foi obtido um biombo para que o marido tenha privacidade quando recebe atendimento médico e banho. A cadelinha Bebê, muito assustada, fica perto da tutora. Nove gatos ficaram na residência e ninguém sabe ainda o que houve com eles.
Os dramas se amplificam e se misturam entre presente e passado. A família sobreviveu a um grave incêndio em 2010, quando morava na Restinga. A filha Helena, na época com cinco anos, morreu.
— Aqui estamos no paraíso. O amor impera — conclui Cristiane, depois de vencer a morte pela segunda vez.