A fila municipal do Sistema Único de Saúde (SUS) segue um desafio para a administração de Porto Alegre. Desde a pandemia, o poder público não consegue reduzir o número de solicitações aguardando atendimento. Pelo contrário: a fila tem crescido mais a cada ano que passa.
Em dezembro de 2023, conforme o setor de Transparência da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), 159.324 pedidos de consultas especializadas esperavam por atendimento. Este número inclui consultas médicas e odontológicas. Em comparação ao mesmo período de 2022, houve um crescimento de 27,33% nas solicitações represadas — eram 125.124 pedidos por atendimento especializado em dezembro do ano retrasado.
Mas este não é apenas um crescimento pontual. A fila do SUS na Capital atingiu o maior número de pedidos de consulta acumulados em toda a série histórica do levantamento —disponibilizado pela prefeitura, ao menos, desde 2017. Em março daquele ano, eram 69.968 pedidos em espera — número 39,12% menor do que hoje.
O abismo cresce quando se compara o cenário atual com outros períodos. Até abril de 2018, a fila manteve-se no patamar de acúmulo acima dos 90 mil pedidos por consultas especializadas. Este número começou a cair no final daquele ano, diante um trabalho da pasta de Saúde para revisar encaminhamentos e aumentar a oferta em algumas especialidades.
Depois de cerca de um ano em plena redução, a fila chegou ao menor tamanho da série histórica em abril de 2020 — logo após o início da pandemia de covid-19. Eram 46.726 requisições de consultas represadas. Comparado ao número atual, houve o crescimento impressionante de 240,91%.
Crescimento seguiu no pós-pandemia
Com a pandemia e o cancelamento de consultas eletivas, as guias médicas começaram a acumular. A fila voltou a crescer em abril de 2020 e, salvo pequenas exceções, nunca mais estabilizou-se.
Neste período, o maior salto em comparativos mensais foi entre outubro e novembro de 2020, quando houve crescimento de 13,14%, chegando a 72.886 consultas esperando chamado. Em outubro de 2021, outro ponto histórico: pela primeira vez em todo levantamento, o número de consultas acumuladas passou de 100 mil, chegando a 102.863.
Durante o período da pandemia, a administração de Porto Alegre creditou o isolamento social como causa para o aumento da fila. Porém, mesmo após o arrefecimento dos efeitos do coronavírus, a curva ascendente seguiu. A pasta municipal da Saúde citou, então, o retorno de pacientes ao sistema. Quem estava em casa durante a pandemia estava retomando o caminho aos postos de saúde e recebendo encaminhamentos para consultas especializadas.
A tendência, seguindo o período pré-pandemia, era de que a estabilidade se desenhasse ao longo dos meses seguintes. Mas não foi o que aconteceu: a fila não retornou mais ao patamar abaixo das 100 mil solicitações. Em março do ano passado, três anos depois do início da pandemia, ainda eram 129.471 requisições na fila — salto de 159,42% em relação a março de 2020.
Gargalo maior na oftalmologia geral
No cenário atual, a maior fila de espera do SUS de Porto Alegre é para consultar com um oftalmologista. A fila de oftalmologia geral adulto acumulava, em dezembro, 15.175 pedidos de atendimento. Um salto de 164,56% em relação ao mesmo período de 2022, quando eram 5.736 solicitações. Olhando para a lista mais recente, o gargalo se explica. Enquanto 2.683 novos pedidos entraram na fila em dezembro, 1.838 atendimentos foram ofertados.
A aposentada Antônia Macedo Ferreira, 84 anos, vive na Lomba do Pinheiro e requisitou encaminhamento para a área de oftalmologia no posto de saúde da sua região. Entretanto, a espera pelo atendimento já passa dos seis meses. Segundo ela, nunca precisou aguardar tanto por uma consulta. Antônia precisa saber quanto sua dificuldade de visão aumentou e receber uma nova receita de óculos.
— É ruim essa espera, né? — relata, descontente, a moradora da Zona Leste.
E isso se repete em outras filas que compõem o ranking das 10 maiores da lista. Apesar de serem consideravelmente menores que a primeira colocada, as filas ainda são grandes. A segunda colocação fica com a saúde mental adulta, onde há 6.157 guias de consulta esperando chamado.
Só em dezembro, 635 novos pedidos chegaram, mas apenas 321 consultas foram ofertadas. O ranking segue com a urologia adulto, onde há 5.410 consultas em espera. Chegaram 503 novos pedidos em dezembro, enquanto foram ofertadas 352 fichas.
Em quarto lugar, uma demanda antiga que assola os moradores da Capital: a espera por uma prótese dentária. São 4.614 pedidos de primeira consulta para esta necessidade. Neste caso, a situação é mais delicada. Em dezembro, nenhuma nova ficha foi ofertada, apenas novos pedidos entraram em espera: foram 464.
Ainda aparecem entre as 10 maiores filas de espera especialidades como cardiologia adulto, neurologia adulto, oftalmologia retinopatias, endodontia, nutrição adulto e cirurgia vascular adulto.
Espera por bariátrica passa de cinco anos
Apenas o acúmulo de solicitações não significa que uma fila é demorada. Demandas mais comuns nos cuidados médicos podem ter grandes quantidades de solicitações chegando todo mês, mas uma oferta maior de atendimentos evita essa demora. Ainda assim, há especialidades em Porto Alegre onde mesmo com grande demanda, não há oferta. E aí, forma-se uma interminável espera.
Este é o caso da fila para primeira consulta de cirurgia bariátrica. Atualmente, são 3.421 fichas na fila. Só em dezembro, 94 novos encaminhamentos chegaram, enquanto apenas 12 consultas foram ofertadas. Com isso, a espera por esse primeiro atendimento pode chegar a 1.994 dias — cerca de cinco anos e meio. A média apenas conta as solicitações que entraram na fila nos últimos seis meses.
E essa nem é a fila de consultas com maior espera no Sistema Único de Saúde (SUS) da Capital. A liderança do ranking fica com um pedido mais raro: a polissonografia. É uma consulta na área de pneumologia para tratar a apneia do sono — dificuldade de respirar enquanto dorme. O tempo de espera é de 2.319 dias, o que representa seis anos e quatro meses. A fila para o exame é pequena, são 440 solicitações esperando, mas somente cinco atendimentos são oferecidos por mês.
Mais pacientes no sistema, mas recursos menores
Mesmo com a passagem da pandemia, os efeitos dela sob a fila de consultas da Capital seguirão sendo sentidos. É o que aponta a Secretaria Municipal de Saúde. Em nota enviada ao Diário Gaúcho, a SMS afirma que há um "aumento do acesso da população ao SUS". Em Porto Alegre, por exemplo, a cobertura da atenção básica à saúde (postos de saúde, principalmente), passou de 279 equipes para 390 (sendo 326 equipes de saúde da família e 64 equipes de atenção primária), além de 206 equipes de saúde bucal.
Além disso, segundo a SMS, em 2021 75% dos porto-alegrenses estavam cadastrados na atenção primária à saúde. Hoje, esse número saltou para 83% dos habitantes da Capital, o que representa mais de 1 milhão de pessoas. "Ou seja, quanto maior o acesso da população em atendimento na atenção primária, maior a demanda no sistema de especialidades", cita o poder público.
O crescimento de filas citadas na reportagem, como oftalmologia geral adulto, saúde mental, urologia, neurologia, dermatologia e cirurgia vascular adulto, "registram demanda maior que a oferta, e o aumento da oferta sempre vai acarretar em aumento da demanda, sendo, assim, um sistema de equilíbrio desafiador e com recursos limitados".
Sobre o crescimento da fila ao longo dos últimos anos, a pasta de Saúde da Capital pontua que uma unificação entre filas do Estado e de Porto Alegre tem causado problemas. "O objetivo é que os gestores recolham as informações o mais rápido possível, mas o Estado não tem profissional regulador nem oferta suficientes para a Capital e outros municípios", aponta a SMS.
O município acredita que a partir do momento em que Porto Alegre assume mais responsabilidade como referência de outras cidades, "também é necessário pactuar um novo financiamento, e isso não é feito" por parte do governo estadual. "Importante destacar que o SUS é tripartite, mas o município não consegue assumir sozinho o aumento de oferta que é necessária para quase toda população do Estado com referência na Capital", diz a nota.
As razões dos maiores gargalos
Porto Alegre estava, gradativamente, conseguindo reduzir as filas e atender as demandas, mas a partir da unificação da fila e da insuficiência do Estado, voltou a crescer progressivamente, acredita a SMS. Quanto à área da oftalmologia, a Capital é referência para 257 municípios na especialidade de estrabismo e não há serviços suficientes no Estado para atender a demanda, pressionando que Porto Alegre passe a suprir grande parte das solicitações atuais, o que não é possível.
Em relação a cirurgia bariátrica, a prefeitura alerta que o preparo para a cirurgia costuma ser demorado. Mas reconhece um desequilíbrio entre oferta e demanda. Em Porto Alegre, somente três hospitais realizam o procedimento: Conceição, São Lucas e Clínicas. "O fator absoluto para o desequilíbrio é entre o custo e o valor que o SUS repassa", diz a SMS.
Outra fila em crescimento, a saúde mental segue uma tendência "que está ocorrendo não só em nível nacional, como também é observado em outros países", garante a prefeitura. "Os fatores que contribuem para isso são variados, como a maior conscientização sobre saúde mental, reconhecimento dos sintomas relacionados aos transtornos mentais, redução do estigma associado a este tipo de sofrimento, além das mudanças nas condições de vida e estresse relacionados à organização social contemporânea", pontua a nota.
A prefeitura diz que tem procurado fortalecer as redes de atenção psicossocial através de ações conjuntas com os equipamentos de assistência social e educação, bem como articulação com hospitais e serviços de urgência.
Em relação às próteses dentárias, a SMS acredita que "no final de 2022 e ao longo de 2023 houve ampla divulgação da ampliação da oferta de próteses dentárias, e isso contribuiu para elevação da demanda". Especificamente para as próteses dentárias, a SMS renovou o contrato com o Sesc/RS por mais sete meses, com a oferta de até 150 unidades mensais de próteses (parciais removíveis e dentaduras).
O Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), que ofertava outras 80 próteses, está sem licitação para laboratório. O investimento do poder público é de mais de R$ 700 mil em 2024, segundo a SMS. "Para este ano, também está no planejamento da secretaria o credenciamento de mais Centros de Especialidades Odontológicas (CEOs) preparados para oferecer diagnóstico bucal, periodontia e endodontia".
Recursos para este ano
Para tentar amenizar a situação da fila do SUS municipal neste ano, a SMS explica que buscará otimizar recursos, focando nos gargalos e nas especialidades em que há mais tempo de espera, "sem deixar de atender outras demandas, como a negociação com prestadores para aumentar a oferta e dirimir as filas".
A pasta afirma que conta, ainda, com recursos do Tribunal de Justiça (TJ-RS) para acelerar este processo e o aumentamos a oferta junto ao Programa Nacional de Redução de Filas. Recentemente, o governo do Rio Grande do Sul, por meio da Secretaria da Saúde (SES), e o TJ-RS, firmaram um termo de cooperação. O objetivo é ampliar e qualificar serviços oferecidos pelo (SUS). Os recursos totalizam R$ 154,7 milhões.
Do total do repasse, R$ 107 milhões serão utilizados para custeios, ou seja, na contratação de atendimentos, tratamentos ou aquisição de medicamentos. Os R$ 47,7 milhões restantes serão destinados para investimentos, repassados a hospitais para aquisições de equipamentos e realização de obras.
Estado busca regionalizar oferta
Procurada, a Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) confirmou que as filas estaduais e de Porto Alegre vêm sendo integradas ao longo dos últimos anos. Isso em razão do grande número de municípios do Interior referenciados para a Capital.
"A partir de 2016, a cota de consultas disponível era estipulada em 45% para a SES-RS e 55% para Porto Alegre", diz nota do Estado. Segundo a pasta estadual, o processo de implantação do sistema de Gerenciamento de Consultas (Gercon) em todo Estado foi finalizado em novembro de 2022.
Mas o Estado vem buscando a regionalização da atenção especializada. Um exemplo, segundo a SES-RS, é a especialidade oftalmologia estrabismo, que tem indicação cirúrgica também nos municípios de Passo Fundo, Erechim e Getúlio Vargas, além de Porto Alegre. O programa Assistir, lançado no ano passado, também tem sido "uma importante ferramenta para a ampliação da oferta de consultas em oftalmologia", garante o Estado. São 32 ambulatórios de oftalmologia habilitados pelo Assistir, ofertando 92.160 consultas por ano, pontua a nota.
De acordo com a secretaria estadual, a regionalização das especialidades é o "resultado da pactuação bipartite entre os gestores da saúde e ocorre mensalmente a atualização e discussão das referências".
As especialidades estão referenciadas em todo o território para além de Porto Alegre, mas "ainda há serviços que são referência estadual que estão sob gestão da SMS de POA". Através do programa Assistir, o Estado "vem ampliando o escopo de atendimentos nos serviços habilitados no território", projeta a SES-RS.