Quatro peças de arte sacra identificadas como anteriores ao período da Revolução Russa de 1917 integram o acervo do Museu Alcir Philippsen, situado no município de Santo Cristo, na região noroeste do RS. Essa é a conclusão de estudo realizado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em História Edison Hüttner, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). As pinturas a óleo sobre madeira chegaram a passar por aparelho de raios de luz ultravioleta e foram reconstituídas em 3D.
— Tratam-se dos únicos ícones autênticos encontrados, estudados e identificados até agora no Brasil como anteriores à Revolução Russa — garante o docente, que, recentemente, pesquisou tonéis com suásticas budistas para o mesmo museu.
A reportagem de GZH teve acesso aos detalhes do estudo desenvolvido por Hüttner. O material possui 82 páginas, com diversas informações, referências históricas e imagens. Durante o trabalho, o pesquisador utilizou aparelho de luz ultravioleta, eficaz para a eliminação de fungos, bactérias e, em algumas situações específicas, até do vírus transmissor da covid-19. Dessa maneira, as peças passaram por processo de descontaminação enquanto foram estudadas na PUCRS.
— Essas peças ficavam nas casas dos imigrantes russos em Campina das Missões. Eram comuns para devoção — observa o historiador, que pesquisou o material durante mais de um ano.
Segundo os levantamentos, as quatro peças foram trazidas da Rússia para o Estado por imigrantes. Para contexto histórico, o primeiro templo da Igreja Ortodoxa Russa foi construído no país em 1912, no município de Campina das Missões, na região das Missões.
— A partir de 1905, uma leva de russos começa a vir para o Brasil, especialmente para Campina das Missões e Santa Rosa. Em 1909, chegam ao RS — situa no tempo o pesquisador, citando conflitos na Rússia como determinantes para o processo de imigração em direção ao país.
As quatro pinturas foram adquiridas em algum momento pelo colecionador que dá nome atualmente ao museu de Santo Cristo (Alcir Philippsen). Após sua morte, as obras trocaram de mãos novamente no interior do Estado.
— Há 40 anos, o município comprou o acervo da família do colecionador e artista plástico Alcir Philippsen — explica o diretor do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de Santo Cristo, Bruno Rafael Machado. — Percebi que essas pinturas eram genuínas e bem antigas. Pedi o estudo porque identificamos que era óleo sobre madeira em arte ortodoxa — acrescenta.
Padroeiro da Rússia, São Nicolau aparece representado em duas peças estudadas. Em outra está o ícone Pantocrator, palavra que possui diversos significados como “Soberano Salvador” e “Senhor Todo-Poderoso”. Trata-se de uma representação de Jesus. Na última, estão retratados São Boris e São Gleb, que são venerados como exemplos de não violência. Há mosteiros dedicados aos dois na Rússia, na Ucrânia, na Bulgária, entre outros países.
A pesquisa não conseguiu precisar de que região da Rússia vieram as duas pinturas de São Nicolau. Porém, as imagens do Pantocrator e de São Boris e São Gleb, datadas do período entre 1880-1901, são originárias da província de Kursk, um assentamento de Borisovka.
Segundo Hüttner, que chegou a consultar o especialista russo em crítica de arte, Igor Pripachkin, para determinar o período das peças, as relíquias pertencem ao final do século 19 e começo do 20. O material será exibido no museu, nesta sexta-feira (16), ao lado de outros objetos históricos pesquisados.
— São ícones autênticos feitos na Rússia antes de 1917. Vejo isso como uma via entre Oriente e Ocidente — conclui o professor, que apresentará pessoalmente os resultados da pesquisa para os visitantes do museu.
O estudo é referendado por pesquisadores como Rosalva Trevizan Rigo, iconógrafa especialista em arte sacra.
— Não vi ainda, aqui no Rio Grande do Sul, um anúncio de uma descoberta nesta perspectiva — ressalta.
"A historiografia da nossa arte carece de estudos de mais fôlego para rastrear de onde vieram as peças", diz historiador
Para Raimundo Rajobac, diretor do Instituto de Artes (IA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisas desse tipo precisam ser enaltecidas.
— No âmbito das artes sacras, trata-se de uma pesquisa muito importante. Primeiramente, ela nos revela o impacto que tem a arte sacra para a história artístico e cultural de qualquer tradição — diz o diretor.
Segundo Rajobac, as obras de arte sacra possuem uma pluralidade de sentidos e de possibilidades de compreensão de todos os problemas da tradição.
— A obra sacra possui contexto, estilo, estética, tendência religiosa e revela práticas de artistas localizados na história e no tempo — enumera.
O especialista segue adiante em suas observações.
— Enquanto objeto de estudo, a arte sacra comporta em si esse grande potencial revelador de uma arte que é feita em determinado momento. E revela questões históricas importantes, que, às vezes, não estão devidamente explicitadas na literatura, na história, na própria estética, filosofia e antropologia.
A opinião é compartilhada por colegas de área.
— Na parte da pintura, é uma pesquisa bastante inédita no RS. A historiografia da nossa arte carece de estudos de mais fôlego para rastrear de onde vieram as peças que fazem parte de nosso patrimônio artístico e cultural — pondera o historiador da arte José Francisco Alves, autor de A Escultura Pública de Porto Alegre, obra comemorativa lançada este ano e dedicada ao aniversário de 250 anos da cidade.
Veja, abaixo, as dimensões das quatro pinturas:
São Nicolau (pintura maior)
- Altura: 47,7 cm
- Largura: 37 cm
- Peso: 2,6 kg
São Nicolau (pintura menor)
- Altura: 36 cm
- Largura: 27,3 cm
- Peso: 1,3 kg
Pantocrator
- Altura: 36 cm
- Largura: 27,3 cm
- Peso: 1,5 kg
São Boris e São Gleb
- Altura: 41,5 cm
- Largura: 32,5 cm
- Peso: 1,4 kg
Observação: as medidas levam em conta as molduras.