A Capela Nosso Senhor Jesus do Bom Fim, situada na Avenida Osvaldo Aranha, em Porto Alegre, ostenta desde 1882 uma cruz barroca na parede do altar. A peça, vinda da Região das Missões, atravessou um longo caminho e passou até pela Guerra do Paraguai (1864-1870) antes de chegar à moradia atual.
A cruz foi esculpida no período entre 1696 e 1705 pelo artista José Brasanelli, conta o professor Edison Hüttner, pós-doutor e coordenador do Grupo de Arte Sacra Jesuítico-Guarani da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que pesquisou sobre a peça.
Segundo o docente, o italiano Brasanelli, que possuía formação em escultura e arquitetura em Roma, tinha ateliê em São Borja, na Fronteira Oeste do Estado, e também trabalhou em San Ignacio Guazú, no Paraguai. Desse modo, pode ter esculpido a peça em solo gaúcho e paraguaio. Há relatos de que a cruz teria sido trazida, com os braços de Jesus quebrados e outros danos, do país vizinho. A escultura passou por restauração de Serafim José Ribeiro por volta de 1888. Mais recentemente, Anice Jaroczinski restaurou novamente a obra.
— Talvez seja a escultura mais linda que tivemos entre todas as reduções jesuíticas — avalia Hüttner, pontuando que a cruz certamente ficava exposta em alguma das grandes igrejas da época.
Em seguida, a cruz teria vindo de carretão de São Borja após sobreviver ao período da Guerra do Paraguai. Porém, acumulou danos de vários tipos.
Essa obra se compara em valor com aquelas feitas pelo Aleijadinho
EDISON HÜTTNER
Historiador da PUCRS
— Quem doou a cruz para a Capela Nosso Senhor Jesus do Bom Fim foi o general José Joaquim de Andrade Neves. Em geral, os militares tinham acesso a essas imagens — esclarece o professor.
Entretanto, o caderno de restauro intitulado Capela Nosso Senhor Jesus do Bom Fim, feito pela prefeitura de Porto Alegre em 1989, conta uma história um pouco diferente. Segundo a publicação, a cruz teria sido dada pelo general para o Monsenhor Vicente Ferreira da Costa Pinheiro, que, por sua vez, a teria doado para a igreja.
Hüttner ressalta a relevância da peça, que é feita em madeira, possui arte de policromia e tem uma grande coroa original de prata em sua composição:
— Essa obra se compara em valor com aquelas feitas pelo Aleijadinho (apelido do escultor Antônio Francisco Lisboa).
O jornal O Mercantil, em edição de 19 de janeiro de 1888, publicou que a cruz media “21 palmos de altura”. Ou seja, cerca de 4,8 metros de altura. E a imagem seria em tamanho natural. Também dizia que possuía aproximadamente 200 anos naquela época.
Arcebispo metropolitano da Capital, Dom Jaime Spengler avalia a importância da cruz:
— É uma cruz muito bonita, despojada e sóbria. Ao mesmo tempo, é um símbolo da história da fé católica — observa.
Dom Jaime Spengler cita que a presença da cruz na Capela Nosso Senhor Jesus do Bom Fim carrega consigo a história da região missioneira.
— Essa cruz é um memorial privilegiado daquilo que significa esse símbolo para nós como cristãos e católicos — diz. — Recorda a história dos jesuítas no Rio Grande do Sul e, quando entramos na igreja e a vemos, ficamos impactados.
O padre Lírio Celestino Pezzini, que é o pároco da igreja há mais de quatro anos e meio, externaliza seu sentimento:
— Trata-se de uma relíquia para nós que frequentamos a igreja. É momento de êxtase estar aqui diante desse ícone histórico e maravilhoso.
Essa cruz é um memorial privilegiado daquilo que significa esse símbolo para nós como cristãos e católicos
DOM JAIME SPENGLER
Arcebispo metropolitano
O padre revela um detalhe dramático da história da cruz:
— Quando houve o incêndio de 1970 aqui, a peça foi salva por uns 10 homens. Escapou das chamas, mas ficou bastante chamuscada.
Atualmente, a cruz está afixada em uma parede do altar coberta por vitrais — projeto executado pela artista Ivany Lucas Kulczynski e inaugurado em 25 de outubro de 2003. Na parte detrás do altar, existe um espaço onde ainda é possível ver as marcas do fogo e o local em que a cruz ficava exposta.
A Capela Nosso Senhor Jesus do Bom Fim foi reinaugurada oficialmente no final da tarde de 4 de junho deste ano, após passar por uma restauração ao longo de dois anos e meio. Entre as curiosidades da igreja está a passagem do padre Roberto Landell de Moura, conhecido entre os brasileiros como o inventor do rádio, que começou sua carreira eclesiástica no lugar como capelão, em 1887.
Contexto histórico
Os Sete Povos das Missões, formados principalmente por indígenas guaranis, foram comandados por padres jesuítas vindos da Espanha. A medida foi adotada para impedir a expansão dos portugueses no Sul. Tudo o que havia nas reduções (aldeias) era de uso coletivo. Os jesuítas promoveram a primeira instalação em 1682, em São Francisco de Borja (atual São Borja).
A região dos Sete Povos das Missões foi disputada por espanhóis e portugueses. O Tratado de Madri, assinado em 1750, determinou que a área ficasse sob domínio de Portugal em troca da Colônia do Sacramento, no Uruguai. Dessa maneira, ocorreu a saída dos jesuítas espanhóis. Porém, padres e índios se recusaram a abandonar o território. Por isso, eclodiu a Guerra Guaranítica (1753-1756), que deixou um rastro de destruição. As reduções foram esvaziadas com a retirada dos jesuítas. Os espanhóis se apoderaram das terras, enquanto os índios se dispersaram. Em 1801, Portugal tomou a região depois de novo conflito com a Espanha.
Confira quais eram e quando foram fundadas as sete reduções:
- São Francisco de Borja (1682)
- São Nicolau (1687)
- São Luiz Gonzaga (1687)
- São Miguel Arcanjo (1687)
- São Lourenço Mártir (1690)
- São João Batista (1697)
- Santo Ângelo Custódio (1707)