Se a polarização política que se acentuou nos últimos anos já azedou até os mais inocentes churrascos familiares, um estabelecimento na zona norte de Porto Alegre tem sido democraticamente frequentado esquerdistas e direitosos ao longo das últimas décadas. Encravada em um ponto da movimentada Avenida Assis Brasil desde o final dos anos 1950, a churrascaria O Espeto de Ouro já serviu de membros do regime militar até o comunista Luís Carlos Prestes. Tudo na mais completa harmonia.
– Aqui sempre foi um lugar discreto. Na época da ditadura, vinha o pessoal da esquerda e da direita. Não sei como nunca se encontraram – conta o churrasqueiro Danilo Gonçalves, 80 anos.
A churrascaria sexagenária mantém o aspecto sóbrio. Depois de passar por uma reforma, no começo da década de 1990, o velho galpão em madeira deu lugar a uma construção mais robusta, mas ainda minimalista. A fachada em amarelo e marrom quase passa despercebida em meio à profusão de letreiros coloridos dos estabelecimentos comerciais da avenida.
Mais antigo funcionário da casa, onde começou a trabalhar na década de 1960 – com o segundo de quatro proprietários que administraram o local – , Danilo redigiu uma lista com os clientes célebres que já atendeu antes de conversar com a reportagem. Nela constavam funcionários de consulados da Bélgica e do Uruguai, e jornalistas como José Antônio Daudt, David Coimbra e Luciano Périco. Depois de retornar ao Brasil, na década de 1980, o líder revolucionário Luís Carlos Prestes esteve na churrascaria acompanhado do amigo Antônio Ribas Pinheiro Machado Neto.
Integrante do Partido Comunista, Antônio foi talvez o político que estabeleceu a relação mais estreita com o lugar. A aproximação deu-se por razões familiares. Em 1976, sua esposa teve um grave problema de saúde e precisou passar dois meses internada no antigo Hospital Lazarotto, vizinho ao local. Antônio tornou-se cliente e prometeu que, caso a mulher sobrevivesse, voltaria à churrascaria todo mês até o fim da vida.
– Meu pai cumpriu rigorosamente a promessa. Ele morreu num sábado, e no domingo anterior tinha ido na Espeto de Ouro. Tinha uma cadeira só dele, marcada – recorda o filho Ivan Pinheiro Machado.
Segundo os atuais proprietários, Rosemeri, Vanderlei e Rafael Motta (mãe,pai e filho), a iguaria mais emblemática tem participação da família. O famoso pão sujo, servido assado depois de ser embebido no líquido da carne com sal grosso, teria sido batizado assim após uma conversa com os Pinheiro Machado – Ivan não lembra da ocasião.
Local já foi palco de romance e traição
A relação dos filhos com o lugar seguiu próxima depois da morte do patriarca, em 1998. Tanto que a churrascaria foi destino de uma ousada aventura de Ivan anos atrás. Escolheu o local para jantar com uma ex-namorada em seu primeiro encontro.
– Eu disse que ia levar ela num restaurante super chique. Quando peguei a Plínio (Brasil Milano), vi que ela fez uma cara estranha. Parei na frente da Espeto de Ouro e gritei para o Marquinhos (garçom falecido em maio): “Cadê o tapete vermelho?” Me sinto muito bem lá – diz.
Se, para uns, o restaurante marcou um improvável começo de romance, uma história de traição com pitadas de comédia é a lembrança mais vívida no imaginário de proprietários e funcionários. Foi no começo dos anos 2000, quando dois clientes apareceram acompanhados das amantes. Não contavam que a esposa de um deles reconheceria o carro do marido, e ingressaria na churrascaria atrás do parceiro infiel.
– Era uma senhora muito elegante. Assim que ele viu ela entrando, correu para a cozinha e pediu para o garçom dar um dinheiro para as acompanhantes tomarem um táxi. Ela sentou na mesa com as duas mulheres e conversou muito educadamente, bem baixinho. Depois saiu e ficou esperando ele do lado de fora – recorda Rosemeri.
Não foi a única saia-justa em que a vida amorosa da freguesia meteu os proprietários. Um belo dia, dois casais que costumavam frequentar o local com seus companheiros chegaram lá invertidos. Cientes do estranhamento geral, explicaram que tinham trocado os parceiros. Àquela altura, era apenas mais um dia na Espeto de Ouro.
Ambiente simples e acolhedor
Os episódios inusitados confirmam o que parece ser vocação de umas das mais antigas churrascarias da Capital: deixar todo mundo à vontade. Parte disso deve-se ao ambiente desprovido de afetação, uma mistura de galpão com salão de festas de condomínio, com uma televisão ao fundo e poucos quadros nas paredes.
O cardápio é enxuto. Na contramão da cultura dos rodízios que tomou conta de estabelecimentos desse tipo nas últimas décadas, há apenas cortes e acompanhamentos a la carte, e só duas opções de sobremesas: pudim e sagu – também tem um freezer com picolés perto do caixa.
Em uma coluna publicada em Zero Hora, David Coimbra destacou a picanha como “uma das melhores das picanhas de Porto Alegre, o que significa que é uma das melhores picanhas do Rio Grande do Sul, o que significa que é uma das melhores picanhas do Brasil, o que significa que é uma das melhores picanhas do mundo”. Apesar da descrição hiperbólica da carne, o carro-chefe da casa são o pão sujo, a polenta frita e a maionese.
Segundo os proprietários, é comum os fregueses buscarem apenas os acompanhamentos para o churrasco de fim de semana, em casa. Aliados à clientela fiel, os preços camaradas – é possível degustar um pão sujo por apenas R$ 2 – ajudaram a assegurar a sobrevivência durante o período em que a casa parou de receber clientes por causa do distanciamento social. Diferentemente de outros pontos, que sucumbiram sem o atendimento presencial, a Espeto de Ouro conseguiu manter cerca de 50% faturamento, e não precisou demitir nenhum funcionário.
O local voltou a receber fregueses há cerca mês, com horário reduzido, até as 22h. Além dos pratos a la carte, oferece um almoço caseiro servido na mesa, com arroz, feijão, carne de panela, aipim e outros clássicos da cozinha de vó.
Marquinhos, o garçom carismático
Embora mantenha o clima amistoso, cruzar a porta da Espeto de Ouro tem sido uma experiência pesarosa para os frequentadores de longa data. Mais carismático garçom do lugar, onde começou a trabalhar quando o tio era proprietário, nos anos 1960, Marcos Schroeder, o Marquinhos, partiu em definitivo e sem despedida durante o distanciamento social. Foi vítima de um câncer agressivo descoberto no fim do ano passado.
– Algumas pessoas choram. Tinha criança que chegava aqui e chamava ele de vovô, queria ir com o Marquinhos – conta Rosemeri.
Por mais de 50 anos, a política de acolhimento incondicional da casa foi capitaneada pelo simpático funcionário, conhecido por atender sem pressa e ouvir com paciência. A empatia com os clientes era tão grande que muitos viraram confidentes.
– Uma vez uma mulher ligou para cá e pediu se o Marquinhos trabalhava aqui. Ela disse que estava no quinto casamento e que ele tinha conhecido todos os maridos dela, então tinha que conhecer o quinto também. Ele fazia as pessoas se sentirem em casa – diz Rafael Motta.
Cliente da Espeto de Ouro desde que “pesava 64 quilos e usava guides”, David Coimbra mencionou Marquinhos em diversas colunas. A última delas foi em maio, pouco depois da morte dele: “alguém que trabalha tanto tempo no mesmo lugar torna-se mais do que um personagem; torna-se parte do lugar”, dizia o texto, que foi afixado em um mural ao lado de fotos de Marquinhos.
– Era ótimo garçom. Conhecia a gente, fazia brincadeira. Era um cara especial, muito prestativo. Sugeria coisas e vinha sempre com uma cerveja gelada – recorda o jornalista.
Marcos Schroeder faleceu em 2 de maio, aos 70 anos. Deixou quatro filhos, cinco netos, amigos, colegas e uma legião de clientes saudosos do atendimento cativante que virou marca da churrascaria.