Bem no Centro de Boston, numa região elegante e cara da cidade, cintila um pedaço de Porto Alegre. Quando lá cheguei pela primeira vez, olhei e quase não acreditei no que vi. Trata-se de uma churrascaria "Fogo de Chão". É, inclusive, isso que está escrito na fachada, "Fogo de Chão", em português brasileiro, ostentando até esse sinal gráfico estranho, o til, coisa absolutamente desconhecida pelos americanos.
Sei bem que, agora, não existe mais Fogo de Chão em Porto Alegre, mas, lá dentro, no restaurante, todos os garçons servem pilchados, a decoração é gaudéria, com rodas de carreta e tudo mais, e, nas paredes, estão penduradas fotos da primeira churrascaria da rede, que ficava na zona sul da Capital de todos os gaúchos. Jantando na Fogo de Chão, sentia-me em casa.
Num desses jantares, conheci Jorge Ongaratto, o fundador da churrascaria. Conversamos bastante sobre o Brasil, sobre os Estados Unidos e, obviamente, sobre churrasco. Como faz tempo que ele está fora de Porto Alegre, o Jorge me perguntou:
- Tem algum lugar na cidade em que posso experimentar um churrasco novo, diferente dos que conheço?
- Tem - respondi. - Mas não é novo, é bem antigo.
E indiquei a Espeto de Ouro, pequena churrascaria encravada na Volta do Guerino desde meados do século passado.
- Vai lá e pede para falar com o garçom Marquinhos - acrescentei. - Não te esquece de chamar o Marquinhos.
Um dia, recebi uma ligação do Jorge:
- Estou aqui na Espeto de Ouro, sendo atendido pelo Marquinhos. Gostei muito!
Fiquei contente. Era um especialista aprovando a minha sugestão. Havia reforçado a necessidade dele reivindicar o atendimento do Marquinhos por uma questão, digamos, histórica: o Marquinhos trabalhou durante 50 anos na Espeto de Ouro. Alguém que trabalha tanto tempo no mesmo lugar torna-se mais do que um personagem; torna-se parte do lugar. E, no caso de um garçom, isso é ainda mais intenso. Porque o garçom não é só o cara que traz comida e bebida para a sua mesa. O garçom faz o papel de anfitrião: você chega a uma casa e ele o recebe, ele diz o que há de bom para você usufruir ali, ele faz com que você se sinta bem e à vontade, como se estivesse em sua própria casa e, de vez em quando, pode até parar para ouvir o que você tem para desabafar.
O garçom é o profissional da comunhão, porque é isso que você faz quando partilha uma refeição com outra pessoa: vocês estão ali juntos, a mesma substância está se tornando parte de vocês ao mesmo tempo, enquanto vocês também dividem pensamentos e sentimentos. A tarefa do garçom é dar naturalidade a esse momento. O grande garçom consegue tal proeza.
O Marquinhos era um grande garçom. Era. Escrevo no passado porque, no final de semana, ele morreu, vitimado por um câncer agressivo que havia descoberto em dezembro passado.
Sábado à noite, ao receber a notícia, sabia o que devia fazer: mesmo aqui, no isolamento, sem a companhia dos amigos, pus uma cerveja no congelador e só a tirei no ponto exato, branquinha, geladíssima, como se o Marquinhos tivesse trazido para a minha mesa. Então, servi numa taça tipo tulipa, deixei dois dedos de espuma e, antes de beber, brindei ao Marquinhos, velho e bom Marquinhos, e a todos os garçons, os grandes garçons, esses promotores da harmonia entre os seres humanos.