Difícil encontrar um representante da boemia porto-alegrense que, nas últimas décadas, não tenha tomado pelo menos um chope com três dedos de colarinho à esquina da movimentada Avenida Protásio Alves com a pacata Rua Eça de Queiroz, no bairro Petrópolis. No mesmo ponto desde julho de 1955, a Caverna do Ratão atravessou gerações e sobrevive como um dos bares mais antigos de Porto Alegre, preservando o cardápio e o atendimento que fizeram a fama da casa.
— Nos anos 1980, todo mundo frequentou a Caverna do Ratão. Era um bar de bairro, mas atraía pessoas da cidade inteira. Virou um marco. Não é comum bares durarem tanto tempo — diz o historiador Gunter Axt.
Autor do livro Tradição e Arte em Receber 1808-2018, que recupera a história de bares e restaurantes da Capital e traz fotos antigas do local, Gunter pegava dois ônibus para ir de sua casa, na Zona Sul, até o ponto na Protásio Alves, que frequentou entre as décadas de 1980 e 1990. Além de servir um famoso sanduíche aberto (preparado com pão de centeio, pernil, pepino, cenoura, tomate e ovo, carro-chefe da casa até hoje), o local era ponto de encontro dos amigos antes das festas em lugares como o Bar Ocidente, na Avenida Osvaldo Aranha.
À época com jeito de boteco, poucos lugares e um toldo onde lia-se o nome do bar, a Caverna do Ratão logo ficou pequena para a sua fama. As poucas mesas internas (nos anos 2000, uma reforma quadruplicou os assentos) quase nunca eram suficientes para acomodar a clientela, que apoiava os petiscos em cima dos freezeres ou na janela. Boa parte degustava o chope na calçada em frente.
— O pessoal bebia na rua. A gurizada tinha adoração pela janela da esquina — recorda a proprietária Vera Saldanha da Cunha, 61 anos, filha do fundador do bar, Aristides Saldanha.
Natural de Quaraí, na Fronteira Oeste, Aristides mudou-se para Porto Alegre em busca de oportunidades. Trabalhou em diferentes bombonieres do Centro até abrir o negócio, considerado a primeira casa de chope da Protásio Alves, junto com um concunhado. Deixou a sociedade no primeiro ano e retornou na década de 1960, quando comprou o bar, à época chamado Elite.
Não demorou para que imprimisse sua marca, alavancando o empreendimento. Trocou os salgados comprados de fora por quitutes preparados pela esposa, Arminda — as mesmas receitas são servidas até hoje — e, mais tarde, rebatizou o local.
— O pai tinha mania de chamar todo mundo de “ratão”. Até que um dia um cliente sugeriu que ele trocasse o nome do bar. Aí ele virou o Ratão — conta Vera.
Ela assumiu o local depois da morte do pai, nos anos 1990. Já era íntima das rotinas do Ratão, onde começou a trabalhar aos 20 anos de idade, atendendo ao público. Foi a única das três filhas do casal a se interessar pelo negócio, que toca ao lado do marido, Charles.
As regras de convivência da casa eram peculiares. Aristides nunca instalou telefone no bar, para evitar que as esposas ligassem atrás dos maridos — nos anos 2000, Vera adquiriu uma linha. Também não colocava música para não atrapalhar as conversas, hábito que foi mantido pela filha. Além disso, não se podia juntar as mesas — havia uma específica para grupos maiores — e as manifestações de afeto entre casais tinham de ser comedidas caso não quisessem ser mandados para casa.
— O Ratão não permitia que namorassem no bar. Ficava incomodado, porque achava que criava um mal estar com os frequentadores. Se tinha gente se beijando, ele batia no ombro e pedia para parar ou se retirar — lembra o gestor cultural Cézar Prestes.
Morador do Petrópolis, Prestes é um dos mais antigos e cativos fregueses do bar, que começou a frequentar em 1981 — época em que conheceu Ruy Carlos Ostermann, cliente ilustre do local. Fez do Ratão uma extensão de casa, indo quase que diariamente. Fã do bauru, ganhou uma versão especial preparada só para ele, com bolinhos de carne no lugar do hambúrguer. A relação com o local ficou tão estreita com o passar dos anos que foi ali que brindou, junto com Aristides, o nascimento da primeira filha.
— O chope acabou e ele pegou umas garrafas de cerveja que tinha escondidas para situações especiais, fechou o bar e ficamos bebendo lá dentro — recorda.
Luta para sobreviver na pandemia
Depois de uma reforma que ampliou o bar, nos anos 2000, a Caverna do Ratão deixou de atender aos clientes na rua. Na parte interna, que hoje é capaz de acomodar cerca de 70 pessoas, há um painel com fotos antigas e algumas relíquias do fundador, como um luminoso da Brahma, marca do chope servido na casa.
O cardápio mudou pouco nas últimas décadas. Além do sanduíche aberto e do bolinho de bacalhau, servem bolinhos de carne, croquetes, bauru e outros petiscos. O chope bem tirado que rendeu diversos reconhecimentos leva três dedos de colarinho, e as bolachas ainda são usadas para contar quantos o freguês tomou na hora de fechar a conta.
O bar completou 65 anos em julho, depois de um susto. Semanas antes, uma moradora das imediações espalhou em uma rede social a notícia de que o local estaria encerrando as atividades. Era boato, desmentido depois que Vera foi tirar satisfações com a vizinha.
Com a chegada da pandemia, os proprietários inauguraram, ainda em março, as modalidades de pegue e leve e telentrega. Apesar da rápida iniciativa, o serviço a distância tem mantido a casa a duras penas. A queda estimada no faturamento foi de mais de 80%, e inaugurou um período de incertezas sobre o futuro de um dos mais tradicionais redutos boêmios da cidade.
— O delivery tem vantagens e desvantagens, mas a coisa está devagar. Estou lutando pra não ter que desistir do sonho do meu pai — conta.