Se hoje Porto Alegre dorme cedo, e encontrar algum lugar que sirva refeições depois da meia-noite parece missão impossível, por mais de 30 anos a esquina da Avenida Cristóvão Colombo com a Rua Ramiro Barcelos esteve em vigília permanente. Em funcionamento desde a década de 1950, o Bar Café Restaurante Alfredo passou a atender 24 horas por dia nos anos 1980. O atendimento contínuo foi interrompido em março, por causa da pandemia de coronavírus.
Desde a reabertura do ponto físico, semanas atrás, o local recebe os clientes das 8h às 22h, com telentrega até a 1h30min. Artur Aleixo Ferreira e o irmão, Marcelo, são os atuais responsáveis pelo negócio que, até meses atrás, era comandado pelo pai, Patricio Rodrigues Ferreira, 82 anos.
O “sumiço” de Seu Patricio, que por décadas recebeu a clientela com um sorriso das 4h às 20h, deve-se a um acidente sofrido no começo do mês, quando caiu durante uma caminhada. Fraturou o fêmur e teve de ficar de molho, sob os cuidados da esposa.
— Todo mundo adora meu pai. Ele é carismático, diferente de nós, que tentamos, mas não chegamos nem perto. Nunca tinha ruim para ele — diz Artur.
Nascido em Portugal, Patricio trabalhou como entregador de pães em Porto Alegre até adquirir o ponto, junto com um irmão e um primo. Simpático, logo tornou-se parte da alma do lugar, conhecido por receber todo o tipo de público com o mesmo tratamento, marcado pela cordialidade.
A família preservou quase tudo do antigo bar que, segundo os proprietários, foi comprado de um nordestino. Mantiveram o nome, mais tarde exibido em um charmoso letreiro luminoso, boa parte dos funcionários e o aspecto de boteco-lancheria (lembra as padocas paulistanas), com um balcão comprido e banquetas altas.
O cardápio também não se renovou: até hoje serve pratos como a la minuta e bife à parmegiana, e lanches como bauru, croquete e uma famosa almôndega “do tamanho de uma bolinha de tênis”, calcula Artur.
Uma mudança, no entanto, foi determinante para consolidar a fama do local. Em meados dos anos 1980, a família decidiu não fechar mais as portas em nenhum horário.
— A noite de Porto Alegre era outra. Tinha movimento, muitas festas. E aqui ficou marcado como um ponto 24 horas — diz Artur.
Parte da clientela que se aproximou do restaurante a partir daquela época nunca colocou os pés lá de dia, a não ser na hora de ir embora. Com o entorno repleto de bares e casas noturnas — fica perto do Centro, do Bom Fim e do Moinhos de Vento —, logo começou a atrair a boemia da cidade, órfã de opções gastronômicas na madrugada.
Músicos, humoristas, políticos e prostitutas
O ambiente acolhedor promoveu uma conjunção de universos que em tempos dicotômicos soa ainda mais improvável: nas noites do Alfredo, políticos, taxistas, músicos, prostitutas, travestis, baladeiros e famílias convencionais conviviam em absoluta harmonia.
— Cansei de ir para lá e ficar até as seis da manhã. Tem tudo quanto é tipo de gente, mas todo mundo comportado — conta o humorista André Damasceno, conhecido pelo personagem Magro do Bonfa.
Morador do Bom Fim, Damasceno começou a frequentar a casa para almoçar e lanchar (é fã do bauru) no fim da década de 1970, quando cursava engenharia na PUCRS. A mudança de carreira se refletiu no seu perfil de frequentador. Na década de 1980, o local virou seu refúgio nas madrugadas, depois das apresentações ou para tomar uma saideira quando outros bares tinham encerrado a noite.
Assíduo frequentador do Alfredo, o músico Rafael Malenotti fez o caminho inverso: começou indo nos fins de noite, nos anos 1990, e, mais tarde, converteu-se em um cliente de todas as horas. A mudança ocorreu quando foi morar em um prédio na Rua Ramiro Barcelos, entre 2006 e 2009.
— O Alfredo era uma extensão da minha cozinha. Aquele paraíso gastronômico, etílico e boêmio foi minha base alimentar por vários anos. Eu era movido a almôndega e croquete — recorda o vocalista da banda Acústicos & Valvulados.
Colorado fanático, lembra que o local foi palco de um episódio insólito às vésperas do Mundial de Clubes, em 2006. Um garçom também aficionado pelo Inter e confiante na improvável vitória sobre o Barcelona — que de fato ocorreu, dando o título mundial ao clube — desafiou os clientes gremistas a apostarem uma caixa de cerveja contra o colorado.
— Ele subiu no balcão do bar e começou a apontar o dedo para todo mundo. Eu ficava com a mão na cara, pensando: “não faz isso… Pior do que perder o campeonato é perder uma caixa de cerveja”. Foi o colorado mais convicto que eu vi na vida — diz o músico, que também demonstra carinho pelo proprietário mais conhecido:
— Seu Patrício é muito gentil. O bar ficava no centro do entretenimento noturno, onde aparece muitas figuras folclóricas, e ele sempre atendeu a todos com a maior gentileza. Todo mundo se sentia bem, porque o respeito partia dele e da família.
Pandemia derrubou faturamento
Patricio assumiu o Alfredo em definitivo há cerca de 10 anos, quando a família dissociou seus dois negócios — além do bar, era proprietária de uma casa de carnes. O carisma do imigrante português sempre conquistou a freguesia, que já contou com nomes ilustres.
O cliente mais célebre foi Leonel Brizola, a quem Patricio conheceu quando era entregador de pães, e que se tornou um dos mais fiéis frequentadores do restaurante. Em uma pasta, a família guarda diversas fotos dele e de outros políticos fazendo refeições no local — algumas dos registros estão expostos em um painel afixado na parede.
Também houve famosos esporádicos. Os músicos Cauby Peixoto e Jamelão e o humorista Mussum já tomaram uma saideira no Alfredo em passagens pela Capital. Uma reportagem publicada em Zero Hora em 1996 descreveu o ponto como um “oásis dos notívagos”, frequentado por “celebridades e boêmios famosos”.
Mais generosos e menos exigentes, os notívagos estão entre os clientes preferidos dos proprietários. Quase nunca reclamam nem fazem algazarra, segundo Marcelo:
— Quando era criança, lembro que no domingo de manhã o pai sempre tinha que resolver uma briga antes de ir para o sítio. Mas nessa época não era 24 horas. De noite, é tranquilo. Nunca teve assalto — conta o mais novo dos irmãos.
O público da madrugada, entretanto, escasseou ao longo dos anos. A pandemia agravou o baque: sem poder operar no mesmo formato, a família demitiu 12 dos 20 funcionários. O faturamento caiu cerca de 80%, sem perspectiva de melhora.
Para os clientes, ainda é difícil assimilar o funcionamento do local sem a presença do patriarca. Durante a visita da reportagem ao restaurante, pelo menos três chegaram perguntando do estado de saúde de Seu Patricio. Com pesar, os filhos explicam o problema e advertem que ele “não deve aparecer tão cedo” no local, onde historicamente passava mais tempo do que na própria casa.
As netas não se interessam pelo negócio, que deve mudar de mãos depois da segunda geração, segundo Artur:
— Depois, vende-se. Tudo tem um tempo de validade, né. Até o começo dos anos 2000 era bom. Depois, a zona mudou, as boates fecharam. A cidade cresceu para outro lado — observa.