Correção: Moisés Barboza é diretor de relações da Secretaria de Relações Institucionais da prefeitura, e não vereador, como publicado entre as 3h46min de 19 de junho e as 14h46min de 20 de junho. O texto já foi corrigido.
A crise no transporte coletivo de Porto Alegre, mais visível desde o início da pandemia do coronavírus, é um problema antigo. Ano a ano, o sistema perde passageiros (entre 2010 e 2019, a queda de usuários que pagam a tarifa integral foi de 31%) ao mesmo tempo em que cobra mais caro do usuário. A tarifa de R$ 4,70 é a mais elevada entre as capitais.
O que a redução brusca gerada pela necessidade de distanciamento social fez foi deixar o cenário mais caótico. O percurso em direção ao colapso foi abreviado, e as dificuldades incluem parcelamento de salários e benefícios de rodoviários — o que acarretou em protestos. Nos últimos três meses, conforme a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), o sistema viu o número de passageiros reduzir 58,6% em comparação a igual período do ano passado, ficando na casa dos 25,3 milhões. Atualmente, 824 carros operam na frota (58% do normal) e a demanda equivale a 38,6% do registrado antes da chegada do coronavírus.
O prejuízo durante a pandemia, segundo as empresas privadas, supera os R$ 42 milhões. As reclamações, no entanto, vão muito além. Segundo a ATP, o déficit acumulado desde que vigora o contrato para prestar o serviço, assinado em fevereiro de 2016, é de R$ 222,9 milhões. Antônio Augusto Lovatto, engenheiro da associação, diz que a crise é, antes de tudo, institucional:
— Falta liberdade dos órgãos gestores para definir políticas rápidas. Eles não têm condição de legislar sobre mudanças estruturais no sistema de transporte público. O poder público é muito dependente de Câmara de Vereadores, Ministério Público, Procuradoria-Geral do Município (PGM), entre outros. Para que se mude questões técnicas, somos mais dependentes de políticos e advogados do que propriamente dos técnicos.
Especialistas na área elencam como um dos grandes problemas do sistema a forma de financiamento. É praticamente um consenso afirmar que só a passagem não é mais capaz de bancar a operação. Rafael Calabria, coordenador do programa de Mobilidade Urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), afirma que o lobby dos empresários no Congresso para conseguir socorro se intensificou e que os subsídios, mais cedo ou mais tarde, terão de chegar. Em algumas cidades, como São Paulo, já são realidade: R$ 3,5 bilhões do orçamento ajudam a fechar a conta.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor na área de transportes, Fernando Dutra Michel aponta para uma necessidade de mudança na planilha usada para definir a passagem de Porto Alegre. Para ele, calcular a tarifa com base em dados de um ano que passou, como é feito hoje, não é o mais adequado:
— No mundo inteiro, a principal ferramenta para esse cálculo é um fluxo de caixa. Você projeta, por exemplo, a demanda por 20 anos, a receita, os custos e faz um filme do que vai acontecer. Acrescenta nessa conta o que vai ser preciso de financiamento, investimento e dinheiro próprio das empresas. Em cima disso, define a tarifa.
Para desviar o sistema da cidade do caminho do abismo, a prefeitura trabalha em diferentes frentes. A que não passa pela Câmara Municipal inclui extinção de linhas com baixa demanda ou integração entre elas, o que já está sendo colocado em prática. Só na semana passada, a prefeitura transformou seis linhas da Zona Norte em três. Tornar os trajetos maiores é uma tendência.
— É preciso entrar mais nos detalhes para rever as linhas que realmente a população necessita — aponta Michel.
E isso se tornou mais relevante com a pandemia, que trouxe maior "mobilidade virtual", como define o doutor em sistemas de transporte e também professor da UFRGS João Fortini Albano:
— Pagar contas, fazer comprar, contratar serviços. Essas são ações que cada vez mais fazemos sem sair de casa. Agora, o home office foi outra coisa que ficou muito forte. Depois que a pandemia passar, essas coisas vão se manter. É possível pensar e discutir soluções para o sistema, mas é preciso entender que ele não será mais o mesmo. Menos usuários no transporte público e até mesmo menos pessoas circulando pelas cidades são uma realidade com a qual precisaremos lidar.
Numa ponta que depende de autorização do Legislativo, a prefeitura enviou para os vereadores um pacote que tem como objetivo ajudar a custear o transporte coletivo. Mais polêmica das propostas, a chamada taxa de congestionamento (ou pedágio urbano), ainda sem precedentes no Brasil, é praticada de diferentes formas em locais como Cingapura, Londres e Estocolmo — em todos eles, os impactos foram considerados positivos. O Executivo estima que a aprovação do pacote, que inclui, ainda, a taxação das viagens por aplicativos, poderia reduzir o valor da tarifa de ônibus a menos da metade.
Na avaliação da diretora da divisão América Latina da Associação Internacional do Transporte Público (UITP), Eleonora Pazos, conseguir aprovar um conjunto de medidas que promovem receitas extratarifárias poderia colocar a Capital em uma posição de vanguarda.
— Não existe uma receita de bolo, mas as boas soluções têm diversidade nas fontes de financiamento. Se Porto Alegre conseguir isso, sem dúvida, será um case mundial, porque propõe saídas que de fato podem contribuir para a sustentabilidade do sistema — diz.
Risco de pacote ficar no papel
Enviado à Câmara Municipal, o chamado pacote de mobilidade pode acabar mais um ano sem sair do papel. A poucos meses do começo da campanha eleitoral, é pouco provável que os vereadores se posicionem a favor de pautas polêmicas, que podem acarretar perdas nas urnas. Além disso, aliados do governo temem um boicote aos projetos, cuja aprovação poderia servir de trunfo eleitoral ao prefeito Nelson Marchezan, que deve disputar a reeleição.
O clima hostil mostrou-se já no começo do ano, durante a votação da proposta que desobriga a presença de cobradores. Depois de uma convocação às pressas durante o recesso legislativo, a proposta acabou derrotada.
À época,vereadores de diferentes matizes ideológicos criticaram a forma apressada com que o governo enviou o projeto para apreciação. As propostas foram protocoladas no final da tarde do dia 27 de janeiro, e as sessões convocadas para os dias 30 e 31 de janeiro — ambas acabaram não acontecendo por falta de quórum.
Discussões nas comissões da casa indicaram, ainda, que temas como a cobrança de veículos emplacados fora da cidade não teriam um caminho menos tortuoso no plenário. O projeto foi encarado com antipatia por parte dos parlamentares, e a prefeitura promete, agora, enviar à Casa uma atualização da matéria, revisando os pontos mais controversos.
Vice-líder do governo até abril, quando deixou a Câmara para assumir um cargo na Secretaria de Relações Institucionais, Moisés Barboza (PSDB), diz que há interesse em colocar os projetos em votação, mas “um grupo minoritário” tem tentado impedir que entrem em pauta. Um dos argumentos, segundo ele, tem sido a pandemia de coronavírus, que dominou as discussões nos últimos meses.
— O governo sempre defendeu que fosse apreciado o quanto antes, porque teria um impacto importante. Mas a gente nota que, pela aproximação com as eleições, tem uma politização da discussão — avalia.
Presidente da Comissão de Urbanização, Transportes e Habitação da Câmara, o vereador Roberto Robaina (PSOL) defende que haveria condições de votar os projetos antes da eleição. Ele acredita que a aprovação da taxa de mobilidade, um valor pago pelos empregadores em substituição ao vale-transporte, teria adesão da oposição.
— Pelos estudos que fizemos, essa proposta já resolveria o problema financeiro. Mas o governo tem de pedir urgência. Senão, parece que quer discursar, mas não quer votar — diz.
Propostas da prefeitura na Câmara Municipal
- Tarifa pelo uso de sistema viário para aplicativos
- Tarifa de congestionamento urbano para carros de fora (deve ser substituída por pedágio urbano no Centro Histórico)
- Taxa de mobilidade urbana em vez de vale-transporte (valor fixo cobrado das empresas para cada um dos seus trabalhadores registrados com carteira assinada tenha passe-livre)
- Redução gradual dos cobradores
- Fim da taxa de gestão da Câmara de Compensação Tarifária (CCT)
- Limitação da meia passagem para estudantes por critério de renda
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*Colaborou Josmar Leite