Quando a pandemia que virou o mundo de cabeça para baixo nos últimos meses passar, um dos maiores prejudicados terá sido o transporte coletivo, que, em muitos lugares, precisará da ajuda do poder público para seguir operando. Mas, ainda que a economia melhore, o sistema terá de lidar com o fato de que parte dos passageiros não voltará a andar de ônibus.
Trabalho e estudo remotos, aliados a uma realidade que exigirá cuidados redobrados em ambientes de aglomeração, indicam que é tempo de pensar alternativas para garantir a sustentabilidade do sistema. Rever contratos, buscar receitas além da tarifa e tornar o modal mais ágil e atrativo, fazendo com que o custo seja dividido entre mais pessoas, estão entre os desafios que precisam ser superados para os ônibus seguirem rodando.
Reunindo ideias de diversas fontes das áreas de sistemas de transporte, mobilidade urbana, defesa do consumidor e engenharia civil, além de empresários e a prefeitura de Porto Alegre, GaúchaZH traz 10 ações que podem ajudar a salvar o transporte coletivo, essencial para o funcionamento da Capital.
Curto prazo
Flexibilizar a licitação
O modelo de licitação adotado em Porto Alegre, cujo contrato foi assinado em 2016, tem validade de 20 anos. O período longo é visto por especialistas como problema, porque engessa o serviço, dificultando que ele seja adaptado às necessidades que surgirem durante esse espaço de tempo. Trabalhar com normas mais flexíveis e menor tempo de duração permitiria fazer mudanças quando há imprevistos — como a pandemia de coronavírus. Entre as alterações possíveis, poderia estar, por exemplo, a flexibilização do preço da passagem. Em vez de uma tarifa fixa, a prefeitura definiria uma tarifa-teto. As empresas, então, poderiam cobrar valores diferentes para trajetos mais curtos ou para viagens fora do horário de pico, quando menos pessoas usam o sistema. Há espaço para flexibilizar a licitação, mas isso depende de acordo entre prefeitura e empresas, com autorização de órgãos fiscalizadores.
Uso de tecnologias
Porto Alegre permite que o usuário pague a passagem em dinheiro ou com o cartão TRI. E só. Para tornar o sistema mais atrativo, são necessárias mais opções na hora de pagar, principalmente, para aqueles que não usam ônibus todos os dias. Poderia haver terminais de leitura para cartões de crédito e débito, além de um leitor de QR Code que permitisse o pagamento diretamente no celular — opções inclusive mais amigas do distanciamento social. Facilitar a compra de passagens antecipadas, sem que o usuário precise se deslocar até um ponto específico para fazer a aquisição dos passes, influencia na escolha do cliente. Melhores condições dos abrigos e paradas de ônibus, com informações sobre os itinerários que passam por ali, também é algo que falta na Capital, na visão de especialistas em transporte.
Unificação de linhas
Uma ação que se acentuou com a chegada pandemia foi a unificação de linhas em Porto Alegre — o número caiu de 371 para 194, com a integração de trajetos e a extinção de 21 linhas. Essa é uma tendência que pode ajudar a tornar o transporte público mais eficiente. No sistema atual, existe uma grande sobreposição das linhas que circulam pela Capital. Ou seja, há ônibus passando pelos mesmos locais sem necessidade. Integrar linhas de bairros próximos que vão às regiões centrais, ou criar linhas alimentadoras, que levam o passageiro até um eixo ou terminal próximo e, de lá, o usuário se deslocar até o destino final. Nas linhas alimentadoras, mesmo que haja um segundo ônibus no terminal ou eixo, o usuário só pagará uma passagem. Assim, o sistema não se torna mais caro ou menos atrativo para o passageiro.
Infraestrutura e priorização
Construir corredores de ônibus exige tempo, dinheiro e espaço. Mas pintar faixas exclusivas para serem utilizadas por coletivos somente em horário de pico é rápido e barato. Na hora de escolher como se deslocar, além do custo financeiro, o usuário calcula quanto tempo vai dispender. E, conforme especialistas, é nessa hora que o ônibus sai em desvantagem. As faixas exclusivas podem agilizar o deslocamento, principalmente, em horários com mais tráfego, tornando o ônibus mais competitivo entre as opções de escolha dos passageiros. Veja, abaixo, a situação da capital gaúcha:
MÉDIO E LONGO PRAZOS
Fontes de financiamento
Especialistas são unânimes quando o assunto é financiamento: o sistema não se sustentará se continuar dependendo apenas do usuário. Atualmente, as empresas recebem por passageiro transportado e não por serviços prestados. A revisão desse modelo passaria por essa mudança no cálculo. Uma proposta seria estabelecer um custo de operação, de modo que os ônibus receberiam pelo que rodam. Mas como as contas fechariam? Fontes ouvidas por GaúchaZH garantem que não há mais como o sistema se sustentar sem subsídios públicos. O dinheiro não precisa vir diretamente do orçamento da cidade. Em Porto Alegre, a prefeitura propõe a criação de receitas por meio de medidas como cobrança sobre os aplicativos de transporte. Os recursos arrecadados aí seriam aplicados no sistema público de ônibus. O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor na área de transportes Fernando Dutra Michel sugere, ainda, a criação de centros comerciais em grandes terminais de ônibus. Valores arrecadados com aluguéis desses pontos podem ser aplicados no sistema.
Integrar modais
Além das faixas exclusivas para ônibus, é essencial resolver o problema da primeira e da última milha do usuário. Não há como o ônibus pegar o passageiro na porta de casa e deixar em frente ao destino final. Por isso, o espaço entre o desembarque e o destino final precisa ser melhorado, tornando o deslocamento ativo — a pé ou de bicicleta — uma opção segura, além de os modais se integrarem de melhor forma. Isso pode ser feito com melhorias nos passeios públicos, mais ciclovias e possibilidade de que o usuário leve a bicicleta no transporte público. Na Capital, o Trensurb já permite que isso seja feito em vagões e horários específicos. Até mesmo a criação de estacionamentos em grandes terminais de ônibus, como sugere o professor e doutor em sistemas de transporte João Fortini Albano, poderia estimular quem anda de carro a se deslocar até um terminal e de lá partir para o destino final de ônibus.
Novos modelos de contrato
Na Capital, a prefeitura deve propor um contrato emergencial para substituir a licitação em vigor. Isso tudo para tentar manter o sistema vivo durante a pandemia e na recuperação nos primeiros anos após a crise. Porém, para estudiosos do setor, para tornar o sistema menos refém das empresas de ônibus no futuro, seria essencial dividir as licitações para prestação do serviço, deixando o controle maior sob os cuidados da prefeitura. O município poderia licitar uma fabricante de veículos para prover os ônibus e uma empresa de RH para prover os demais funcionários. Assim, o poder de barganha das empresas, que é forte hoje, seria menor. Além disso, a prefeitura teria mais tranquilidade e agilidade para promover alterações no sistema quando necessário.
Integração metropolitana
Assim como extinguir o monopólio das mesmas empresas que operam há décadas no setor com novos modelos de licitação, integrar o sistema com outras cidades é um passo difícil, mas necessário. Hoje, para andar em Porto Alegre, o passageiro usa o cartão TRI; na Região Metropolitana, o TEU. Sistemas diferentes e não integrados. Para especialistas, em cidades com grande sistema metropolitano, o funcionamento conjunto tornaria o deslocamento entre cidades mais fácil para os usuários. A Metroplan, que gere o transporte metropolitano, busca a construção de um novo edital para o sistema. Assim como a Capital deve fazer no pós-pandemia. Um caminho é pensar os dois estudos de maneira conjunta; mesmo que não iniciem a operação integrados, os sistemas poderiam ser unidos ao longo do contrato, em etapas.
Foco na demanda
Um dos pontos fracos do sistema hoje é ter de manter veículos circulando quase vazios em determinados trajetos e horários. Para que o sistema funcione de forma mais eficiente, realizando trajetos onde efetivamente os passageiros precisam se deslocar, o arquiteto e urbanista Anthony Ling sugere que os trajetos menores, em áreas de baixa densidade, sejam atendidos por operadores menores, sob demanda. O serviço poderia ser feito por vans ou micro-ônibus regulamentados pelo poder público. Melhorar a capilaridade do sistema exigiria, ainda, mais transparência sobre o funcionamento. Somente com acesso total aos dados de viagens e trajetos realizados pelos usuários é possível identificar as rotas que podem ser atendidas por demanda e direcionar a operação dos ônibus para as viagens de massa.
Menos poluentes
Ainda que sejam uma opção mais sustentável do que o transporte individual, os coletivos estão entre os principais responsáveis pela contaminação do ar nas grandes cidades. Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) calculou que veículos movidos a diesel, como caminhões e ônibus, são responsáveis por cerca da metade da concentração de compostos tóxicos na atmosfera, tais como benzeno, tolueno e material particulado. Com um agravante: na capital paulista, esses veículos representam apenas 5% da frota. Para que o transporte público possa melhorar também a qualidade de vida na cidade, é necessário buscar alternativas menos poluentes, como os modelos híbridos e elétricos. Embora custem mais caro, esses veículos, em geral, têm despesas menores de manutenção e combustível. Uma alternativa para acelerar a despoluição das frotas é dividir as licitações, separando a operação do contrato de locação de veículos.
- Fontes ouvidas: Rodrigo Tortoriello (secretário extraordiário de Mobilidade Urbana da Capital), Antônio Augusto Lovatto (engenheiro da ATP), Rafael Calabria (coordenador de mobilidade urbana do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Fernando Michel (professor da UFRGS), João Fortini Albano (professor da UFRGS), Eleonora Pazos (diretora da divisão América Latina da Associação Internacional do Transporte Público), Rodrigo Schnitzer (superintendente da Metroplan), Benjamin Kennedy Machado da Costa (presidente da Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos de Goiânia), Luis Antonio Lindau (diretor do WRI Brasil), Nívea Oppermann (professora da Unisinos) e Anthony Ling (editor do site Caos Planejado)
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*Colaborou Josmar Leite