O arquiteto brasileiro Cláudio Acioly Jr., 62 anos, conhece como poucos as administrações municipais ao redor do mundo. Como chefe de Capacitação e Formação Profissional do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU Habitat), o especialista já prestou consultoria em mais de 30 países em áreas como gestão, planejamento urbano e capacitação profissional de servidores públicos. A ONU Habitat firmou um acordo em agosto para prestar assessoria à revisão do Plano Diretor de Porto Alegre, que se encontra em andamento com auxílio de técnicos ligados à entidade. Acioly passou pela capital gaúcha em outubro para participar do 21º Congresso Brasileiro de Arquitetos, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Em um intervalo de suas atividades no evento, recebeu GaúchaZH para falar sobre temas como a parceria entre a ONU e a prefeitura de Porto Alegre e a incapacidade de as administrações municipais resolverem os problemas das cidades sem auxílio da sociedade.
Que contribuição a ONU Habitat pode dar à revisão do Plano Diretor de Porto Alegre?
Esse momento crítico de revisar o Plano Diretor é uma oportunidade de rever uma série de premissas, de observar transformações da cidade, mudanças no perfil da população e problemas e oportunidades que aparecem por conta de alterações decorrentes do avanço tecnológico, por exemplo. Em Porto Alegre, há a oportunidade de a cidade se abrir para o rio, manter relação mais direta com a água. Será que se pensou nisso 20 anos atrás? Talvez não tenha se avaliado profundamente o impacto que poderia haver na economia da cidade você ter uma área enorme como a do porto e transformá-la de forma estratégica, com diferentes usos e otimização daquela infraestrutura. Redescobrir a fachada aquática da cidade em vez de dar as costas para esse exuberante espelho d’água.
É o que a prefeitura e o Estado buscam fazer no Cais Mauá.
Estou citando um ponto que me chamou a atenção. Qual a nossa contribuição nisso como ONU Habitat? Podemos trazer para a cidade, para o corpo técnico da prefeitura, para os gestores, uma troca com outras experiências. Pôr a experiência de Porto Alegre no contexto internacional, trazer ferramentas com as quais trabalhamos em outros locais e testá-las aqui.
Que tipo de ferramentas?
Para ajudar na análise. Porque, de maneira geral, percebemos que a cultura do planejamento ainda está impregnada da visão tecnocrática e não tão integradora ou estratégica, no sentido de trazer outras variáveis que não seja só aquela do uso do solo, do urbanismo propriamente dito, do desenho, da forma, do volume e do skyline que você deseja ter.
Que outras variáveis seriam essas?
Quando falamos de mobilidade: o que outras cidades do mundo estão fazendo? É simplesmente mobilidade como transporte público ou conectar esse transporte público a outras opções? Por exemplo, oferecer ônibus, mas também bicicleta, caminhada. Mas será que a condição das calçadas permite que as pessoas circulem de maneira segura e aproveitando os espaços? Só assim podemos desencorajar o uso maciço do transporte individual motorizado.
Por razões ambientais ou de circulação mesmo?
Hoje, as cidades respondem por 70% do volume emitido de gases de efeito estufa. Temos de pensar nas próximas gerações. A China, que era considerada a maior poluidora pelo modelo de desenvolvimento que adotou e por uma urbanização nunca vista, hoje está adotando uma série de medidas. Muitas cidades estão convertendo a frota de ônibus em veículos elétricos. Tem essas mudanças ocorrendo em função de que não teremos um planeta saudável se continuarmos com certas práticas.
O Plano Diretor é um instrumento para viabilizar esse tipo de política urbana?
Eu iria entrar nesta parte. Outra contribuição que podemos dar à prefeitura é conectar o plano local da cidade com o resto. O que é o resto? É o que está se passando na área metropolitana, fora da área metropolitana e no mundo todo, que são os objetivos de desenvolvimento sustentável. Eles incluem qualidade do ar, manejo de resíduos sólidos, mobilidade, patrimônio histórico, habitação, planejamento...
É preciso buscar parcerias com o setor privado e também com outros grupos sociais organizados que querem gerar renda e emprego. A grande mudança que temos de fazer é concluir que os problemas da cidade não são só do governo. São de todos.
Hoje, municípios como Porto Alegre passam por dificuldades financeiras. É possível dar conta de todos esses desafios com poucos recursos?
Acho que sim. Mas os gestores precisam ser criativos e ampliar seus leques de possibilidades. Sei que no Brasil, hoje, o setor privado está demonizado por questões como corrupção. Criou-se a imagem de que o setor privado só entra com coisas por baixo dos panos, cria processos ilícitos, mas há um setor privado que usa sua responsabilidade social e tem o maior interesse de viver e funcionar em uma cidade que oferece qualidade de vida para os seus clientes e os seus empregados. Uma das coisas a serem feitas é essa: abrir o leque.
No sentido de estimular a busca de parcerias entre os setores público e privado?
Sim. É preciso buscar parcerias com o setor privado, mas também com outros grupos sociais organizados que estão competindo e querendo lugar na cidade onde possam gerar renda e emprego. As cidades brasileiras mostraram que é possível também ter agenda de engajamento da sociedade civil organizada na solução de problemas. A grande mudança que temos de fazer é chegar à conclusão de que os problemas da cidade não são só do governo. São coletivos, de todos. É um tipo de pacto que temos de construir pela escassez de recursos. Por exemplo, o Plano Diretor não é do governo, mas da sociedade, dos porto-alegrenses.
Em Porto Alegre, criou-se o chamado Pacto Alegre, que envolve governo, universidades, setores privados... O senhor se refere a iniciativas como essa?
Ouvi falar que se está construindo isso, é um fato positivo. Também podemos ajudar a prefeitura em termos de experiências internacionais, instrumentos e ferramentas, porque, muitas vezes, o técnico e o funcionário municipal estão sob tanta pressão, apagando tantos incêndios, que não têm tempo de se autocapacitar, ler um livro, se aprofundar. Então, muitas vezes, não têm essa chance de abrir o leque para ver o que está ocorrendo no mundo. Podemos facilitar isso, fazer oficinas internas, criar trocas entre cidades e fortalecer os quadros da prefeitura. Muita coisa também está publicada em inglês, espanhol, e nem todos têm esse domínio. E, como hoje temos essa tecnologia da informação, podemos explorar essas oportunidades para criar uma nova visão para a cidade.
Que potencialidades o senhor vislumbra em Porto Alegre?
A dinâmica construída ao longo dos anos de engajamento da sociedade civil organizada na gestão urbana é um capital de Porto Alegre. A cidade é conhecida internacionalmente por esse modelo de engajamento que o Orçamento Participativo trouxe à tona. Muitos falam que é um modelo político, mas a verdade é que vemos hoje, no Brasil, todas as cores políticas exercitando de uma forma ou de outra o que se chama de orçamento participativo. Porque é importante você trazer a população para o seu processo decisório. Claro que a responsabilidade é do governo local, a prestação de contas é do técnico formado para tomar decisões, mas diferentes tipos de consultas públicas qualificam a decisão. No fim das contas, se você coloca investimento público em um determinado local, e as pessoas nem sequer foram consultadas ou envolvidas nisso, cinco anos depois não têm o menor compromisso de manter. Tenho visto isso muito em muitas cidades. Não há uma fórmula para fazer essa participação, cada cidade tem os seus processos, mas é algo positivo. Chegamos à conclusão de que não há como um governo resolver as coisas sozinho.
A dinâmica construída ao longo dos anos de engajamento da sociedade civil na gestão urbana é um capital de Porto Alegre. É importante trazer a população para o processo decisório. Não há como um governo resolver as coisas sozinho.
Há um debate grande sobre as parcerias com o setor privado. Muitas pessoas são contra a concessão de áreas verdes, por exemplo, por considerar que é uma forma de privatização do espaço público. O senhor entende que esse é o caminho mesmo?
Entendo. A cidade tem de tratar o espaço como bem público e acessível a todos os cidadãos independentemente de cor, origem, o que seja, mas pode ter inclusive uma forma compartilhada de gestão e financiamento. Há algumas leis restritivas, porém, você pode criar essas concertações. No Peru, eles criaram as chamadas “mesas de concertação”, onde estão o governo local, o provincial, os representantes privados, comunitários, a universidade, a imprensa, e todos esses atores discutem problemas e fazem acordos para as soluções. Você tem o compromisso de dizer: “Bom, somos todos responsáveis, temos de fazer isso andar, eu vou fazer a minha parte, você faz a sua”. Você cria a corresponsabilidade, que não é só mais a minha responsabilidade como governo. Eu sei que tenho essa responsabilidade, mas tenho de ser honesto: “Olha, o meu orçamento é esse, não posso fazer mágica”. Aí entramos na criatividade do gestor. Eu acho que as prefeituras, em geral, no Brasil, captam mal.
O que significa isso?
Os cadastros são defasados, há medo de utilizar ferramentas como o Estatuto das Cidades porque vai comprar briga com setores poderosos, imposto predial, solo criado... Vocês, em Porto Alegre, tiveram a tradição de criar uma estratégia de venda de solo criado com a visão de que a cidade pode se densificar, arrecadar com isso e ter recursos para melhorar a infraestrutura e o espaço público, enfim, fazer redistribuição de benefícios na cidade para chegar a um ponto em que mais ou menos todos estão com o mínimo de acessibilidade a bens e serviços que a cidade oferece.
Muitos moradores de bairros mais tradicionais não gostam dessa política de adensamento...
Exato, mas aí vai ter que ralar para melhorar a qualidade de vida. Se não fizer isso, vamos criar uma cidade dividida, o que é ruim para todos. A segregação e a desigualdade criam um passivo que afeta a performance (da cidade) e a capacidade de avançar com suas políticas.
O senhor poderia esclarecer um pouco mais o que quis dizer quando falou que as prefeituras captam mal?
O Ministério das Cidades tinha uma série de carteiras e tinha dinheiro com a Caixa Federal para os governos municipais fazerem seus projetos. Lembro de uma visita que fiz a Porto Alegre, (o projeto) era o Habitat Brasil, tinha lá os recursos e estavam suando para preparar o projeto porque você está ocupado na sua secretaria, ou outro, na dele, todo mundo enfrentando pressão diária do secretário, do cidadão... Está todo mundo correndo, essa é a verdade. Poucas vezes quem trabalha em município está respirando. Você precisa dar atenção à formatação de projetos. Quando trabalhei com a prefeitura do Rio, durante quatro anos capacitei quadros da prefeitura, gerentes de projetos e programas. Era a primeira gestão do César Maia, que fez umas coisas interessantes.Depois, infelizmente, degringolou. Mas, na primeira gestão dele, eu nunca havia visto algo semelhante. Eles tinham um instituto, o Iplan Rio, com o qual criaram uma carteira de projetos urbanos feitos por técnicos excelentes. No momento em que houvesse dinheiro, faziam a licitação ou iam ao BNDES ou à Caixa procurar financiamento. Essa é uma linha.
Há outra?
Há a linha fiscal, que as prefeituras não estão tendo essa receita que deveriam ter porque não têm instrumentos de monitoramento, cadastros (de contribuintes) não estão atualizados, não tem mecanismo de reforço, digamos assim, você dá a cenoura mas tem de ter a vara também. Incentivo e desincentivo.
Historicamente, as cidades têm dificuldade de planejamento e execução. O que se pode fazer para melhorar isso?
Vou me referir a experiências recentes. Fiquei em Roterdã, na Holanda, por muitos anos. Percebo hoje, na Europa, na maioria dos países, que há uma accountability, uma responsabilização, prestação de contas, transparência, tudo junto, onde a cidadania está muito atuante e alerta ao que é feito com os recursos públicos, inclusive quanto tempo se leva para ter um documento, uma aprovação. E a governança eletrônica está muito forte, porque o cidadão quer saber rapidamente. Isso está levando funcionários públicos a elevar suas performances. É uma tendência forte na atualidade.
Há algum exemplo disso no Brasil?
Tem um aplicativo que nós fizemos. É um projeto financiado por um fundo de desenvolvimento da ONU, e eu coordeno isso. Em Niterói (RJ), a prefeitura assumiu compromissos. Por exemplo: se você tem um processo de solicitação de algum serviço municipal, você consegue acompanhar ao vivo onde está o seu processo, e ele tem um tempo para voltar para você com uma resposta. Isso criou um sistema dentro da prefeitura que os levou a ganharem prêmios. Os cidadãos andam pela cidade fotografando e colocam nessa plataforma digital. Um cidadão conseguiu resolver 900 problemas na cidade só com esse aplicativo...
Uma pessoa apenas?
Sim! (Risos.) Porque ele resolveu pegar o celular e ir andando e fotografando buracos, falta de luz, calçada esburacada, essas coisas que o gestor urbano muitas vezes não dá atenção porque está vendo a coisa macro, enquanto o cidadão quer a coisa no micro, quer atravessar a rua com segurança, o lixo coletado, a calçada limpa, essas coisas. Sei que a prefeitura de Niterói levou isso para a gestão financeira da cidade e tem tido impacto... Eu estive lá e fiquei orgulhoso de ser brasileiro ao ver uma cidade de 500 mil habitantes, que tem lá seus problemas, mas na qual o povo está trabalhando engajado com os funcionários públicos. Isso me dá alento. É verdade que sabemos de casos em que o funcionário público está lá encostado, desmotivado, não há como tirar o melhor dele, mas a maioria que eu conheço quer cumprir com o seu papel, fazer, inovar. Se a instituição oferece condições de trabalho, a cidade toda se beneficia.
Muitas cidades enfrentam problemas de segurança e mobilidade, enquanto a ONU estima que a urbanização seguirá em ritmo acelerado até 2050. A tendência é que esses problemas se agravem ou é uma oportunidade para resolvê-los?
Não conheço a tendência demográfica ou econômica de cada uma das cidades, mas observo que algumas começam a encolher por sua economia ou processo demográfico. Os núcleos familiares estão diminuindo, as mulheres estão decidindo não só quantos filhos querem ter, mas se querem ter filhos. Temos de observar isso, é um movimento social que está em curso. Há ainda a longevidade e as taxas de mortalidade, então temos de entender essa dinâmica social atual. Mas, olhando de maneira geral para o futuro, haverá cidades que vão envelhecer e terão de ser revitalizadas. Temos de ter instrumentos de monitoramento para ver onde isso está ocorrendo, assim como vai haver locais com outras dinâmicas muito particulares. Por isso, no começo, falei que a orla da cidade é uma tremenda oportunidade. Temos de ter esses instrumentos de monitoramento e fazer as revisões de Plano Diretor de forma mais regular. Não vamos esperar 10 anos: vamos fazer em cinco anos uma revisão mais light. Ou criamos um conselho que se encontra a cada dois anos, por exemplo. Estou dando ideias. Pode ter um seminário de governo a cada dois anos para falar de mobilidade, dos temas importantes.
Qual os principais desafios das grandes cidades brasileiras neste momento?
Cada cidade é uma cidade e tem as suas especificidades. Não teria coragem de dar uma tábula rasa, mas algumas coisas são comuns. O cidadão reclama da mobilidade e do transporte. Está certo: é onde a política pública está muito mal.