Decisões coletivas de alto impacto, como o Brexit no Reino Unido, ou arroubos individuais que mexem com as estruturas geopolíticas, como a iniciativa de Donald Trump de reconhecer Jerusalém como capital de Israel, obedecem ao que o veterano diplomata Celso Lafer considera a "geografia das paixões", termo que explica a lógica que rege o mundo atual: falta de empatia, ações políticas tomadas de supetão, levando em conta o lado emocional, e o populismo reinventado a partir das redes sociais. Ministro das Relações Exteriores nos governos Collor e FHC, Lafer acredita que o mundo hoje está mais complexo e perigoso do que estava em 2003, quando deixou o Itamaraty. Nesta entrevista, concedida durante sua passagem por Porto Alegre, no fim de 2017, ele comenta sobre Trump, Rússia, Oriente Médio, União Europeia, China e, é claro, o Brasil atual.
Desde que o senhor saiu do Itamaraty, o mundo está pior, e as relações internacionais, mais complexas?
O mundo hoje, comparado com o que existia quando fui responsável pelo Itamaraty, em 2002, está mais complicado. Se bem que, no meu período, tive de lidar com o 11 de Setembro, uma marca de mudança no funcionamento do sistema internacional. Houve a queda do Muro de Berlim, o fim da Guerra Fria, a expectativa de um mundo mais cooperativo e globalizado, de maneira construtiva. E o 11 de Setembro assinalou que não era essa a característica mais óbvia da dinâmica de funcionamento dos sistema internacional contemporâneo, mas, isso sim, os conflitos, as tensões e a violência em uma escala muito específica. Os atentados também assinalaram que uma agência não governamental, como era o caso da Al-Qaeda, seria capaz de provocar mudanças no sistema internacional e não apenas no plano político. De la para cá, o mundo se complicou muito. Uma das dificuldades que temos é entender o que se passa para podermos lidar, entender como nós, como país, nos inserimos nesse mundo complexo. É um mundo no qual você tem forças centrípetas e centrífugas. De um lado, há uma tendência a interdependência, em razão da era digital e do que ela significa em matéria de interconexão, unificação do mundo pelos meios de comunicação e de transportes. De outro, há uma resistência a esse processo.
Uma volta ao regional, ao tribal, como apontaram pensadores como Bauman e Mcluhan, entre outros?
Sim, e o retorno a coisas que, antes, pareciam menos prováveis: identitárias, como o caso da Catalunha e do Brexit, no âmbito europeu, e dificuldades que uma pessoa tão interessante quanto Angela Merkel (chanceler alemã) estão tendo para aglutinar forças e poder, junto com Emmanuel Macron (presidente da França), para dar uma vida intensa à União Europeia (UE).
No caso, uma sobrevida à UE, não?
A União Europeia foi, na segunda metade do século 20, uma das poucas utopias realizadas.
A UE era mesmo algo improvável. Se olharmos historicamente, a normalidade, na Europa, é a guerra, e não a paz.
Se você olhar no dicionário, “guerra” é o termo forte, e “paz”, o fraco. Normalmente, você define a paz como a ausência da guerra, o que mostra a prevalência do conflito sobre o potencial de paz. Mas a Europa criada após a II Guerra Mundial representou um continente em paz, democrático, com crescimento e sem grandes conflitos. Conflitos de interesse, sim, mas não conflitos de tensão. Há diferença entre controvérsia e tensão. A controvérsia é específica, você consegue enquadrá-la dentro de certos critérios e solucioná-la por meios diplomáticos ou jurídicos. A tensão, ao contrário, é difusa, eleva a complexidade das coisas e não dá para enquadrá-la dentro dos padrões de racionalidade e de razoabilidade. Vejo no mundo hoje muita tensão. E a situação da Europa é distinta da que prevaleceu porque, antes, os europeus administravam suas controvérsias e, agora, estão se confrontando com tensões, com conflitos de concepção, como é o caso do Reino Unido, que achou que deveria sair do sistema europeu, e também o caso da Catalunha, que está batalhando por uma autonomia que coloca em questão a própria existência do Estado espanhol.
É uma coisa diferente dos curdos, que aspiram a ser uma nação, um Estado. Eles têm uma identidade própria, uma língua própria, e de fato vivem em uma situação muito difícil no Iraque, na Síria e na Turquia. A aspiração a um Estado, à autodeterminação, tem uma lógica mais vigorosa nesse caso.
Há dois grandes riscos na condução da política externa. Se você se subestima, não faz nada. Se você se superestima, pode ir além das suas possibilidades. O brasil é uma potência no campo ambiental. É aí que cabe atuar.
CELSO LAFER
Diplomata
A Catalunha está inserida em um país democrático.
Sim, dentro do ambiente da UE. Isso é a expressão do que acho que é esse vigor das tendências à fragmentação. Octavio Paz (poeta, ensaísta e diplomata mexicano) usava uma expressão que falava em sublevação dos particularismos, que gera esse tipo de problema. Se você pensa quais são os grandes desafios da ação diplomática, vai identificar interesses comuns e compartilháveis. Quando há mais tensão, você não consegue achar interesses comuns nem compartilháveis. O segundo problema é como você lida com as assimetrias de poder, um tema clássico das relações internacionais, sobre as hegemonias. Esse temas estão mais complicados porque temos um mundo mais multipolar, com o deslocamento para a Ásia. Mas esse mundo multipolar não é, necessariamente, multilateral. Ou seja, não tem regras. E, se não tem regras, é caótico. Há ainda a questão de como você lida com essa torre de babel: um mundo em que as pessoas têm dificuldades de conversar e de aceitar o outro.
É o que o senhor chama de "geografia das paixões". Falta empatia no mundo atual?
Falta. A geografia das paixões está muito forte. Mesmo aqui, no plano interno, sem querer entrar na vida política brasileira, as coisas são regidas, hoje, mais pela geografia das paixões do que pela lógica. Um outro aspecto, ainda em fase de clarificação, é a nossa América do Sul. O mundo tem muitas regiões. E as regiões também têm suas especificidades. O Oriente Médio é muito diferente da Europa e da Ásia. Cada uma tem suas dificuldades, que não são pequenas. Na Ásia, há a Coreia do Norte, o problema nuclear. Você tem o Donald Trump (presidente dos EUA), que fala em “America first”. Como se vai encontrar com facilidade interesses comuns e compartilháveis quando alguém diz “Não interessa o que você queira discutir, primeiro é a América”? Difícil.
A história é pendular, ora segue um rumo progressista, ora segue um caminho conservador. Com Barack Obama nos Estados Unidos e a terceira via europeia, parecia que o mundo estava indo em uma direção progressista. O planeta deu uma guinada conservadora?
Deu, sim. E isso me preocupa. O conservadorismo se espalhou por todo o mundo.
Isso representa o fracasso da ideia de um planeta multilateral?
É um fenômeno que obedece à geografia das paixões e às sublevações dos particularismos. Muitos se beneficiam desse processo de interdependência, mas há também aqueles que estão à margem desse processo. Sem falar em um dos maiores problemas hoje em dia, que é o número de deslocados, refugiados: 60 milhões. É mais gente do que existia ao final da II Guerra Mundial sem encontrar o seu lugar no mundo. De um lado, há um processo que resulta no avanço do conhecimento, da inovação, da ciência, do ciberespaço. De outro, o drama das vontades, de como você acomoda as coisas nesse mundo em mudança constante. Preocupo-me com essa guinada para a direita, da qual os EUA são o exemplo mais clamoroso. Tivemos um presidente como Obama, que foi um homem interessante, representativo da possibilidade das inclusões sociais do país, um extraordinário orador. Agora, há um presidente que se dedica, para fazermos uma imagem um pouco juvenil, ao bullying. O estilo de ação de Trump é o bullying. Ele está se dedicando ao bullying do sistema internacional. E isso gera tensões. Claro que a diplomacia não é feita apenas de palavras, mas elas têm um peso.
A palavra do presidente dos Estados Unidos tem peso.
A palavra de um presidente dos EUA, com tudo o que ele representa, é um dado muito importante na configuração do cenário internacional. A maneira como Trump se referiu ao México, a maneira como discutiu a história do muro, de construir uma separação física ostensiva entre os EUA e o México, é muito ofensiva. Inaceitável como padrão de compreensão e de linguagem. Como você vai descobrir interesses comuns e compartilháveis quando se tem uma postura dessa natureza?
Muito mais inteligente tem sido a China na colocação das coisas. E a própria UE, também.
O senhor cita a China. Mas também a Rússia vem ganhando protagonismo. Podemos dizer que há uma nova Guerra Fria? Ou ela não acabou, como pensávamos?
A Guerra Fria mudou muito. O tipo de tensão ou de conflito de hegemonia mudou porque a velha União Soviética representava uma visão de organização do mundo, uma maneira de estruturar a sociedade e a economia. Isso acabou. Agora, o que Vladimir Putin (presidente russo) está se empenhando em fazer é colocar a Rússia no tabuleiro maior das relações internacionais.
De "Rússia first"?
Ele está jogando com os recursos de poder que têm, que não são tantos quanto eram no tempo da União Soviética. Do ponto de vista econômico, é petróleo e gás. Do ponto de vista militar, são as armas atômicas. A Rússia tomou medidas ousadas, como na crise da Ucrânia (em 2014), anunciando a reincorporação da Crimeia, algo que foge à regra tradicional. Esse princípio da integridade territorial dos Estados, que é um princípio da Carta das Nações Unidas, é um fator de estabilidade da ordem mundial. Quando se coloca isso em questão, você contribui para a instabilidade. Foi o que a Rússia fez. Mas Putin é, evidentemente, uma personalidade afirmativa e responde, no plano interno, às aspirações da atual sociedade russa, que se sentiu subalterna pelo fim da União Soviética. Agora, você olha os Brics (grupo político de cooperação internacional, cuja sigla contempla as iniciais de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que são um capítulo dessa mudança. Você tem a Rússia, que tem um papel importante no Oriente Médio. A Síria representa um desejo de dizer “temos um papel aqui”. Evidentemente, a China é a expressão mais interessante de uma mudança de organização do poder econômico, militar e geopolítico. Sem dúvida, os chineses têm ocupado esse espaço com determinação e inteligência. A Índia tem crescido muito e tem sido importante. Depois, temos a África do Sul, um país que ainda enfrenta dificuldades de consolidação interna. Teve um desenvolvimento extraordinário, um líder fantástico, Nelson Mandela, mas a sucessão e a transição ainda não equacionou direito seu papel no mundo. E nós?
Qual o papel do Brasil no cenário mundial?
Há certos países grandes pela escala. China, Índia, EUA, Rússia são exemplos. Nós também. A China não resolveu todos os seus problemas de fronteira e nem sua relação com outros países da região, como Japão, Coreia, Índia. A Rússia também não tem seus problemas de fronteira equacionados. A Índia tem problemas com o Paquistão. E os EUA acham que a sua fronteira é o mundo. Como o mundo é tenso, suas fronteiras são tensas. Temos a vantagem de ser um país em escala continental sem problemas de fronteira. E temos nos empenhado em fazer dessas fronteiras um ambiente de cooperação. O Mercosul é um exemplo da sinergia que vem da economia.
O Brasil é um jogador importante ou só tem arroubos de grandeza, como no governo Lula?
Há dois grandes riscos na condução da política externa. Se você se subestima, não faz nada. Se se superestima, pode ir além das suas reais possibilidades. Você atua como país normalmente em três campos: econômico, estratégico-militar e na maneira de conceber a vida em sociedade. O Brasil tem recursos de poder, tem áreas nas quais é uma influência. No campo ambiental, nenhum dos problemas do mundo – mudanças climáticas, estrutura energética, biodiversidade – pode ser resolvido sem o Brasil. Somos potência nessa área. É aí que cabe atuar. Mas não somos uma potência militar, por exemplo.
Nesse sentido, a missão no Haiti foi um erro?
Não. Foi uma coisa de interesse. Está dentro da nossa área. Fez sentido. Não fez sentido tentar resolver o problema do Irã. Não só não temos influência como um acordo, ali, é complicado. Fui embaixador em Genebra na conferência de desarmamento e participei das negociações do CTBT (sigla a partir do inglês para o Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares). Aquilo é uma discussão técnica muito grande. Fomos impelidos por um desejo de ter um papel mais atuante sem estarmos equipados para fazer entrar na questão. Para você atuar, dependendo da área que escolhe, é preciso ter uma retaguarda de conhecimento apropriada. Na (conferência internacional) Rio- 92, que é o marco inicial de nossa atuação (como ministro de Relações Exteriores), nos preparamos bem. Não dá para improvisar. Governar é escolher. Você tem de definir.
O Brasil tem uma diplomacia de governo ou uma diplomacia de Estado?
A tradição é a da diplomacia de Estado. Mas quem conduz as linhas da política externa, pela Constituição, é o presidente da República, com a colaboração de seu ministro de Relações Exteriores. Então, naturalmente, há ênfases maiores ou menores. Houve na presidência de Lula, com (seus ministros) Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia, uma partidarização da política externa. Naturalmente, isso gerou conflito. Na medida em que Lula e Amorim se consideraram o marco zero da diplomacia brasileira, naturalmente alienaram todos os seus predecessores. Se vocês são o marco zero, somos o sub do sub. Evidentemente não podíamos estar à vontade.