Embora o Censo de 2010 aponte que 84% dos brasileiros vivam em cidades, esses espaços são pouco discutidos no país. Essa percepção levou Anthony Ling, 32 anos, arquiteto pela UFRGS, a fundar o site Caos Planejado. O nome dialoga com a sua visão sobre as metrópoles: espaços cuja espontaneidade precisa ser respeitada, mas que pode ser direcionada.
Ao longo de cinco anos, o portal se consolidou como um hub de ideias sobre urbanismo para metrópoles brasileiras. Desde fevereiro, o espaço conta também com um podcast, com entrevistas com autoridades e especialistas em planejamento urbano, mobilidade e habitação.
Conforme as eleições de 2016 se aproximaram, candidatos leitores do Caos Urbano procuraram Ling interessados em consultorias. Em vez de se engajar em um projeto político, decidiu compilar as ideias mais valiosas do site em um guia para interessados em desenvolvimento sustentável. Em 2017, a iniciativa foi transformada em livro, o Guia de Gestão Urbana (Ed. Bei).
Colaborador de GaúchaZH em artigos, Ling chama a atenção pelas ideias inusitadas para Porto Alegre. Cidade em que enxerga vícios modernistas, mas um tremendo potencial de revitalização.
Porto Alegre está prestes a atualizar seu plano diretor. Você enxerga alguma questão urgente a ser revista?
Eu começaria por uma mudança de paradigma. Vejo a prefeitura como responsável pelas áreas públicas da cidade. Ou seja: ela deve pensar ruas, calçadas, arborização, iluminação, saneamento, drenagem… E também regular o uso do espaço público: vamos cobrar para estacionar? Vai ter um parque aqui ou ali? Isso se faz muito pouco no planejamento urbano. Pouco se discute o quanto da faixa viária será do carro, da bicicleta, do pedestre. Pouco se discute a manutenção das calçadas, o tempo dos deslocamentos. Em contrapartida, se discute muito o que vão fazer nos terrenos privados: se deve ser residencial ou comercial, qual é o tamanho máximo das unidades. Uma das coisas que eu acho mais absurdas é a exigência de vagas de garagens em imóveis.
Você entende que exigir vagas de garagem em imóveis estimula o uso do carro. Mas imagino que o plano diretor as exija justamente para que os carros não fiquem estacionados na rua. Não é uma visão compreensível?
Resumindo bem, esse não é um problema da prefeitura. Na minha concepção, vaga de estacionamento pública ou deveria ser paga, ou não deveria existir. Mais do que estimular, hoje se subsidia o uso do carro de várias formas. Desde a obrigatoriedade de vagas de garagem, a rua grátis para andar com ele e, principalmente, por meio de obras públicas, por demanda induzida. Assim que você inaugura a Terceira Perimetral, por exemplo, parece que ela já foi concebida errada, deveria ser maior ainda. Constroem-se trincheiras, viadutos… E como são as paradas de ônibus da Terceira Perimetral? Uma delas é em cima de um viaduto. Um inferno para se deslocar a pé. Isso escanteia quem anda a pé, quem anda de ônibus.
O transporte por aplicativo, por um lado, te propicia deixar o veículo próprio em casa, ou não tê-lo. Por outro, compete com o transporte público, que perde passageiros a cada dia. O impacto dos aplicativos é melhor ou pior paras as cidades?
Na questão do transporte público, o aplicativo é a gota d'água. As empresas de ônibus já vinham enfrentando problemas antes. Gradualmente, já se vinha favorecendo o automóvel. O que é incrível, porque é muito caro comprar um carro no Brasil. Mas a cidade nos torna tão dependentes dessa porcaria que as pessoas se obrigam e compram. Se não podem comprar carro, compram uma moto. O sucesso do aplicativo é consequência da nossa necessidade de carro. A questão fundamental é que andar a pé ou de ônibus se tornou mais trabalhoso. O aplicativo tem um papel, sim, mas é reduzido no grande esquema das coisas.
Virou um grande tabu se falar em transporte por van no Brasil, e evidentemente há um lobby das concessionárias de ônibus influenciando isso.
Há um aspecto cruel nessa questão. Se a classe média troca o transporte coletivo pelo aplicativo, acaba afetando a rentabilidade dos ônibus e, consequentemente, o serviço das pessoas que saem de regiões periféricas na direção do centro, para as quais o uso do aplicativo é proibitivo. Qual é a perspectiva de futuro para esse usuário?
Pois então. Digamos que esse cara que mora na Restinga, por exemplo, resolva solucionar o problema dele e dos vizinhos. Compra uma van, combina um rateio e transporta todos para o centro da cidade. Hoje, esse cara é um criminoso. Eu não acho que ele deveria ser. Virou um grande tabu se falar em transporte por van no Brasil, e evidentemente há um lobby das concessionárias de ônibus influenciando isso. Existe um certo trauma do Brasil dos anos 1980, quando um ônibus era uma máquina de dinheiro e as kombis entraram ilegalmente. O principal argumento para barrá-las é que elas tornavam o trânsito "caótico". Ah, e o carro não? Conforme a densidade demográfica vai diminuindo e a distância vai aumentando, o sistema de transporte se torna menos viável. Quando você só permite veículos grandes, como ônibus, isso se agrava. Veículos menores, como lotações, só que mais baratos, também seriam bem-vindos.
Uma das suas críticas a Porto Alegre é de que ela é pouco caminhável por conta de calçadas estreitas e dos recuos largos. Você faz uma relação curiosa disso com os shoppings...
Não é apenas Porto Alegre. Isso foi verificado em um estudo de centenas de cidades do Brasil relacionando caminhabilidade e recuos entre edificações. Quanto maiores os recuos, menor o trânsito de pedestres. O curioso é que nenhum urbanista chegou em Paris e Tóquio e planejou isso: "Nós precisamos de uma cidade caminhável! Que favoreça o pedestre!". Um imóvel ocupa o terreno até seu alinhamento, nessas cidades, simplesmente para aproveitá-lo melhor. Como há trânsito de pedestres, uma loja no térreo faz sentido. Ao lado desse imóvel, outro funciona do mesmo modo e se forma uma faixa de lojas com residências em cima. Como funcionam os shoppings? Fachadas de lojas paralelas com calçadas amplas de circulação, como poderia ser o térreo da cidade.
Por que isso não ocorreu nas metrópoles brasileiras?
Mais do que em uma série de lugares, nós fomos influenciados pelo urbanismo modernista, que construiu Brasília. Parte da ideia de que a gente vai organizar tudo: diversão vai ser aqui, moradia vai ser ali. E o que é o mais louco disso: vem da "teoria da miasma". Até o século 19, se acreditava que a cidade era uma coisa ruim e que as pessoas adoeciam por estarem muito perto umas das outras. Miasma significa "ar ruim". Com o tempo, viu-se que a culpada das doenças era muito mais a falta de saneamento básico. Mas ficou essa ideia de que nós precisamos de lugares amplos e ensolarados. Nas cidades, isso foi incorporado com a obrigatoriedade de recuos nos imóveis. O que eu acho: o cidadão que quer ar, espaço, luz, tem essa opção em áreas públicas. O que o urbanismo faz hoje é restringir a opção dos outros. Se você quiser morar em um lugar mais caminhável, mais diverso e mais barato, vai ser difícil encontrá-lo. Em Porto Alegre isso é especialmente contraditório, porque é uma das capitais mais verticalizadas, onde mais pessoas moram em apartamentos. Mas observe os prédios: recuados, cercados, um banco de praça para o lado de dentro e, do lado de fora, calçadas de um metro sem gente caminhando. Defendo, inclusive, que as calçadas sejam de responsabilidade do poder público. Não há bom motivo para a via ser e a calçada, não.
Por enquanto, só malhamos Porto Alegre (risos). A cidade está melhorando em algum aspecto?
Vejamos. A cidade está falida. Seu plano diretor é um dos mais restritivos. Ela empurra pessoas em direção a bairros afastados ou à Região Metropolitana porque é caro morar na área central. A maioria das obras de infraestrutura são trincheiras, viadutos e alargamentos de rua... Ah! Lembrei de uma coisa boa: estão consertando os parquímetros depois de sei lá quantos anos. Isso é positivo. Também há um mínimo de investimento em ciclovias e as pessoas estão usando — mais por coragem do que por infraestrutura. Mas aqui vou encaixar uma crítica: uma das maiores ciclovias é a da orla, que não serve para nada no sistema de trânsito. É apenas recreativa.
O sistema de compartilhamento de bicicletas na cidade é um sucesso. O número de viagens, em média, de cada bicicleta, supera o de Barcelona, por exemplo. Não é um ponto positivo?
Sem dúvida. A infraestrutura da ciclovia é relativamente baixa. Tanto a obra quanto o espaço ocupado por ela depois. As pessoas acabam não andando muitas vezes por não terem um espaço dedicado às bicicletas, mas o sonho seria que os veículos andassem junto. Quanto mais bicicletas na rua, mais os outros veículos vão respeitá-las.
A prefeitura vem usando o GPS do próprio BikePoa para transformar vias de baixa velocidade em "ciclorrotas". Em vez de ciclovia, haveria só a sinalização de que o caminho é usado por bicicletas. A rua seria compartilhada com carros.
Essa é uma boa estratégia. Inclusive, abordo isso no Guia de Gestão Urbana. Mas é preciso ter em mente que, em uma cidade como Porto Alegre, a bicicleta sempre vai ser usada por um percentual pequeno de pessoas — pelas distâncias, pela geografia, não dá para compará-la com uma cidade europeia. Ajuda a melhorar o sistema, mas o espaço para crescimento é relativamente restrito. Não há como vir da Região Metropolitana para o Centro de bicicleta, ou da Zona Sul. Se desço de onde moro (no Moinhos de Vento) até o Centro, já não consigo voltar para casa pedalando.
E os patinetes? É só moda ou pode ter uma serventia no sistema de transporte?
Torço para que dê certo. Se eu coloco o chapéu de urbanista, penso: "Pô, legal patinete. Tenta aí. Vê se dá certo". Mas, se eu coloco o de empreendedor, eu não investiria. Cada um custa alguns milhares de reais, precisa recarregar. E ele é uma solução importada para resolver aquilo que os norte-americanos chamam de "última milha" — do ponto de ônibus até a porta de casa. Só que, no Brasil, a última milha é justamente a mais acidentada, com as piores calçadas. A bicicleta compartilhada me parece muito mais fácil de dar certo: resiste bem a ruas esburacadas, todo mundo sabe usar, não precisa recarregar, está aí há mais de cem anos (risos). Eu tentaria consolidar isso.
A bicicleta compartilhada me parece muito mais fácil de dar certo: resiste bem a ruas esburacadas, todo mundo sabe usar, não precisa recarregar, está aí há mais de cem anos (risos).
Falando em soluções importadas, cada vez mais metrópoles estrangeiras apostam em pedágios urbanos para evitar engarrafamentos. Teríamos maturidade para aplicar algo assim no Brasil?
Infelizmente, algumas discussões só acontecem quando a cidade para. Em São Paulo, por exemplo, o tempo médio gasto no trânsito é de três horas. É evidente que algo precisa ser feito, então esse debate está posto. Mas sobre essa questão: prefiro chamar de "taxa de congestionamento" do que de "pedágio urbano". Porque deixa claro que há um ofensor, um inimigo a ser combatido por meio da taxa. Pedágio urbano dá a ideia de que era de graça e agora vão te cobrar para andar na rua. Do ponto de vista de gestão pública, também faz sentido, porque implementar uma taxa é uma receita, e construir um viaduto, além de pouco adiantar, é uma despesa. Tive a oportunidade de visitar Singapura, onde há o sistema mais avançado do mundo nisso. Funciona por câmeras, os preços mudam conforme os horários e os dias de semana e a conta vem ao final, como uma corrida por aplicativo. É mais sofisticado do que simplesmente cobrar para entrar no centro, por exemplo. Não existe congestionamento por lá, porque a malha viária é melhor aproveitada. Os ônibus podem andar, o que torna a discussão sobre faixas exclusivas menos relevante. No caso de Porto Alegre, acho mais racional pensar em algo assim e reverter essa arrecadação para o sistema de transporte do que ficar sonhando com projetos grandiosos, caríssimos e sem muito sentido, como o metrô.
Como você enxerga os problemas de convivência na cidade, a exemplo dos conflitos que ocorreram na Rua João Alfredo, na Cidade Baixa, nos últimos anos, e especificamente no Carnaval deste ano em ruas próximas do mesmo bairro?
As principais críticas são em relação aos excessos, e é evidente que excessos, como som muito alto e xixi na rua, devem ser fiscalizados e coibidos. É preciso fiscalizar, por se tratar de uma massa grande de pessoas. Mas eu não acho que se deveria coibir esse comportamento a ponto de ele não existir. De forma geral, acho saudável a ocupação. Porque a Cidade Baixa é uma das poucas regiões que permitem esse tipo de convivência. A vida em cidade requer entendimentos. Você não pode simplesmente apontar o dedo e dizer: "Olha que absurdo o que ele está fazendo ali!". Isso é mentalidade de cidade pequena, em que um vizinho fiscaliza a vida do outro. A vida em cidade requer aprendizado e convivência com diferenças. Então você deve conviver com quem ocupa a rua, e esses frequentadores devem respeitar você de volta.
Talvez por acharem que esses excessos não são coibidos, parece, às vezes, que o porto-alegrense se tornou muito refratário a qualquer evento de rua. É raro encontrarmos uma associação de moradores que seja favorável a um evento como o Saint Patrick's Day, ou a um bloco de Carnaval.
Pode ser. Mas, olha, isso tem em todos os lugares. Já vi isso até em Nova York, que é uma selva urbana. Morei em Palo Alto, na Califórnia, que é uma cidade micro. Os moradores barram tudo. Uma das discussões ali era a comunidade contestando a ampliação de uma escola. De uma escola! A justificativa era o aumento do trânsito, só que eu não vi trânsito nenhum lá. E isso é muito mais frequente em bairros de alta renda. Em São Paulo, é nos Jardins, por exemplo. Em Porto Alegre, no Moinhos de Vento. É um pessoal que tem voz, dinheiro, tempo de passar o dia discutindo... Existe até um termo em inglês para essas pessoas, são os "NIMBs": Not in my back yard ("não no meu quintal").
E quanto à nova orla: o que podemos aprender com essa experiência que tem agradado às pessoas?
Ficou muito bom, mesmo. Era uma área esquecida da cidade. Em qualquer momento, está bem iluminada, cuidada, limpa, então vai ser usada. Acho que o melhor legado dela é ser um exemplo de que nem sempre o lado bom de uma iniciativa é visível antes de tentá-la. Ao defender a derrubada do muro da Mauá, tenho justamente essa dificuldade. Os engenheiros que defendem a manutenção do muro só veem o lado ruim de não ter mais uma proteção contra enchentes. Porque certos benefícios de se investir em uma região não são visíveis antes de ocorrerem. A orla se tornou um exemplo de aposta na revitalização de uma região que deu certo.
Existem outras áreas com esse potencial de revitalização em Porto Alegre?
Claro. E, diferentemente da orla, que foi realizada por meio de um financiamento estrangeiro, poderia haver muito mais criatividade em operações urbanas para ajudar a viabilizá-las. Quer ver uma área com esse enorme potencial? A Avenida Ipiranga. O Estatuto da Cidade permite delimitar determinadas áreas para vender potenciais construtivos a fim de arrecadar dinheiro e se investir de volta naquela mesma área. É como se fosse um ajuste do plano diretor para uma área específica. Imagine se Porto Alegre decidisse mudar a cara da Ipiranga. Você poderia aumentar em, sei lá, cinco vezes o índice construtivo nas adjacências. Hoje ele é baixíssimo, e nada explica isso. Com a venda desse potencial construtivo, você usa o recurso para melhorar calçadas, corredores, coloca uma ciclovia decente. E, olha só, ainda arrecada dinheiro para despoluir o Arroio Dilúvio. Em São Paulo, a Avenida Faria Lima foi transformada dessa forma. Ainda quero fazer uma operação urbana conceitual para apresentar e ver se cola. Por que às vezes falta isso. Alguém que pense uma região específica, um instrumento legal específico. É um "penso crítico" em relação à cidade.