Em 9 de fevereiro de 2018, uma enxurrada castigou Porto Alegre. O vento de 80 km/h derrubou árvores, quebrou vidraças por vários cantos da cidade e arrancou telhas de armazéns do Cais Mauá. O episódio exigia ação imediata para não expor à deterioração forros de madeira-de-lei antigos, que compõem estruturas tombadas como patrimônio histórico. Entretanto, nada foi feito.
"O temporal ocorreu há um ano e sequer um prego foi colocado ou retirado dos telhados". A frase faz parte de um relatório de fiscalização da Secretaria Estadual de Logística e Transportes sobre a revitalização do porto. O documento de 2019 — que afirma existir "uma espécie de paralisia" da Cais Mauá do Brasil (CMB) — evidencia que Porto Alegre está diante de "um paciente na UTI", expressão usada pelos próprios gestores da empresa arrendatária.
Marcado por promessas não cumpridas, questionamentos do Ministério Público de Contas, suspeitas da Polícia Federal (PF), dívidas e processos judiciais, o projeto de R$ 600 milhões chegou ao nível mais crítico neste ano. Há possibilidade de rescisão de contrato e volta à estaca zero, medida mais radical que pode ser tomada pelo governo do Estado.
A aposta para salvar o doente, em um momento de crise econômica, consiste em uma iniciativa a curto prazo: o Cais Embarcadero, que deve abrir à população com áreas de lazer e opções gastronômicas no segundo semestre. Novas formas de captar recursos e busca de parceiros com credibilidade no mercado também tentam fugir da sucessão de erros que, ao longo de quase uma década, foi tornando mais inverossímil a iniciativa que previa 28 mil empregos e recolhimento de R$ 216 milhões em impostos por 25 anos — desses, já se passaram mais de oito.
— Temos quase 10 anos de ensinamento de como não deveria ter sido feito esse projeto — avalia Fernando Estima, diretor-superintendente dos Portos do Rio Grande do Sul, responsável pelo acompanhamento da revitalização.
Única candidata e vencedora da licitação, a CMB, constituída em dezembro de 2010, nasceu sob forma de um consórcio com 90% de participação de quatro empresas espanholas — com expectativa de capitanear um sonho de colocar Porto Alegre no mapa internacional de revitalizações em áreas portuárias.
Temos quase 10 anos de ensinamento de como não deveria ter sido feito esse projeto
FERNANDO ESTIMA
Diretor-superintendente dos Portos do Rio Grande do Sul
Mas a CMB é, até hoje, uma empresa em fase pré-operacional. Não tem receita, só despesa, e registra prejuízo de R$ 50,9 milhões, conforme o balanço de 2017 (o de 2018 deve ser divulgado até junho). Está no sexto presidente desde sua abertura, e acumula débito de R$ 5,3 milhões com o Estado, referente ao arrendamento da área.
Os espanhóis, praticamente, abandonaram o projeto. A participação na CMB minguou para 9,89%. A Contern Construções e Comércio, pertencente ao grupo Bertin, investigado pela Operação Lava-Jato, tinha 10%, reduziu para 1,94% das ações e desde 2017 está em recuperação judicial.
Com 88,17% das cotas, o acionista majoritário da CMB é o Fundo de Investimento em Participações Cais Mauá do Brasil Infraestrutura (FIP Cais Mauá). Criado em 2012 para captar recursos para as obras, o FIP está no terceiro administrador, vem perdendo patrimônio nos últimos dois anos — teve rentabilidade negativa (-1,4%) em 2017 —, e é alvo de uma investigação da Polícia Federal (PF) por suspeita de desvio de dinheiro envolvendo ex-dirigentes.
A Operação Gatekeepers (porteiros, em inglês), deflagrada em abril do ano passado, afugentou novos investidores e provocou bloqueio judicial de contas bancárias do FIP e da CMB, agravando a já existente dificuldade fiscal e de imagem do empreendimento. A quase totalidade dos recursos do FIP tem origem em fundos de pensão de funcionários públicos que não sabem quando terão retorno do dinheiro.
Ata da assembleia geral de acionistas, em novembro, revela insucesso na tentativa de venda de R$ 6 milhões em cotas, que visavam aporte adicional para pagamento de despesas do FIP. A iniciativa fracassou por causa de novas regras do mercado de capitais. O documento expressa dificuldade em pagar despesas ordinárias como taxas para a Comissão de Valores Mobiliários e auditoria, e ressalta necessidade de tentar desbloqueio judicial de R$ 2 milhões — determinado pela Justiça do Tocantins — o que ainda não aconteceu.
Em meio a isso, o Ministério Público de Contas (MPC) pressiona o Tribunal de Contas do Estado (TCE) para evitar a realização de obras consideradas irreversíveis, até que a CMB apresente garantias bancárias de que tem recursos para a revitalização. Já requereu três vezes ao TCE medida cautelar a fim de assegurar que o empreendimento se mostre viável, mas os três pedidos foram negados. O MPC está recorrendo ao pleno do TCE.
A questão é controversa e gera diferentes interpretações. O governo estadual e a CMB entendem que a exigência, prevista em contrato, é desnecessária, mas é contestada em ações na Justiça por integrantes da Associação Amigos do Cais Mauá (Amacais), entidade que reúne urbanistas, ambientalistas, arquitetos, advogados entre outros profissionais que defendem mudanças no projeto. A legislação municipal que trata sobre índices urbanísticos para área do cais também é contestada judicialmente pela seccional gaúcha do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS).
Exemplo desperdiçado
Em dezembro de 2012, a Vonpar revelou interesse em participar do projeto com a instalação de uma réplica do processo de produção de Coca-Cola em um dos armazéns do cais chamada de Fábrica da Felicidade, aberta à exposição pública. O espaço previa painéis contando a chegada do refrigerante no Brasil e no Rio Grande do Sul.
A iniciativa visava a atrair visitantes para Copa do Mundo de 2014. A demora na execução do projeto de revitalização mudou planos da Vonpar, que no ano seguinte desistiu de montar a minifábrica da Coca-Cola. O equipamento foi instalado na sede da empresa em Porto Alegre, a exemplo do que existe em outras seis unidades de produção da bebida no país.