A intenção da prefeitura de Porto Alegre de compartilhar a gestão do Hospital de Pronto Socorro (HPS) com uma organização privada, que desperta polêmica entre servidores e na Câmara Municipal, é a medida mais visível de uma tendência no sistema público da Capital ao longo dos últimos anos. Hoje, 29% do orçamento da Saúde da cidade já vai para parceiros privados que respondem pela administração de unidades básicas, pronto-atendimentos e hospitais.
Conforme informações da Secretaria Municipal da Saúde, o setor exclusivamente estatal recebe R$ 1,35 bilhão ao ano, enquanto a rede administrada por outras entidades fica com R$ 552,4 milhões. A inclusão do HPS e de seu orçamento próximo a R$ 200 milhões ao ano nessa segunda categoria poderia elevar o percentual do orçamento gerido por parceiros, em tese, para até 36%.
Atualmente há 10 postos, dois pronto-atendimentos e três hospitais que funcionam em parceria com organizações não-governamentais. Dois pronto-atendimentos tiveram o edital para terceirizar a gestão lançado na terça-feira (16), e o HPS poderá seguir o mesmo caminho. Há uma avaliação na gestão Marchezan de que terceirizar a administração do estabelecimento facilitaria a contratação de pessoal e compras de materiais e equipamentos.
— A iniciativa privada é muito mais ágil — afirmou o prefeito Nelson Marchezan em entrevista na Rádio Gaúcha quinta-feira (11) passada.
A consultoria paulista Planisa vai esmiuçar as atividades do hospital entre 17 de abril e o final de maio para dar subsídio à proposta final de mudança na administração do HPS. Enquanto isso, outros estabelecimentos já funcionam com base em parcerias semelhantes.
Entre os postos de saúde, a maioria ainda é gerida pela prefeitura por meio do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família, mas 10% das 140 unidades já estão sob responsabilidade de organizações sociais. Daquelas terceirizadas, 12 são administradas pelo Grupo Hospitalar Conceição, uma pela PUCRS e outra pelo Hospital de Clínicas. De quatro pronto-atendimentos (Cruzeiro do Sul, Lomba do Pinheiro, Bom Jesus e Moacyr Scliar), o da Lomba do Pinheiro tem metade do serviço prestado mediante convênio com a PUCRS. Como o contrato está por vencer, o município está fazendo um chamamento público para parcerias nesta unidade e a fim de implantar o mesmo modelo na Bom Jesus. Já a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Moacyr Scliar é operada pelo Conceição.
O objetivo é converter a Lomba e a Bom Jesus em UPAs, o que permitiria receber verba federal. Na rede de maior complexidade, os hospitais da Restinga (Vila Nova), o Santa Ana (São Carlos, mantenedora do Mãe de Deus) e o Independência (Divina Providência) também funcionam sob gestão privada.
— É preciso desfazer o mito de que saúde pública precisa ser estatal. A prestação do serviço não precisa ser estatal. Não é de hoje que temos entidades privadas prestando serviço público, desde a Santa Casa de Misericórdia — avalia o secretário municipal da Saúde, Pablo Stürmer.
O secretário afirma que não há um projeto pré-estabelecido de conceder um determinado percentual da rede pública a organizações sociais. A intenção da prefeitura, conforme o secretário, é avaliar caso a caso e ceder a gestão de um estabelecimento quando se entender que é a melhor saída. Mas sustenta que esse tipo de contrato deverá aumentar na cidade:
— Há espaço para mais (parcerias). O edital dos pronto-atendimentos é um exemplo disso. É uma alternativa até pensando na situação financeira da prefeitura, já que o gasto com pessoal costuma estar sempre perto do limite de alerta.
Com o repasse dos recursos para administração privada, a contratação de profissionais não é contabilizada como gasto com pessoal da prefeitura. A coordenadora do Conselho Municipal de Saúde, Maria Letícia de Oliveira Garcia, vê com ressalvas a intensificação das parcerias na saúde da Capital.
— Temos exemplos de corrupção e desvios de recursos envolvendo a terceirização na saúde pública, como ocorreu com o Instituto Sollus em Porto Alegre há alguns anos, o que levou à devolução de R$ 10 milhões aos cofres públicos recentemente. A gestão (da saúde pública) precisa ser profissionalizada, não terceirizada — afirma Maria Letícia, que representa o segmento dos trabalhadores no conselho.
Onde funcionou e onde deu errado
Hospital Independência
Afetado pela crise na Ulbra, sua antiga mantenedora, o Hospital Independência, em Porto Alegre, ficou mais de três anos de portas fechadas. O prédio localizado na Avenida Antonio de Carvalho voltou para a União, que o cedeu para uso do município. Desde 2012, a instituição voltou a funcionar graças a uma parceria da prefeitura com a Sociedade Sulina Divina Providência. Em abril, a instituição recebeu um selo de nível 2 da Organização Nacional de Acreditação (ONA) - um certificado de qualidade ostentado por poucos estabelecimentos no país.
Conforme o diretor-técnico do Independência, Ângelo Giugliani Chaves, o hospital especializado em traumatologia e ortopedia conta com cem leitos 100% SUS e realiza 2,5 mil consultas, 350 cirurgias e 400 internações por mês. O número de profissionais é de aproximadamente 500, dos quais 450 são contratados diretamente pela mantenedora por CLT.
— Somos integralmente regulados pelo município, e oito dos nossos leitos de UTI recebem pacientes com qualquer tipo de problema, não apenas de traumato-ortopedia — diz Chaves.
Pronto Socorro de Canoas
A instituição canoense, junto com o Hospital Universitário, UPAs e CAPs do município, foi colocada sob responsabilidade de um parceiro privado — o Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp). O contrato assinado em dezembro de 2016 previa o repasse de cerca de R$ 1 bilhão ao longo de cinco anos. Porém, suspeitas de irregularidades levaram a uma Operação do Ministério Público em dezembro do ano passado e à prisão de quatro pessoas ligadas à entidade.
A relação entre prefeitura e Gamp foi marcada por atraso no pagamento de funcionários, greves, carência de medicamentos e produtos e falhas no atendimento. Em razão disso, e do atraso no repasse de parcelas do governo estadual, no ano passado todos os procedimentos eletivos chegaram a ser suspensos temporariamente. A situação começou a melhorar quando o Gamp deixou a gestão da saúde municipal, e a prefeitura reassumiu a administração do Pronto Socorro e dos demais estabelecimentos.