A despeito da falta de segurança, da falta de incentivo e da infraestrutura precária, parte de Porto Alegre canta e dança em praça pública, à noite, toda semana. Realizadas no mesmo dia, com início no mesmo horário, rodas de samba nos viadutos Otávio Rocha e Imperatriz Leopoldina reúnem há meses centenas de porto-alegrenses em torno de músicos. Ali celebram, à moda carioca, um ritmo genuinamente brasileiro.
O pontapé inicial dos sambas nos viadutos foi dado pelo bar Tutti Giorni, na escadaria da Avenida Borges de Medeiros, há cerca de dois anos. Um trio de músicos começou a tocar na parte externa do bar às terças-feiras à noite, despertando a atenção de quem circulava pelo local. Em meses, o trecho da escadaria onde os músicos se reúnem passou a ficar tomado de gente.
Com o sucesso do samba, o local ficou pequeno para a banda Encruzilhada do Samba, que aumentou de tamanho — hoje são sete músicos. Em busca de outro lugar para realizar a roda, o grupo migrou para o Viaduto Imperatriz Leopoldina, o Brooklyn, onde fechou parceria com um espaço cultural que funciona como bar e promove eventos sob o viaduto.
— A música latina e o samba têm crescido bastante em Porto Alegre. E a roda é uma coisa legal porque circula bastante gente, proporciona interação com o público. E qualquer um pode chegar — avalia Márcio Marques da Silva, um dos sócios do Espaço Cultural Lechiguana, que funciona no Brooklyn desde o ano passado.
A experiência bem sucedida na escadaria da Borges fez com que o proprietário do Tutti Giorni, Ernani Marchioretto, desse continuidade ao projeto — hoje embalado pelo Grupo Puro Asthral. Agora, os fãs do ritmo na Capital têm duas opções gratuitas no mesmo dia, ambas com início às 19h. Para não incomodar a vizinhança, o samba na Borges encerra mais cedo que o do Brooklyn, às 21h.
— Até o samba, o Tutti nunca teve música ao vivo, mas nos espaços que chegou, sempre revitalizou. Quando eu abri, isso aqui era um gueto: era cheio de colchão, as pessoas dormiam aqui na frente. Tem que povoar os espaços. Se deixar na mão do poder público, a coisa não vai pra frente — avalia Nani, que reabriu o bar há cerca de três anos.
Nenhum dos dois eventos conta com incentivo público para ser realizado. No Brooklyn, onde são utilizadas as mesas do bar, é montada uma estrutura externa para a venda de comida, e o equipamento de áudio é levado pelos músicos. No Tutti, o formato é mais ou menos o mesmo, com alguns diferenciais: para garantir a segurança no local, cuja parte de baixo está abandonada e convive com assaltos e tráfico de drogas, o proprietário contratou uma segurança privada para o dia do samba. A falta de iluminação no trecho da escadaria onde fica o bar também o obriga, há meses, a instalar luzes na parte externa.
Apesar dos percalços, a movimentação de espaços públicos historicamente abandonados por meio da música é comemorada pelos frequentadores — muitos deles admitem não ir aos viadutos nos dias em que não há eventos pela sensação de insegurança. Morador do bairro Jardim Carvalho, na Zona Leste, o estagiário Rodrigo Santos, 26 anos, conheceu o evento pelos primos, meses atrás. Virou um frequentador assíduo, que não se contenta em curtir apenas um: tão logo encerra a música na Borges, ruma para o Brooklyn, onde o som continua até mais tarde.
— Em Porto Alegre é raro ter essas manifestações de cultura. Aí tem que prestigiar, né — diz.
Samba de raiz na escadaria da Borges
Era por volta de 20h de terça-feira quando o sobe e desce apressado e frequentemente intimidado de pedestres deu lugar à cadência de um samba animado na escadaria da Avenida Borges de Medeiros sobre o Viaduto Otávio Rocha. De sandália alta, calça jeans e batom vermelho nos lábios, Silvana Pompeu era das mais engajadas: ao lado de uma amiga, movimentava-se com desenvoltura ao som de cavaquinho, pandeiro e tamborim.
Era a terceira vez que a administradora de empresas de 44 anos comparecia ao samba no viaduto. Fã do ritmo, ficou sabendo do evento pelas redes sociais do Grupo Puro Asthral, que embala as noites de terça-feira em frente ao bar Tutti Giorni.
— Amo samba de rua, e aqui não tem muito. É o que falta na cidade. Tem muito preconceito ainda, porque as pessoas acham que é fuzarca, mas não é assim. Quem gosta de samba gosta de ouvir sentado ou dançar. É um ambiente agregador — diz Silvana, que foi ao local acompanhada de três amigos.
O samba no Tutti começou devagar, devagarinho, quando uma amiga do dono, Ernani Marchioretto, o Nani, levou alguns músicos para tocar no local. As primeiras apresentações atraíam poucos. Com dia e horário fixados, porém, o público começou a aparecer e se avolumar: no ano passado, o evento chegou a reunir centenas nas escadarias.
Conhecido por ser um bar de cartunistas (que já funcionou em outro ponto da escadaria e no Largo dos Açorianos), o local se acostuma, cada vez mais, a receber outros públicos. A mudança de banda foi uma das que trouxe caras novas: entre os clientes, agora também há integrantes de escolas de samba e entusiastas do samba de raiz.
Frequentadora da Banda da Saldanha, a secretária Juliane Briança, e o namorado, André Gottems, eram estreantes no samba da Borges. Eles dirigiam-se a outro bar quando foram atraídos pelo ritmo que ouviram da escadaria.
— Estávamos indo comemorar uma data do nosso relacionamento quando ouvimos o som e resolvemos vir aqui. A música é excelente. E tem o diferencial de ser na rua, ainda mais numa noite como essa — disse o engenheiro.
A gente trouxe um público mais sambista, mas agora está bem misturado. Estamos tentando retomar o Centro
JULIANO BARCELLOS
Músico
No repertório do grupo, há clássicos que ficaram famosos na interpretação de grupos e artistas como Fundo de Quintal, Leci Brandão, Beth Carvalho e Zeca Pagodinho, além de compositores gaúchos, como Lupicínio Rodrigues, e canções próprias — um CD do Puro Asthral é vendido durante a apresentação.
Enquanto alguns preferem assistir ao show sentados, não é raro quem se levante — com ou sem par — para sambar sobre um dos principais pontos turísticos da Capital. É comum ver o público cantando junto e apoiando nas palmas sempre que requisitado. Como não é cobrado ingresso, parte da remuneração vem do que é arrecadado no chapéu.
— A gente trouxe um público mais sambista, mas agora está bem misturado. Estamos tentando retomar o Centro, que por muito tempo esteve atirado — avalia Juliano Barcellos, vocalista do grupo.
Roda aberta e diferentes tribos no Brooklyn
Para os poucos pedestres que circulavam cobre o Viaduto Imperatriz Leopoldina, perto do Parque Farroupilha, na noite de terça-feira, parecia difícil resistir à tentação de olhar para baixo quando chegavam à altura da Rua Sarmento Leite. Quase sob a estrutura, 10 músicos sentados à mesa entoavam sucessos de sambistas como Cartola, Noel Rosa, Paulinho da Viola e Wilson das Neves diante de centenas de pessoas que balançavam em torno da roda.
— Parece que a cidade tem música. Você vê os ônibus passando, o movimento na rua, e, ao mesmo tempo, o samba rolando — comentou a professora de filosofia Atena Beauvoir, sentada a uma mesa perto do samba.
Parece que a cidade tem música. Você vê os ônibus passando, o movimento na rua, e, ao mesmo tempo, o samba rolando
ATENA BEAUVOIR
Professora
Coberta de tatuagens pelo corpo e no rosto, a transexual de 26 anos passa longe do estereótipo dos apreciadores do ritmo: usa óculos, ostenta diversos piercings, veste calça jeans e camiseta. Sua presença, no entanto, resume o que se tornou uma marca do evento no local: a diversidade de tribos, faixas etárias e classes sociais dos frequentadores.
— O público não é homogêneo. Tem pessoas de todas as idades, pessoas de rua, gente que vem para participar da roda, que deixamos aberta para outros músicos se juntarem. A ideia é ser inclusivo. O samba é uma coisa democrática por natureza — conta Diego Silva, músico da Encruzilhada do Samba, que na terça-feira contava com três agregados além dos integrantes oficiais.
O que se vê no samba do Brooklyn, como ficou conhecido o espaço, é uma miscelânea: hipsters e idosos, casais gays e héteros, negros, brancos e pessoas que dormem sob o viaduto desfrutam do mesmo evento em aparente harmonia. Entre uma mulher que dançava entusiasmada ("põe aí que todo pelotense é do samba", dizia) e duas senhoras que, ao som de Chico Buarque, zombavam do amor e depois desmentiam, Rodrigo Santos observava sereno a segunda apresentação da noite: tinha deixado o samba na Borges, encerrado às 21h, para aproveitar o que restava da outra festa.
— Sempre vou lá e depois venho aqui. Virou rotina. Como meio de semana é complicado, venho sozinho mesmo. É muito bom isso aqui — sorri, enquanto toma uma cerveja.
Conhecido inicialmente pelos eventos de música black, rap e hip hop, o local tem abrigado, nos últimos cinco meses, apresentações mais diversificadas: além do samba, recebe shows de rock, eventos de cumbia e até uma noite de forró. Grupo que tocava anteriormente no Viaduto da Borges, a Encruzilhada foi quem propôs ao Espaço Cultural Lechiguana levar o samba o Brooklyn. O dia e horário praticados no antigo ponto foram mantidos — embora a festa seja mais extensa, o que nem sempre agrada aos vizinhos —, e parte do público seguiu o grupo.
— Quando a banda propôs o samba, achei legal. Está tendo um movimento firme, mesmo com chuva. Acho importante, porque muitas pessoas falam que passam mais tranquilas por aqui agora. Tem gente que se incomoda pelo barulho, mas também tem muita gente que gosta — conta Márcio Marques da Silva, um dos sócios do Lechiguana.