A nova onda de contestação e de defesa dos métodos do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi impulsionada por série de reportagens da Folha de S.Paulo que trouxe a público um suposto uso do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por fora do rito tradicional para a produção de relatórios de monitoramento das rede sociais.
Esses documentos do TSE eram compartilhados com o gabinete de Moraes no STF, onde ele é relator de diversos inquéritos que apuram fake news, atos antidemocráticos e as ações golpistas de 8 de janeiro, entre outros correlacionados. A confecção e compartilhamento desses relatórios, de forma supostamente informal, teria auxiliado Moraes a tomar medidas restritivas, como o cancelamento de passaportes e a suspensão de contas em redes sociais, contra supostos incentivadores de uma ruptura institucional após a eleição de 2022. As medidas de Moraes também atingiram apoiadores e aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro que eram alvo de investigações por supostamente tentarem desestabilizar a democracia.
O fato é que Moraes estava nas duas pontas: de um lado, era relator dos inquéritos no STF e, de outro, era o presidente de ocasião do TSE, tendo sob sua gerência o setor de combate à desinformação da Corte. A série de reportagens revelou mensagens trocadas entre três servidores públicos que atuavam com Moraes no TSE e no STF. Nas conversas, os auxiliares indicam que Moraes teria solicitado, de maneira informal, sem requerimentos por dentro dos processos, a produção de relatórios de monitoramento de redes sociais e de páginas politicamente posicionadas.
A discussão sobre a atuação de Moraes tem causado divergência entre correntes de pensamento. Parte avalia que a imparcialidade do ministro está sob suspeita, supostamente maculada por atos de ofício — de iniciativa do juiz — para produzir provas contra investigados. Outra parcela, incluindo ministros do STF, entende que ele exerceu o poder de polícia garantido por lei à Justiça Eleitoral, o que lhe daria a atribuição de determinar diligências ao deparar com possíveis delitos. Esta previsão está no artigo 41 da lei 9.504/97.
O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello, que presidiu o TSE por três vezes, afirma que o juiz tem que ser provocado para agir. Por essa análise, Moraes teria extrapolado atribuições ao determinar a produção de relatórios que seriam compartilhados entre o TSE e o STF. Ele somente poderia ter determinado a elaboração de provas em caso de ter sido provocado por partes de um processo, como partidos políticos, Ministério Público ou defesa de investigados.
— O órgão julgador é equidistante e independente. Ações de ofício não podem existir. O juiz sair fiscalizando é algo que não existe — diz Marco Aurélio, que refuta a aplicação do poder de polícia da Justiça Eleitoral na atuação jurisdicional, ou seja, no andamento e julgamento de processos.
O ex-ministro ponderou que o momento requer “temperança” e que é preciso aguardar os desdobramentos para se ter mais clareza sobre eventual extravasamento de atribuição.
Ex-procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, professor emérito da PUCRS e doutor em direito, Sergio Porto reconhece que o juiz eleitoral tem o poder de tomar iniciativas para esclarecer fatos suspeitos, mas acredita que Moraes pode ter se excedido.
— É preciso cuidado e limite. Do jeito que foi noticiado, gera preocupação sobre a imparcialidade do juiz. Há o poder de polícia, mas não me parece saudável que se presida uma investigação e, simultaneamente, se aprecie a solução desta investigação. A imparcialidade é da essência da jurisdição. Isso pode gerar consequências, do tipo: arguir a suspeição da imparcialidade do juiz — avalia Porto, mencionando eventual desdobramento jurídico.
Ele diz que eventuais pedidos de impeachment de Moraes são da esfera política e cabem ao Senado.
Em artigo publicado no portal UOL, o professor de direito eleitoral Fernando Neisser, da Fundação Getulio Vargas em São Paulo (FGV/SP), afirmou que “o poder de polícia da Justiça Eleitoral foi usado corretamente por Moraes”.
Para ele, não há uso informal do TSE porque inexiste formalidade prevista para o exercício do poder de polícia do magistrado na função eleitoral. Ele ainda rebate a interpretação de que o juiz, nestes casos, tenha a necessidade de ser provocado pelas partes para agir.
“O juiz eleitoral que se depara com ilegalidade eleitoral tem o direito e o dever de tomar todas as devidas providências para fazer cessar as ilegalidades e levantar os dados necessários para tanto. (...) Não há nada ilegal nessa suposta informalidade. O que se quer é evitar que a propaganda irregular permaneça disponível”, escreveu Neisser.
Apesar das trocas de mensagens reveladas entre seus auxiliares, apontando suposta informalidade, o gabinete do ministro Moraes afirmou que os procedimentos foram oficiais e regulares.
Na sessão desta quarta-feira (14) do STF, ministros saíram em defesa de Moraes. O presidente do STF, Luis Roberto Barroso, insistiu que o poder de polícia é exercido “de ofício”, independente de provocações.
— Todas as informações eram públicas, solicitadas ao órgão do TSE que fazia o acompanhamento das redes sociais para verificar se havia ali alguma conduta criminosa ou que estava sendo investigada no âmbito dos inquéritos do STF — afirmou Barroso.
O advogado criminalista Andrei Zenkner Schmidt diz que é preciso identificar, dentro dos processos, se a origem das ordens para a produção de relatórios ocorreu em processos criminais ou eleitorais. Depois, é necessário checar se havia prerrogativa de foro dos envolvidos ou matéria especializada que justificasse a realização de diligências por ordem da instância máxima da Justiça Eleitoral. Eventualmente, avalia, seria caso para instâncias inferiores.
— Não se justifica uma boa intenção com o uso de qualquer meio. Controle de meios e de fins é o que dá seriedade a uma República — comenta Schmidt.
Sobre esse aspecto, Barroso também se manifestou na sessão do STF.
— Todas as informações solicitadas referiam-se a pessoas que já estavam sendo investigadas e, portanto, em inquéritos que já estavam abertos perante o STF. (Eram) Informações voltadas à obtenção de dados diante da denúncia de reiteração das condutas de desinformação e de circulação de ataques à democracia e discursos de ódio — disse o ministro.
Para o advogado criminalista Alexandre Wunderlich os ilícitos investigados nos inquéritos são verdadeiros e existiram, mas ele aponta para uma aparente modulação de indícios nos gabinetes de Moraes no STF e no TSE. O magistrado, conforme as mensagens, chegou a solicitar a readequação de relatórios e a inclusão de conteúdos indiciários.
— Há um interesse em organizar provas. Em meu juízo, é totalmente incompatível com a posição de imparcialidade que se espera de um juiz. Isso é grave — diz Wunderlich.
Para ele, o método de Moraes pode ter “ocultado a espontaneidade” com que os conjuntos probatórios devem chegar ao Judiciário.
Os juristas ouvidos avaliam que não há nenhum problema no compartilhamento de provas e documentos entre tribunais, desde que isso seja devidamente registrado nos processos.
Origem
As contestações sobre a atuação de Moraes não são novas. A origem da extensa polêmica remonta a 2019, primeiro ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Naquela época, ataques digitais foram disparados contra o STF, com aparente organização e objetivo de acuar e até encerrar a instituição.
A então procuradora-geral da República (PGR) Raquel Dodge avaliou que não havia motivo para providência. O STF, na sequência, afirmou ser vítima de uma campanha fraudulenta de desestabilização da democracia e das instituições.
O então presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, evocou o artigo 43 do regimento interno. A norma permite que o presidente instaure inquérito de ofício, por iniciativa do juiz, sem a tradicional provocação do Ministério Público, quando ocorrer a “infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal”.
Toffoli, na sequência, designou Moraes para ser o relator da primeira das investigações sobre ações antidemocráticas, o inquérito das fake news, em março de 2019. Desde então, Moraes tem determinado de ofício a realização de diligências dentro dos processos. Em sua defesa, ele diz que a PGR sempre é oficiada e instada a se manifestar.