Acossado por suspeitas de participação na venda de joias recebidas em missões oficiais ao Exterior, Jair Bolsonaro enfrenta vários percalços na Justiça. Somente no Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente é alvo de oito investigações.
Bolsonaro perdeu direito ao foro privilegiado ao deixar a Presidência, em 1º de janeiro. Levantamento feito pelo PL em maio registrou a existência de quase 600 processos contra o ex-presidente em todo o país, desde ações eleitorais a queixas-crimes apresentadas por cidadãos comuns.
Todavia, nem todos os expedientes envolvendo Bolsonaro desceram para primeira instância, como ocorre usualmente com quem deixa de usufruir de foro por prerrogativa de função. Os casos de maior repercussão e considerados de maior risco à liberdade do ex-presidente continuam tramitando no STF, todos sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
São seis inquéritos e duas petições (etapa preliminar de apuração) que investigam milícias digitais, interferência na Polícia Federal e estímulo a golpe de Estado, entre outras supostas ilegalidades (veja abaixo). Bolsonaro consta formalmente como investigado em cinco destes procedimentos.
Em outro inquérito e nas duas petições ele teve o nome mencionado, mas não há apuração oficial de sua conduta. Uma das petições investiga a venda das joias, e a outra, a emissão de certificados falsos de vacinação contra covid-19.
Embora o STF diga que Bolsonaro não é formalmente investigado nessas petições, a ofensiva judicial mais explícita contra ele ocorreu justamente a partir de um desses casos. Em maio, Bolsonaro teve a casa varejada por agentes da Polícia Federal, por suspeita de ter sido beneficiado pela inserção de dados falsos no sistema de imunização do Ministério da Saúde.
Ao expedir os 16 mandados de busca e apreensão e seis de prisão cumpridos na operação policial, que resultaram na prisão do ex-ajudante de ordens Mauro Cid e na apreensão do celular de Bolsonaro, Moraes vinculou a investigação ao inquérito das milícias digitais. Esse tipo de conexão tem sido usado pelo ministro para justificar a manutenção no STF de vários processos envolvendo o ex-presidente.
É o que ocorre, por exemplo, na investigação da venda das joias. A suposta apropriação indevida dos presentes recebidos por Bolsonaro na condição de chefe de Estado vinha sendo averiguada na Justiça Federal de Guarulhos (SP).
Bolsonaro inclusive já havia prestado depoimento no âmbito da investigação quando, em 11 de agosto, o MPF pediu a transferência da apuração para o STF. O pedido foi aceito quatro dias depois e, dessa forma, o caso percorreu caminho inverso do tradicional, passando da primeira instância para a mais alta Corte de Justiça do país mesmo sem envolver detentor de foro privilegiado.
Para justificar a permanência das investigações no STF, Moraes costuma sustentar em suas decisões que a organização criminosa sob mira dos inquéritos das fake news e das milícias digitais tinha cinco eixos de atuação, entre os quais “uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens”. Nesse quesito, ele inclui “inserção de dados falsos de vacinação contra a covid-19 e desvio de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao ex-presidente Jair Bolsonaro”.
Manutenção de casos no STF após perda do foro gera críticas
A manutenção dos expedientes no STF gera críticas de advogados e juristas. Para o criminalista Aury Lopes Júnior, o desvio começou em 2019, quando o então presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli, abriu de ofício um inquérito para apurar os ataques à instituição. Na ocasião, Toffoli também entregou a relatoria a Moraes, ignorando o sistema impessoal de distribuição de processos do STF.
— É um inquérito com competência conglobante, esponja, absorvendo tudo que eles entendem como ameaça à Corte. Mas se um ministro do Supremo for assaltado na esquina, o processo não tramita no STF. A prerrogativa de função é para quando você é autor de crime, não quando é vítima. Estão vinculando todas as investigações envolvendo Bolsonaro a esse inquérito, mesmo ele não tendo mais prerrogativa de função. Não há motivo para ser investigado nem processado no Supremo — afirma Lopes Júnior.
Segundo a assessoria de imprensa do STF, após Bolsonaro deixar a Presidência, foram enviados para instâncias inferiores todos os procedimentos contra ele em que não havia participação do Ministério Público Federal. Em sua maioria, eram queixas-crimes apresentadas contra o então presidente por parlamentares, partidos políticos ou cidadãos comuns.
Continuaram no tribunal somente os casos em que há manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR), ainda que em algumas situações seus pareceres sejam ignorados. No inquérito que apura a ação de Bolsonaro na gestão da pandemia, por exemplo, a PGR pediu arquivamento, mas a presidente do Supremo, Rosa Weber, determinou a continuidade das investigações.
Advogado e professor de Direito da Universidade de São Paulo, Rafael Mafei lembra que o próprio STF fez um esforço para reduzir a abrangência do foro privilegiado após o julgamento do mensalão. Desde então, o direito a ser julgado na Corte só vale para crimes relacionados ao exercício do mandato e enquanto o investigado estiver exercendo tal função. Cessado o mandato, o caso é enviado a instância inferior. Para Mafei, a permanência dos processos contra Bolsonaro no STF resulta de uma interpretação elástica da legislação.
— Essa interpretação atual vai de encontro ao que vinha sendo adotado como regra pelo próprio STF. Senão, há o risco de se dar ao juiz a prerrogativa de escolher os réus que ele julga. Mas não tenho os autos à mão, muita coisa é sigilosa e pode haver algo que o ministro (Moraes) saiba e que ele esteja certo em suas decisões. Cada caso é um caso. Não é porque tudo envolve Bolsonaro que tem de ser julgado em primeira instância ou no STF. É a circunstância de caso que determina — salienta o jurista.
Os procedimentos
Jair Bolsonaro é alvo de oito procedimentos no STF. Em cinco, há inquéritos investigando formalmente o ex-presidente. Há ainda um inquérito e duas petições sem apuração formal de sua conduta.
Inquérito nº 4.921 — Atos golpistas
Apura suposta autoria intelectual de Bolsonaro na tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, com invasão e depredação das sedes dos três poderes da República.
Inquérito nº 4.888 — CPI da pandemia
Aberto a partir do relatório final da CPI da Pandemia no Congresso, o inquérito investiga eventuais crimes cometidos por Bolsonaro durante a pandemia.
Inquérito nº4.878 — Vazamento ilegal
Instaurado por determinação do Tribunal Superior Eleitoral, apura ação de Bolsonaro em vazamento de informações sigilosas sobre inquérito da PF que investiga ataque hacker à Corte em 2018.
Inquérito nº 4.874 — Milícias digitais
Originado no extinto inquérito que apurava atos antidemocráticos, investiga atuação de Bolsonaro em uma rede que usa redes sociais para disseminar desinformação.
Inquérito nº 4.831 — Interferência na PF
Apura influência de Bolsonaro sobre a cúpula da Polícia Federal após quatro trocas no comando da instituição, com suposto objetivo de blindar familiares e aliados políticos.
Inquérito nº 4.781 — Fake news
Instaurado de ofício em 2019 pelo então presidente do STF Dias Toffoli, apura disseminação de mentiras e ameaças contra ministros da Corte. Não há investigação formal de Bolsonaro.
Petição nº 11.645
Expediente preliminar de investigação, apura suposto desvio de presentes recebidos por Bolsonaro durante viagens oficiais ao Exterior.
Petição nº 10.405
Também em instância preliminar, apura inclusão de dados falsos de vacinação de familiares de Bolsonaro no sistema de imunização do SUS.