A quarta-feira (8) marca um mês da tentativa de golpe de Estado que culminou com a depredação das sedes dos três poderes, em Brasília. A intentona fracassou e, em decorrência dela, cerca de 1,4 mil pessoas estão presas — em penitenciárias ou em domicílio. Desse número, pelo menos 105 são do Rio Grande do Sul. Elas respondem por participação em atos antidemocráticos (associação criminosa), incitação à animosidade das Forças Armadas contra os poderes constitucionais e, em alguns casos, depredação do patrimônio público.
A invasão da Praça dos Três Poderes por milhares de extremistas bolsonaristas, inconformados com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), encontra paralelo em dois célebres fracassos golpistas ocorridos há quase um século no Brasil: a Intentona Comunista de 1935 (levante de centenas de militares de esquerda contra o governo Getúlio Vargas, que terminou com dezenas de mortos); e o Putsch Integralista de 1938 (organizado por militantes de extrema direita, também contra Vargas, que igualmente deixou dezenas de mortos e 1,5 mil presos). Em 1964, o golpe, cogitado havia décadas, deu certo e uma aliança político-militar-empresarial de direita gestou uma ditadura que durou 21 anos no Brasil.
Apuração
As primeiras investigações apontam que, como nas intentonas fracassadas do início do século 20, a invasão das sedes dos três poderes teve envolvimento de militares, foi planejada por semanas e teve substancial apoio de políticos e empresários. A grande diferença em relação ao golpismo de quase cem anos atrás é que não ocorreram mortes, mas a destruição de patrimônio público foi grande.
Dois fatores contribuíram para inviabilizar o golpe: as autoridades públicas, ainda que vacilantes, determinaram onda de prisões, e as Forças Armadas não endossaram o apelo dos radicais para que tomassem o poder.
O plano de derrubar o governo eleito teve resultado amargo para os bolsonaristas envolvidos nos atos de 8 de janeiro. Foram detidos logo após os atos antidemocráticos ou no dia seguinte, em acampamentos onde estavam refugiados, cerca de 2 mil extremistas. Desses, pouco mais de 500 acabaram liberados por serem idosos, enfermos ou gestantes. Foram homologadas as prisões de 1.381 envolvidos. Desse número, 922 seguem presos em penitenciárias do Distrito Federal. Os outros 459 conseguiram liberdade provisória porque sua participação nos atos foi considerada secundária, mas estão obrigados a usar tornozeleira eletrônica.
Além das prisões em flagrante nos dias 8 e 9 de janeiro, as autoridades ampliaram o escopo. Desencadearam investigações que miram em quem planejou e viabilizou os atos golpistas. A principal medida é a Operação Lesa Pátria, que já teve cinco fases desde meados de janeiro e foi anunciada como permanente. Dentro dela, ao menos 20 pessoas foram presas por abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa, incitação ao crime, destruição e deterioração ou inutilização de bem especialmente protegido.
A PF também realizou a Operação Ulysses, específica para o Estado do Rio, e que teve mais três presos, esses por suspeita de organizarem bloqueios de estradas no norte fluminense.
Intervenção
Passado um mês do episódio mais violento da história política recente do país, as averiguações deixam claro que a semente do golpismo teve sua germinação viabilizada logo após as eleições, quando milhares de adeptos do presidente derrotado, Jair Bolsonaro, acamparam em frente a quartéis das Forças Armadas.
Foram pouco mais de 60 dias de pedidos desse grupo para que militares impedissem a posse de Lula. Celulares apreendidos com os presos mostram correntes de mensagens via aplicativos, planejando a invasão da Praça dos Três Poderes. Um dos codinomes usados para os atos golpistas, com direito a ônibus e roteiro mapeando os principais prédios federais em Brasília, era “Festa da Selma”, com chamada para Viagem à Praia (assim definido num grupo do Telegram que reunia 18 mil bolsonaristas).
Planejados também foram alguns precedentes da destruição em Brasília. O pior deles, a tentativa de explodir com dinamite um caminhão de combustível e uma central energética em Brasília. Três envolvidos foram presos e admitiram ter elaborado o plano. O trio, que participava do acampamento bolsonarista em frente ao Quartel-General do Exército no DF, está preso. Eles viraram réus por planejamento de explosão, mas se cogita que possam também responder por terrorismo.
O então interventor nomeado por Lula naquele 8 de janeiro, para ocupar a Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Cappelli, não tem dúvidas de que os atos em Brasília foram causados por ausência de comando e inexistência de planejamento operacional.
— Entregamos relatório que aponta as falhas operacionais e uma espécie de cronologia dos fatos, amparadas por imagens e documentação. É hora de separar o joio do trigo. Os que falaram, os que foram omissos, os que foram cúmplices e aqueles que honram a Polícia Militar — afirmou Cappelli, no dia em que entregou o relatório.
A intervenção federal na Segurança Pública do Distrito Federal, decretada por Lula e aprovada pelo Congresso, se encerrou no dia 31 de janeiro.
Militares e policiais entre os presos
A Polícia Federal aponta que houve omissão de militares estaduais e federais em relação aos planos golpistas. Entre os que chegaram a ser presos após os atos estava o ex-comandante da PM do Distrito Federal, Fábio Augusto Vieira. Ex-chefe do Departamento Operacional da PM do DF, Jorge Eduardo Naime Barreto foi detido nesta terça-feira (7). Ambos são suspeitos de omissão de dever funcional. Um relatório da inteligência entregue a eles dois dias antes dos atos golpistas apontava risco de invasões.
A defesa de Naime declarou à TV Globo, em janeiro, que no domingo em que ocorreram os atos, o coronel estava de folga em um hotel fazenda. No último dia 3, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes concedeu liberdade provisória a Vieira. Moraes escreveu, baseado em relatório produzido pelo então interventor federal da Segurança do DF, Ricardo Cappelli, que Vieira “não teria sido diretamente responsável pela falha das ações de segurança que resultaram nos atos criminosos ora investigados”, apesar de ser o então comandante da PM.
Em depoimento à PF, Vieira disse que tentou, duas vezes, desmontar o acampamento de bolsonaristas em frente a áreas militares, antes dos ataques, mas alegou que não pôde executar a ação por pedido do Exército.
Foram presos, também sob suspeita de omissão, o ex-secretário de Segurança do DF e ex-ministro da Justiça no governo Bolsonaro, delegado federal Anderson Torres, e 10 PMs (na maioria, oficiais). Nesta terça, o STF autorizou a quebra de sigilo de PMs para apurar as suspeitas.
Já o governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha está afastado do cargo desde 8 de janeiro, por decisão endossada pela maioria dos ministros do STF. O prazo definido foi de 90 dias, mas a defesa de Ibaneis afirmou que irá pedir ao Supremo, nesta semana, que reconsidere a determinação antes do fim desse período.
Nas Forças Armadas, um coronel do Exército e um capitão de mar e guerra da Marinha, ambos reservistas, foram indiciados por participarem da invasão dos prédios e demitidos de cargos de confiança que ocupavam no governo federal.
Em paralelo, o Ministério Público Militar abriu oito investigações que miram militares da ativa das Forças Armadas. São apuradas omissões quanto às invasões (tanto por parte do Gabinete de Segurança Institucional quanto por integrantes do Batalhão da Guarda Presidencial), e suspeita de auxílio na fuga de golpistas e participação nos atos. Militares da ativa são proibidos pelo estatuto próprio de manifestar engajamento político direto.
Bloqueio de bens
Em outra frente, donos de ônibus usados para transportar extremistas tiveram contas bancárias bloqueadas pela Justiça, a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU). São 92 pessoas e sete empresas que sofreram a punição. A mesma providência já tinha sido tomada em relação a 43 empresas de transporte cujos veículos foram usados para obstruir rodovias em todo o país, na primeira semana pós-eleições.
Nesta terça-feira, a AGU solicitou à Justiça Federal do DF que o bloqueio cautelar de bens de presos pelos atos golpistas passe de R$ 18,5 milhões para R$ 20,7 milhões. De acordo com o órgão, o aumento é decorrente da elevação da estimativa de danos feita pela Câmara dos Deputados, que subiu de R$ 1,1 milhão para R$ 3,3 milhões. O bloqueio é solicitado para garantir o ressarcimento aos cofres públicos em caso de condenação definitiva dos envolvidos.
Já a Procuradoria-Geral da República (PGR) agiu com celeridade e já denunciou, em um mês, 653 pessoas envolvidas pelos distúrbios de 8 de janeiro. Elas respondem por associação criminosa e incitação à animosidade entre as Forças Armadas contra os poderes Constitucionais, crimes previstos no Código Penal. Em caso de condenação, resultam em pouco mais de três anos de detenção aos condenados.
Causou estranheza entre alguns delegados o fato das denúncias da PGR terem sido feitas antes mesmo do indiciamento por parte da PF. Coordenador do Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos da PGR, o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos respondeu, após consulta de GZH, que os suspeitos estão presos e, nesse caso, a lei dá prazo curto para que sejam denunciados.
Além disso, a denúncia não precisa ser feita após o indiciamento policial: elas podem ser feitas antes (como ocorreu) e serem acompanhadas de pedido de investigações adicionais. É o que ocorre nesse caso, em que a polícia ainda busca (via rastreamento de GPS e celulares e de imagens de câmeras) verificar quem, dos cerca de 1,3 mil presos, se envolveu diretamente em depredação. Esses deverão responder também por destruição do patrimônio público, entre outros delitos.
Outro ponto alegado por Santos é a questão de os extremistas presos não serem denunciados por terrorismo. Segundo ele, a legislação antiterrorista em vigor (Lei 13.260/2016) não considera terrorismo o cometimento de crimes, por mais graves que possam ser, por razões políticas (apenas os motivados por xenofobia, preconceito de raça, etnia e religião).
Bolsonaro entre os investigados
Alguns indícios levam as autoridades a desconfiar de envolvimento de pessoas próximas a Jair Bolsonaro no planejamento dos atos antidemocráticos. Um deles é uma minuta apreendida na residência do ex-secretário de Segurança do Distrito Federal e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres (preso por suspeita de se omitir a respeito dos atos de 8 de janeiro). Ela é o esboço de um decreto para instaurar Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o que supostamente poderia mudar o resultado das eleições de 2022. A medida viabilizaria até afastamento, quebra de sigilo e possível prisão de ministros do TSE. O órgão é presidido por Alexandre de Moraes, também magistrado do STF, alvo de seguidos ataques de Bolsonaro e de seus seguidores.
No começo de fevereiro, o senador Marcos do Val (Podemos-ES) afirmou, em entrevista, ter sido acionado pelo ex-deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ) para um encontro com o então presidente Jair Bolsonaro, em que teria sido discutido um plano para impedir a posse de Lula. O senador disse ter sido convidado a usar microfones ocultos e “grampear” conversas suas Alexandre de Moraes, na esperança de que o magistrado dissesse ter favorecido a vitória petista. Do Val chegou a declarar que desistiu e que avisou Moraes do plano golpista.
Mas, em dois dias, do Val anunciou ao menos cinco versões diferentes sobre esse suposto plano. Na mais recente, sexta passada (3), disse que tudo o que falou foi de caso pensado, e agiu para “ludibriar o inimigo”, acrescentando que o objetivo é pedir o afastamento de Moraes da função de relator de inquérito sobre atos antidemocráticos no STF. Tanto ele quanto Silveira serão investigados por decisão de Moraes, que citou indícios dos crimes de falso testemunho, denunciação caluniosa e coação no curso do processo.
Antes disso, em 13 de janeiro, Bolsonaro já havia sido incluído na investigação sobre os atos antidemocráticos a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), que considerou que o ex-presidente pode ter feito “incitação pública ao crime” ao postar vídeo em redes sociais, dois dias após os ataques em Brasília, questionando a regularidade das eleições de outubro. Moraes, no mesmo dia, acolheu pedido da PGR. Na época, a defesa de Bolsonaro divulgou nota declarando que o ex-presidente sempre repudiou atos ilegais e criminosos e é defensor da Constituição e da democracia.