Em 35 anos de vida pública, Paulo Hartung foi deputado, senador, prefeito de Vitória e governador do Espírito Santo, cargo que exerceu por três mandatos. Em 2018, surpreendeu ao desistir da reeleição mesmo com uma gestão bem avaliada. Mas, aos 64 anos, está ativo como nunca, na presidência da Indústria Brasileira de Árvores, no conselho do Todos pela Educação e na formação de novas lideranças em movimentos como o RenovaBR e o Agora!. Desvinculado de partidos, tem se dedicado a construir consensos que incluem o que chama de “centro expandido”, um campo político concebido para unir liberais reformistas com uma esquerda moderna. O maior desafio é encontrar alguém para liderar esse projeto na eleição de 2022. Não à toa, a palavra “líder” foi a mais repetida nos mais de 90 minutos desta entrevista concedida à GZH.
O senhor fez uma gestão muito bem avaliada no Espírito Santo e, ignorando o favoritismo, abdicou da reeleição e está envolvido com entidades de defesa da educação e meio ambiente. O que provocou esse movimento?
Percorri um longo ciclo na vida pública. Exerci oito mandatos, quatro no Executivo. Meus filhos foram criados vivenciando essa trajetória. Em 2010, ao terminar o segundo governo, achei que era hora de encerrar essa etapa e fui para a área privada, mas tive uma recaída e acabei voltando. Foi bom porque o terceiro mandato me tornou conhecido no Brasil. Nunca neguei a política, pelo contrário. Ela é a ferramenta transformadora. Ela supera o conflito, a barbárie, e estabelece o diálogo na procura de caminhos que unificam as pessoas. Mas tudo na vida tem começo, meio e fim. Às vezes os políticos tropeçam nas próprias pernas porque não entendem que têm de parar.
O senhor é militante dos movimentos de renovação política, mas o país parece condenado a repetir o passado, procurando salvadores da pátria e preso numa dicotomia entre esquerda e direita. Onde estão os novos líderes?
Me perguntam muito se a política está morrendo. A política está forte e será forte. O que perdeu tração foram as instituições. A vida mudou velozmente, e as instituições ficaram paradas. É preciso reconexão com uma sociedade que pede passagem para opinar sobre tudo. Mas há um problema: nós perdemos muito a qualidade das lideranças nos últimos anos.
Na qualidade e na quantidade.
Quando eu dava palestras, no final sempre vinham jovens conversar. A maioria não tinha vontade de entrar na política. Mas isso mudou. Eles pedem dicas de como se preparar, como disputar eleição.
Como se faz isso?
Ao deixar o governo, topei participar do RenovaBR, uma escola de formação de novos líderes. Eles não estão prontos, estão em formação, mas o interesse pela política voltou. É questão de tempo para vermos uma renovação.
Dá tempo até a eleição do ano que vem?
O problema é que o tempo da política não é o tempo da rua. Se você for à rua perguntar se as pessoas estão ligadas na eleição de 2022, não vai achar ninguém. As pessoas estão ligadas em procurar emprego e tomar vacina. Os elementos que vão ditar a eleição presidencial de 2022 estão sendo formados agora, mas vão começar a amadurecer lá pelo final do ano.
Alguns sinais já estão postos.
Depende. Após a eleição municipal, os analistas disseram que o centro havia vencido e por isso iria vencer de novo em 2022. Depois, o governo elegeu os presidentes da Câmara e do Senado, daí disseram que 2022 estava resolvido. Não tem a ver. O que tem a ver é como a população vai estar em 2022.
A política está forte. O que perdeu tração foram as instituições. A vida mudou, e as instituições ficaram paradas. É preciso reconexão com uma sociedade que pede passagem para opinar sobre tudo.
O senhor não acredita no que os analistas dizem hoje, de que haverá disputa entre Lula e Bolsonaro, sem chances de uma terceira via?
É cedo para dizer. Aprendi que em pesquisa feita muito antes da eleição se deve dar atenção à rejeição. E se você olhar quem não vota nos dois e quem não vota em ninguém, há uma montanha de gente. Se parte grande dessa montanha for direcionada para um nome que estabelecer um fio terra com os anseios da sociedade, esse nome fica forte. Tem uma avenida aberta para quem consiga capturar o sentimento da sociedade.
Como construir um discurso que rompa a polarização?
O que acontece aqui não é diferente dos EUA. Eles elegeram Trump, foi um momento de tensão, mas depois ele perdeu. Trump teve muito voto, mas Biden conseguiu fazer o fio terra, se conectar com as anseios da sociedade, chegar ao povo. É possível, mas não tem caminho fácil. Tem de convencer as pessoas, motivá-las. Não é coisa que se faça em gabinete, é na rua.
Qual deve ser o norte dessa conversa?
Se você pegar 10 países com potencial no mundo, o Brasil é um deles, e em boa posição. A pergunta de um US$ 1 bilhão é: por que o país não conseguiu transformar esse potencial em oportunidade? Por que é o eterno país do futuro que não chega? Essa questão precisa ser debatida com quem mora em favela, com quem mora no asfalto, pelos mais de 40 milhões que estão na informalidade. O Brasil tem a maior floresta tropical do mundo, 12% da água doce do planeta, a maior biodiversidade, uma matriz energética com 45% de fontes limpas. Por que não conseguimos virar a chave? Tem de parar de trilhar o caminho errado e ter coragem de ousar num caminho novo. Como se faz para trazer o capital privado com força para a infraestrutura, para termos aeroportos, portos, rodovias, ferrovias, energia, 5G? Isso é primeira necessidade para se desenvolver uma sociedade, para reindustrializar o país.
Há vários nomes do centro tentando se viabilizar. O senhor acredita na aglutinação dessas candidaturas em torno de um único nome?
É preciso capacidade de se organizar em torno do que chamo de “centro expandido”, congregando liberais reformistas à centro esquerda que modernizou seu pensamento. Esse campo precisa achar um nome, não pode sair fragmentado. Tem diálogo bom andando, mas, se vai ser feito, ninguém sabe. Estamos no melhor entendimento desde sempre. Tem muita chance desse campo sair com um nome representando essas ideias e com capacidade de conversar com a sociedade.
Com chances de quebrar a polarização?
Sou otimista. Vai ser um campo relevante no processo. Não tenho dúvida de que vamos conversar com a sociedade. Há uma proposta escrita, por exemplo, de enfrentar a desigualdade social com um programa de transferência de renda que evolua do Bolsa-Família para algo melhor, usando o dinheiro que já há no orçamento. São propostas que tocam nos problemas do país.
Quem poderia liderar esse processo?
Trouxe minha mochila, mas esqueci a bola de cristal. Posso dizer que a conversa está muito boa, é feita com desprendimento, com pouco “eu” e muito “nós”. É muito possível que não se repita 2018, quando houve uma fragmentação desse campo, com muitas candidaturas. Deu no que deu.
E quem participa da conversa com aspirações a liderá-la?
Vamos focar só no campo das ideias, sem fulanizar. Tem muita gente representativa e boa conversa. O que pode atrapalhar é uma ambição desmedida. O que mata um projeto como esse são atitudes como “tem de ser eu”. É preciso tocar a vida das pessoas, temos 14 milhões de desempregados e muita gente desalentada, sem esperança. Há um campo bom para discutir soluções e mostrar que o populismo já experimentamos várias vezes, não dá camisa a ninguém e, se bobear, tira a pouca que a gente tem. O que deu errado está claro. Vamos virar esse jogo, parar de tomar de 7 a 1.
Muitos partidos no Brasil não aspiram ao poder, aspiram o poder. Em vez de lançar candidato, esperam o resultado da eleição para aderir ao governo em troca de benesses. Como resolver?
O sistema é disfuncional, induz às piores práticas. Duas medidas já aprovadas melhoram o quadro: a cláusula de barreira e o fim das coligações nas eleições proporcionais. Juntas, elas diminuirão o número de partidos, que serão mais programáticos. Partido é parte do pensamento da sociedade, então precisa ter conteúdo, significar o que vai fazer quando chegar ao poder, e tem de ter essa aspiração. Formar novas lideranças também ajuda.
Os líderes não acabam reféns desse sistema? Desde a redemocratização, todos os presidentes governaram com praticamente a mesma base parlamentar.
Quando há no país um líder que sabe onde está e onde quer chegar, ele convence o Congresso a ir junto. Ninguém, em lugar algum do mundo, implementa seu programa na totalidade. Na democracia, você cede, negocia. Mas Fernando Henrique implementou seu programa, Lula teve apoio do Congresso. Quando há uma liderança que conversa com as instituições, coloca as coisas para andar. O problema do atual governo é que, quando a área econômica fala uma coisa, outro grupo do governo articula outra. Chegam com dois cardápios diferentes para os deputados e senadores.
A gente podia diminuir o tamanho da Constituição e colocar um artigo só: o que deu errado está proibido de repetir. Se é para cometer um erro, que seja um erro novo.
Tem chance de funcionar?
Não. É um absurdo o que aconteceu com o orçamento de 2021, os caras subestimaram despesas obrigatórias. O nome é obrigatória, não tem como fugir, é a folha de pagamento, são os aposentados. E eles pegaram o dinheiro para emenda parlamentar. Como diria Caetano, é o avesso do avesso do avesso. Você vai ver quem está por trás disso e é ministro querendo dinheiro para seu ministério. Se você leva dois cardápios para conversar com um parlamento que já é disfuncional, aparece um terceiro, quarto, quinto. Vira um jogo de soma negativa.
A onda de negação da política surgida nos movimentos de 2013 culminou com uma renovação histórica do Congresso em 2018, com 52% de novos parlamentares na Câmara e 85% no Senado. Melhorou a qualidade do parlamento?
Tem de trocar com qualidade. Precisamos renovar ideias, pessoas, com políticas públicas eficientes, indiferente se serão quadros à direita ou à esquerda. O fundamental é gente com boa formação, que saiba discutir um projeto, entender o quanto aquilo é importante para o país e não só para uma corporação. Essa é a história do Brasil: pequenos grupos se apropriando das riquezas e a população tendo dificuldades.
Esse caldo político chegou num extremo no qual se vê gente pedindo intervenção militar. O que houve com nossa consciência democrática?
A gente podia diminuir o tamanho da Constituição e colocar um artigo só: o que deu errado no Brasil está proibido de repetir. Seria revolucionário. Democracia não é tático, é estratégico. É valor. Quando descobriu a política, a sociedade ficou mais humana. A democracia tem defeitos, só que os outros sistemas são muito piores. Na caminhada civilizatória, não devemos repetir aquilo que trouxe sofrimento. Se é para cometer um erro, que seja um erro novo. O caminho para o Brasil é corrigir o sistema político, diminuir o número de partidos, modernizar o parlamento. Atualizar as instituições.
Educação tem de virar obsessão nacional. Em tempo integral, com um projeto de vida, formação profissional e tecnológica. Precisamos de um líder que abrace a educação básica como prioridade. É preciso um mutirão no país tal como há pela vacina: envolver as igrejas, os meios de comunicação, todo mundo.
A Lava-Jato prendeu dezenas de políticos, varreu tantos outros nas urnas, mas nos legou governantes como o ex-juiz Wilson Witzel, cassado após denúncias de corrupção no Rio. Estamos condenados a um rodízio de corruptos?
O Brasil tem um problema histórico de corrupção. Mas não é o único problema. Muitas vezes, uma política pública mal elaborada, como aqueles subsídios do BNDES lá atrás, causam mais prejuízos. É preciso olhar não só a árvore, mas a floresta. Quanto mais transparência, menos corrupção. Se você acha que tem um problema só, já começa errado. Os vazamentos são múltiplos. Esse monte de privilégio do serviço público é legal, mas imoral. Então é preciso mexer na estrutura como um todo, combatendo corrupção, privilégios e políticas equivocadas.
Essa necessidade de mudanças estruturais é praticamente unanimidade e nunca houve ambiente tão favorável a reformas como após a eleição de 2018. mas só a reforma da Previdência andou. Por que o Brasil é bom de diagnóstico e ruim de tratamento?
Nós fizemos uma reforma da Previdência com o apoio da população, algo inédito. Mas hoje não há unidade no governo, há uma ala reformista e outra que não quer reformas. Por isso, o líder é importante. O mundo está andando, e estamos ficando para trás. Pior, estamos tendo retrocessos, basta ver a questão ambiental.
Enquanto começa a superar a pandemia, o mundo começa a viver um novo boom das commodities. O Brasil está preparado para se beneficiar disso?
À medida que vão se vacinando as populações mundo afora, está ocorrendo uma retomada. Os EUA devem crescer 6,5% esse ano, os chineses, 6%. A Europa começa a sair da recessão. Esse boom de commodities é reflexo da retomada mundial e o Brasil vai se beneficiar, mas não na integralidade, porque não faz o dever de casa. Temos um problema fiscal que se agravou por causa do orçamento emergencial, a taxa de juros já subiu duas vezes e vai subir mais. O dinheiro está barato no mundo inteiro e aqui vai encarecer. A nossa própria moeda sofreu uma desvalorização brutal.
Desmatamento, garimpo, grilagem, tudo isso é péssimo para o país. Os brasileiros ligados às cadeias mundiais de suprimento estão sofrendo retaliação. Na hora de colocar o dinheiro, os fundos de investimento que têm hoje US$ 100 trilhões vão olhar se o país está cuidando da questão ambiental. Quem não estiver, que pelo menos tenha inteligência para ganhar dinheiro.
Em 2014, o senhor anteviu a crise econômica do país e fez um forte ajuste fiscal no Espírito Santo. O que seu faro de economista aponta agora para o cenário econômico brasileiro?
Se há situação que precisa ser enfrentada, não dá para empurrar para debaixo do tapete. O Brasil precisa endereçar o problema fiscal. Temos um endividamento alto, perto de 90% do PIB, e está sendo empurrado para depois da eleição. O orçamento de 2021 é outro exemplo: ao invés de priorizar o enfrentamento à pandemia, se privilegiou o direcionamento de recurso para curral eleitoral de parlamentar. A liderança precisa conversar com políticos, empresários, com o Brasil, e convencer do caminho a ser trilhado.
O senhor atua na defesa do ambiente e da educação. Por que pautas tão fundamentais não estão na agenda dos governantes?
Educação tem de virar obsessão nacional. Em tempo integral, com um projeto de vida, formação profissional e tecnológica. Precisamos de um líder que abrace a educação básica como prioridade. É preciso um mutirão no país tal como há pela vacina: envolver as igrejas, os meios de comunicação, todo mundo. Na questão ambiental, primeira coisa a fazer é acabar com a ilegalidade na Amazônia. Desmatamento, garimpo, grilagem, tudo isso é péssimo para o país. Os brasileiros ligados às cadeias mundiais de suprimento estão sofrendo retaliação. Não precisa derrubar uma árvore para aumentar a produção pecuária ou de grãos, tem terra suficiente. Na hora de colocar o dinheiro, os fundos de investimento que têm hoje US$ 100 trilhões vão olhar se o país está cuidando da questão ambiental. Quem não estiver, que pelo menos tenha inteligência para ganhar dinheiro.