Fundador de um dos maiores grupos editorais do país, Luiz Schwarcz acaba de lançar um livro de memórias, em que aborda seu histórico de depressão e reconstrói a história de seu pai, André Schwarcz. Nascido na Hungria, André escapou de ser carregado com seu pai, Láios, para um campo de extermínio nazista – Láios o salvou empurrando André do trem que os transportava.
A experiência de ter sobrevivido, mas deixado o pai seguir rumo à morte, deixou marcas profundas em André. Luiz cresceu vendo suas noites de insônia e sua tristeza constante. Além do histórico familiar, no memorialístico O Ar que Me Falta o editor aborda tópicos polêmicos de sua vida, como o soco que deu em um participante da Festa Literária de Paraty (Flip), em 2019. Nesta entrevista, ele lembra esse e outros casos, conta sobre o processo criativo da obra, compartilha como venceu a depressão e opina sobre o atual momento do mercado livreiro e a era dos cancelamentos na internet.
Com surgiu a ideia de tratar de sua depressão e da vida de seu pai em livro?
Passei muitos anos tentando escrever sobre o meu pai. Alguns dos meus contos, das minhas pequenas ficções, já giravam em torno dele. São textos que entraram em Discurso Sobre o Capim (2005) ou em Linguagem de Sinais (2010). Depois, trabalhei muito tempo em um romance, baseado mais na parte de aventura da vida dele na guerra e na imigração para o Brasil. Um dia, em uma conversa com um amigo editor, ele sugeriu que eu fizesse um livro de não ficção sobre meu pai. Fiquei com aquilo na cabeça e comecei a pensar em um livro que se chamaria O Silêncio do Meu Pai, que seria o tal livro de não ficção.
E então vem o episódio que o senhor narra no início do livro, em uma estação de esqui.
Tive uma crise de ansiedade em um lugar paradisíaco, em um momento em que eu não esperava, que está narrado em O Ar que Me Falta. Naquele dia, tive um clique. Foi algo tão forte que falei: “Tenho de escrever sobre minha depressão”. Aí juntei o livro que estava nascendo ali com o livro que eu sempre quis fazer na busca de preencher o silêncio que meu pai deixava.
O isolamento social motivou o senhor a finalizar o livro?
Esse episódio do esqui foi em janeiro de 2020. Em fevereiro comecei a escrever. Quando a pandemia começou, estava em Nova York. Passo parte do ano lá, pois minha mulher (a historiadora Lilia Schwarcz) dá aula na Universidade de Princeton. Tive uma feira cancelada e me concentrei ainda mais na escrita. Passei a escrever 18 horas por dia. Então a pandemia me estimulou, mas não foi por causa dela que comecei a escrever. De certa forma, esse livro já estava sendo escrito dentro de mim há 60 anos, eu só não encontrava a forma dele. Encontrei-a em 2020.
Como foi optar pela não ficção? O senhor poderia tratá-lo como uma autoficção, como a série Minha Luta, de Karl Ove Knausgard, por exemplo.
Tem muita gente que leu o meu livro e falou que é como se fosse uma narrativa de ficção. Teve até alguém que me perguntou por que não entrou como ficção na lista da Veja, por exemplo. Mas não é ficção. Não quero me comparar com o Knausgard, que é um escritor maravilhoso, mas são livros que entram em uma linha tênue. Acredito que, por Knausgard ser mais completo como escritor, pode ser chamado de autoficção. Eu devo ser modesto e tratar meu livro como um livro de memórias.
Ou seja, não houve pretensão de escrevê-lo como ficção?
Tenho o desejo de escrever de uma maneira limpa, bonita, mas a palavra “pretensão” é que não soa muito boa em relação ao trabalho. É um livro que saiu sem pretensões, com um naturalidade e uma necessidade muito grande de expressão. No entanto, embora eu não tenha escrito o livro com a pretensão de fazer uma ficção, ele pode ser lido como se fosse.
Como editor e escritor, o que significa lançar um livro hoje?
Nunca escrevi nada cuja intenção fosse ficar guardado para mim mesmo. Escrevi muitos livros e não os publiquei por julgar que eles não estavam bons. De alguma forma, esse livro foi escrito para mim, para transformar o sofrimento que tive em parte da minha vida em uma obra literária. Ou seja, de alguma forma, foi fazer da minha vida o que eu faço para viver. Foi para mim, mas não seria para ficar guardado. Não teria tempo nem sentiria alívio escrevendo sem compartilhar.
A ideia de que a sociedade hoje é bipolar é bem coerente. Não apenas pela situação de divisão, como também pelo fim das temporalidades. Não há mais tempo. O tempo é o tempo da hora. Se a pessoa fez algo, tem que ser cancelada. É como se o passado dela não existisse, e o futuro tampouco, porque você cancelou. As pessoas não refletem, precisam agir já, o presente pede urgência.
A depressão é um tema central de O Ar que Me Falta. O senhor se considera curado?
Eu me considero praticamente curado da depressão, embora acredito que a cura total não exista. Para o tipo de depressão que tenho, é uma cura majoritária, não total.
A depressão é uma doença para a qual muita gente resiste em buscar ajuda. Qual é o primeiro passo?
Busquei vários tipos de ajuda que recomendo que todos busquem. Em primeiro lugar, busquei a ajuda familiar. O deprimido que tem uma família que reconhece a depressão como uma doença real, que não tem preconceito, poderá ter esse amor, e ele é fundamental. Depois, tem a terapia e a psicanálise, que eu também usei. São muito importantes. Além disso, pode haver apoio de médicos especialistas para que, em casos como o meu, que necessitam de acompanhamento medicamentoso, haja a orientação adequada. E também recomendo esporte, ioga...
São atividades complementares que podem ser escolhidas conforme o perfil de cada um?
Cada um encontra sua forma de cura. Quem não puder contar com apoio familiar terá de carregar mais nos outros pontos, no acompanhamento profissional. Cabe a cada um encontrar esse equilíbrio entre os diferentes pontos.
A depressão e a história de seu pai, temas que foram reunidos lado a lado nesse livro, provavelmente também já haviam sido observados em conjunto em suas sessões de psicanálise. Ou o senhor relacionou os temas à medida que escrevia?
Fiz psicanálise por 13 anos, como eu conto no livro. Depois, fiz mais alguns anos, na sequência. É natural que tudo isso tenha sido trabalhado em análise. Não foi trabalhado no livro pela primeira vez, não.
Em fevereiro, celebramos os 10 anos da morte de Moacyr Scliar. O escritor também era uma voz de união e diálogo na coletividade judaica. Sua falta é muito sentida no momento, em que a comunidade se dividiu no apoio ao atual presidente. No seu livro, a tradição judaica é muito importante. Como vê a coletividade neste momento?
A coletividade judaica não está à parte do país. Com o país dividido, a coletividade judaica vai também se dividir. Ela não tem uma coesão tamanha a ponto de imunizá-la dessa rachadura política brutal que está existindo no país. Isso é comum a qualquer coletividade que se insere em um contexto.
Apresento minha solidariedade às livrarias de rua, que estão sofrendo, mas reconheço que o comércio online vence a pandemia e permite a venda dos livros neste período. As coisas são complexas, não têm apenas um lado.
Como é hoje sua relação com a religiosidade judaica?
Vou à sinagoga nas chamadas grandes festas, no Yom Kipur. Tenho o jantar de Shabat, às sextas-feiras, na casa da minha mãe, no qual eu faço a bênção do vinho e do pão. Mas, para mim, tudo isso só tem um sentido: lembrar do meu pai. Não tenho crença em Deus; tenho a crença no judaísmo enquanto cultura e conjunto de tradições.
É uma maneira de reencontrar o passado?
Hoje me emociono muito com isso, coisa que eu não fazia na juventude. Relato no livro que sempre ficava ansioso para sair da sinagoga, pois era o lugar onde a tristeza do meu pai se expunha. Judaísmo, agora, é me reconciliar com aquele momento que eu não queria ter estado ao lado dele, como se pudesse pedir desculpa, para novamente encontrá-lo. Não há outro sentido a não ser encontrá-lo, imitá-lo, fazer o que ele gostaria que eu fizesse.
O Ar que Me Falta não deixa de lado episódios com potencial polêmico, com o soco que deu em um participante da Flip, em 2019. Como foi a decisão de abordar esse tema?
Coloquei-o no livro porque é um exemplo de um momento em que perdi o controle. São dois momentos que estão citados no livro, um na sede da Companhia das Letras e outro na Flip. Não tive outros descontroles públicos. Mas, se decidi fazer um livro sobre minha bipolaridade, tinha de escrever com sinceridade total. Mostro como não me orgulho e me envergonho disso. Também mostro como minha psiquiatra falou que aquilo não tinha nada a ver com bipolaridade, que outras pessoas também poderiam perder a cabeça perante um insulto. Mas, para mim, quando algo assim acontece, imediatamente acho que é a doença que está em ação, que me descontrolei, e peço desculpas, como foram nesses casos. (Schwarcz foi xingado por uma pessoa da plateia, que alegava que ele havia se negado a receber um livro para entregar ao escritor Mia Couto e, como resposta a essa negativa, abordou sua depressão entre os xingamentos.)
Como é a sua bipolaridade?
Sou um bipolar muito leve, tenho poucos momentos de real descontrole.
Não houve resistência em publicar um episódio de violência em um livro que narra sua história familiar?
Teve gente que preferia que eu tivesse omitido esse capítulo da violência. Consideravam uma exposição muito grande. Respondi que ou faço um relato completo e mostro como me sinto nesses momentos em que acho que minha bipolaridade está em ação, ou não faço um livro sobre isso.
A resistência em abordar o tema pode estar ligada ao momento em que vivemos, em que o risco de cancelamento nas redes sociais é iminente?
Podemos dizer que estamos vivendo um momento de bipolaridade, coisa que eu não tinha pensado antes desta nossa conversa. Não só porque o bipolar se divide em duas situações absolutamente opostas, da melancolia e da mania, mas também porque, quando você está em um momento de baixo controle ou em uma crise de mania, a urgência é um aspecto fundamental da nossa existência. Tudo precisa ser resolvido imediatamente. É uma característica da era das redes sociais. Não há tempo para a reflexão.
Vivemos um tempo de constante urgência?
A ideia de que a sociedade hoje é bipolar é bem coerente. Não apenas pela situação de divisão, como também pelo fim das temporalidades. Não há mais tempo. O tempo é o tempo da hora. Então, se a pessoa fez algo, tem que ser cancelada. É como se o passado dela não existisse, e o futuro também, porque você cancelou. As pessoas não se permitem refletir, precisam agir já, o presente pede urgência. E, com urgência, não há reflexão. Engraçado, mas agora penso que deveria apresentar meu livro como um livro sobre o Brasil (risos).
Livros demandam reflexão. Como editor, esse tempo de urgência não lhe assusta?
A questão é que o Brasil não é só esse Brasil da falta de diálogo. Está ocorrendo uma reação muito forte à intolerância. Às vezes, a reação é de gente que é contra a briga em si, mas também não está disposta a dialogar. No entanto, acho que o livro no Brasil está vivendo um momento quase glorioso. Está crescendo. Não está caindo. Está sendo apreciado por gerações mais jovens. Isso é um sinal de esperança. Nem todos querem se entregar à beligerância.
O protagonismo da Amazon no mercado do livro causa preocupação? O cenário está cada vez mais centralizado, menos plural?
A pandemia aumentou o espaço do comércio online. Não foi só a Amazon que cresceu, mas o Magazine Luiza entrou em livros, a B2W, o Submarino. Isso deve ser analisado sob vários aspectos. O primeiro é que, em período de lockdown, em que as lojas presenciais não puderam atender, o comércio online mostrou que pode distribuir livros, inclusive para lugares onde não há livrarias. Esse é o aspecto positivo. O aspecto negativo é que as livrarias de rua foram muito atingidas.
Essa tendência já vinha se estabelecendo desde antes da pandemia.
Sim, é algo que já vem desde antes. As pessoas estão comprando muito online. E não apenas livros. Muitas livrarias entenderam isso e se transformaram em pontos culturais, não sendo só um lugar de compra. São pontos de encontro, com cafés e coisas assim. Mas a pandemia atrapalhou isso. Apresento minha solidariedade às livrarias de rua, que estão sofrendo, mas reconheço que o comércio online vence a pandemia e permite a venda dos livros neste período. Como tudo que tenho respondido nessa entrevista, quero dizer que as coisas são complexas, não têm apenas um lado.
Em O Ar que Me Falta, o senhor cita a satisfação e o carinho de estar próximo de suas netas. De certa forma, escrever sobre sua vida também foi uma forma de deixar um testemunho para as novas gerações?
Não quero ser pretensioso de achar que uma nova geração vai ter interesse na minha vida. Não sei se serei conhecido até essa geração começar a ler livros mais adultos. Quero que as minhas netas, em particular, leiam esse livro um dia. Todo mundo escreve para ser lido. Mas, como tenho dito, escrevi esse livro para transformar sofrimento em narrativa. Tomara que o livro dure até as novas gerações, mas seria muito pretensioso da minha parte pensar nisso.