A obra de Moacyr Scliar (1937-2011) segue cada vez mais viva no ambiente acadêmico e entre o público. Dez anos após a morte do escritor, completados neste sábado (27/2), seu trabalho reverbera cada vez mais além da literatura.
– Scliar saltou para fora do mundo dos livros. Não é à toa que o nome de um dos novos espaços mais queridos da população de Porto Alegre é a Orla Moacyr Scliar – aponta a professora de Literatura Regina Zilberman.
O legado do autor ainda é um manancial a ser explorado em diferentes áreas – entre elas, o mercado editorial, a universidade e a opinião pública. Isso se deve ao fato de o escritor ter deixado uma obra vasta e atemporal.
– Nesses tempos de pandemia, me sinto como o protagonista de O Centauro no Jardim (livro de Scliar publicado em 1980). Sou uma centaurinha com minha máscara, circulando por espaços em que ninguém se importa ou tem cuidado com a coletividade. A obra do Scliar trata de não pertencimento e de redenção. O momento em que vivemos parece que não pertence a esse mundo e parece não haver ninguém para nos apontar um caminho redentor – interpreta a escritora Cíntia Moscovich.
Regina Zilberman lamenta a falta que Moacyr Scliar faz no debate público atual. Médico com especialização em saúde pública, conseguia se comunicar com leitores de diferentes perfis com clareza e autoridade.
– Ele conhecia profundamente a relação da medicina com a sociedade. Neste momento de pandemia, poderia ser um interlocutor muito importante da classe médica com a população – vislumbra a professora.
Judith Scliar, viúva do autor, também ressalta a importância do escritor no campo da medicina. Guardiã da memória do marido, Judith deve produzir até abril um debate em que a literatura médica de Scliar estará em foco. O encontro reunirá profissionais de diferentes áreas, com transmissão pela internet. Data e convidados ainda não foram confirmados.
– Moacyr tem mais de 20 livros publicados na área médica. Realizamos um encontro online em outubro, para discutir os 40 anos de O Centauro no Jardim. Foi muito bom. Na hora, havia pouco mais de cem pessoas assistindo. Depois, passou de 3,5 mil. É muito positivo, porque as pessoas podem assistir em outros horários. Neste ano, nossas atividades devem ser todas online – afirma Judith.
Ainda sobre a falta que Scliar faz no debate público, Cíntia Moscovich lamenta que não exista mais uma voz como a do autor de A Guerra no Bom Fim (1978) para unir e representar a coletividade judaica:
– Parte da comunidade se aliou a Bolsonaro e outra parte deu as costas. Não sei se Scliar conseguiria conciliar essas duas partes. Mas acho que ele conseguiria reunir em torno de si mais judeus progressistas. Ao menos conseguiria desmoralizar com mais graça esse pessoal aliado ao atual presidente.
Cíntia diz que, quando a comunidade judaica está diante de um impasse, há sempre alguém a ponderar: “O que será que o Mico faria para resolver isso?”. Mico era o apelido de Scliar. Regina Zilberman concorda:
– Scliar era um farol para a comunidade judaica. Um farol que perdemos e que nos faz muita falta.
O trabalho realizado pelo escritor na imprensa foi o primeiro a ser retrabalhado pelos editores após sua morte. Regina já organizou, para a Companhia das Letras, três coletâneas com crônicas e artigos publicados por Scliar em Zero Hora. Além disso, também compilou para a Edelbra um volume com textos para serem trabalhados entre jovens.
Com vasto repertório de leituras e agilidade na escrita, Scliar abordou nos jornais temas como política, relações internacionais, cotidiano e medicina. Recentemente, a família do autor também teve acesso a uma séria de crônicas assinadas por ele na revista Shalom. O material também têm potencial para ser reunido em livro.
– Não tenho dúvida de que mais obras podem ser construídas a partir do que já foi impresso em jornais. A ZH tem seus arquivos digitalizados e organizados, mas outros veículos simplesmente desapareceram. Muita coisa pode ser retomada, e a digitalização e publicação desse material se faz necessária – diz Regina Zilberman.
Grande parte do acervo de Scliar está protegida no Delfos, espaço de documentação e memória cultural da PUCRS. Entre os arquivos, encontram-se manuscritos, correspondências, recortes de jornais, fotografias e diplomas, muitos desses materiais disponíveis em versões digitais.
Organizado e metódico, o escritor costumava guardar revisões, correções e diferentes versões das histórias e artigos que escrevia. Por conta disso, o acervo no Delfos pode servir como uma vasta fonte para pesquisadores que trabalham com crítica genética, o campo de estudo que reconstitui a história de criação de diferentes tipos de texto.
Dissertações e teses sobre Scliar estão disseminadas por todo o país, sedimentado o autor como uma referência nacional. Pelo menos dois livros de ensaios demonstram a amplitude geográfica dos interessados por seu trabalho. Tributo a Moacyr Scliar, lançado em 2012, tem organização de Zilá Bernd (UFRGS), Maria Eunice Moreira (PUCRS) e Ana Maria Lisboa de Mello (UFRJ). Já O Olhar Enigmático de Moacyr Scliar, de 2017, é assinado por Lyslei Nascimento e Maria Zilda Ferreira Cury, professoras da UFMG.
Para o professor Sergius Gonzaga, atual líder da Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, o respeito à obra do escritor gaúcho supera as fronteiras nacionais, uma vez que já foi traduzido para 16 idiomas. Em 2010, Sergius foi convidado por Scliar para representá-lo na 2ª Bienal Kafka-Borges, que reúne especialistas de todo o mundo na literatura dos homenageados e também escritores e pesquisadores de literatura fantástica e outros gêneros. Na ocasião, Sergius leu e analisou, diante dos participantes, o conto A Orelha de Van Gogh, que dá nome a uma coletânea lançada pelo autor em 1989.
– Recordo que o conto foi vivamente aplaudido e que os participantes tinham conhecimento e interesse genuíno pelo Scliar – lembra o professor.
Sergius considera que os contos são o maior legado de Scliar.
Com certeza Scliar está entre os grande contistas da história do país. É excepcional. Às vezes, seus contos têm uma indefinição entre o fantástico e o realismo, que é uma característica do fantástico contemporâneo, que abole fantasmas, monstros e fatos sobrenaturais.
SERGIUS GONZAGA
Professor de Literatura
– Com certeza Scliar está entre os grande contistas da história do país. É excepcional. Às vezes, seus contos têm uma indefinição entre o fantástico e o realismo, que é uma característica do fantástico contemporâneo, que abole fantasmas, monstros e fatos sobrenaturais. A Orelha de Van Gogh é um conto perfeito. É um texto que pode ser lido desde uma ótica francamente realista e humorística até uma ótica fantástica, a exemplo de Casa Tomada, de Cortázar – analisa Sergius.
Já os romances do autor costumam apresentar personagens cindidos, que buscam conciliar naturezas e identidades diferentes, como em O Centauro no Jardim, em que o protagonista é metade homem, metade cavalo; ou em O Exército de um Homem Só (1973), em que o imigrante judeu Mayer Guinzburg divide espaço com Capitão Birobidjan, seu alterego quixotesco.
– São personagens que não têm senso de pertencimento. E não são assim por serem imigrantes ou judeus. Eles não pertencem porque são de fato estranhos no mundo. Dez anos depois da morte de Scliar, esses personagens ganham uma atualidade gritante. Com a pandemia, parece que cada um de nós está em um livro de Kafka.
A literatura é preciosa por nos ajudar a pensar dramas individuais mas também fatalidades coletivas como a que estamos vivendo agora – diz Cíntia Moscovich.
Sergius Gonzaga considera que essa cisão dos personagens talvez seja a característica mais distinta da literatura de Scliar, capaz de destacá-lo entre outros escritores de sua geração. Trata-se de personagens calcados em determinados setores da comunidade judaica, em que os ideais utópicos encontravam terreno fértil para avançar nos anos 1970. Por outro lado, os mesmo indivíduos eram também seduzidos pelo milagre econômico setentista, que recompensava com distinção social aqueles que aderiam ao establishment.
– Ao mesmo tempo em que os personagens querem mudar o mundo, fazer uma nova comunidade humana, o mundo que está diante deles oferece benesses, coopta, oferece a chance de triunfar socialmente. Há uma tensão que não é resolvida. Mayer Guinzburg, por exemplo, é um homem que continua dividido. Mantém o eu revolucionário do Capitão Birobidjan enquanto o eu real dele triunfa economicamente – explica Sergius.
Apesar de contar dramas individuais, as narrativas de Scliar captaram os desejos e a insegurança de uma classe média que ascendia no Brasil.
– Scliar consegue universalizar suas narrativas. São dramas específicos de uma pequena comunidade, mas se você tirar a religiosidade judaica e colocar a católica, terá aí os impasses vividos por praticamente toda a classe média nascente. Era uma classe que via o patriarcalismo e o catolicismo desabando e que tinha diante de si um mundo estranho, ao qual não estava adequado. Esse é um dos grandes motivos pelos quais tantos leitores se identificam com a obra dele.