Por Abrão Slavutzky
Psicanalista, autor, entre outros, de “O Dever da Memória: o Levante do Gueto de Varsóvia” (Ed. AGE, 2003)
Quando o Scliar (1937-2011) morreu, em 27 de fevereiro de 2011, imaginei o amigo escritor viajando para o além. De diferentes formas ele exaltou a imaginação, afirmando ser uma necessidade psicológica, daí a ficção. Além do que imaginar o amanhã, é traçar caminhos, é sonhar. Muito conviveu o sonho dos imigrantes no velho Bom Fim que tiveram no “Princípio Esperança” sua fé e seu norte.
Também foi um entusiasmado pelo saber, e a primeira vez que li o nome Freud foi na sua biblioteca, que continha a obra completa do Pai da Psicanálise. Aliás, fez mais de uma análise, conversamos várias vezes sobre a psicanálise e a literatura, e escreveu sobre a ficção e Freud: “A ficção é uma necessidade psicológica. No modelo freudiano, a mente é composta por três entidades: superego, ego e id. Há então um jogo de três personagens na cabeça da gente. E o que é um sonho senão uma ficção?”.
Doutor em Medicina, estudou judaísmo, artes, história. Escrevia em qualquer lugar: em aviões, na cama do hospital – essa eu vi –, não atrasava compromissos. Minha irmã Bluma disse que o Mico, apelido familiar de Scliar, seu primo, desde criança era quem inventava as brincadeiras.
Em 2010, Scliar escreveu em Zero Hora: “Vacinar faz bem”. Sim, além de escritor, foi médico da Secretaria Estadual de Saúde, sendo o foi introdutor da vacina antigripal no Rio Grande do Sul. Participou das campanhas de vacinação contra varíola, poliomielite, sarampo, difteria, entre outras. Concluiu seu Vacinar Faz Bem assim: “Por incrível que pareça, há gente que é contra a vacina”. Se estivesse vivo, estaria, certamente, desde o início da pandemia, na luta pela vacina, com a ciência e a melhor medicina.
Sua fama internacional veio através de uma obra que foi traduzida em 16 idiomas. Está entre os 12 escritores brasileiros mais lidos no Exterior, tendo vencido três troféus Jabuti e o Prêmio Casa de Las Américas, entre outros. Escreveu 74 livros, integrou diferentes coletâneas, e em 2003 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras por 35 votos de 36 possíveis e uma abstenção. A partir de sua primeira novela, A Guerra do Bom Fim, em 1972, abriu um caminho que integrou o realismo fantástico, os judeus, o Brasil, os sonhos. Sempre acompanhado de humor, às vezes amargo, tristonho, ora erotizado e gracioso. Há uma fortuna crítica no site que leva seu nome, em que se destaca a pesquisadora Regina Zilberman. O site foi criado e é dirigido por Judith Scliar, que promove atividades culturais sobre a obra do seu esposo.
O momento mais triste que vivi ao lado do escritor foi na morte de sua mãe, uma verdadeira ídiche “mome”. Aconteceu num domingo à tarde, no distante inverno de 1971. A tia estava internada, e já se sabia que seu câncer era inoperável. Devia ser entre 15h e 16h quando cheguei ao Hospital Moinhos de Vento. Fiquei sabendo que Mico pedira a todos que saíssem do quarto. Ficou a sós com a mãe. Bati, entrei, e ele aceitou minha presença.
Muitos anos depois, por ocasião do Dia das Mães, Scliar relembrou a dolorosa experiência na crônica Pietá: “Minha mãe morreu. De câncer, como outras mães. Uma doença apavorante, mas não rara. Eu, como médico, deveria estar preparado para a ideia de câncer em alguém dos meus. Mas não estava preparado. E nem pude aceitar a situação. Nem o diagnóstico, nem o prognóstico, nada. Quando, saindo da sala de operações, o cirurgião me disse as clássicas e medonhas palavras – não há nada a fazer, está tudo tomado –, tive, pela primeira vez na vida, a sensação de vertigem, que, num átimo, nos precipita no mais fundo dos abismos. É uma sensação que só não nos aniquila porque é passageira (mas exigirá o resto da vida, seja este resto quanto for, para que precariamente elaboremos)”.
Ao final de Pietá, concluiu: “Meu primo, que também é médico, me ajudou naqueles últimos instantes. E logo tudo estava terminado”. Após a morte, nos abraçamos e ali fomos irmãos para seguir a vida. Tia Sara foi única, gostava de se pintar, fora professora e alfabetizara seus filhos, estimulando neles a escrita: Moacyr, Wremir e Marili. Seu sobrenome era Slavutzky, meu pai foi um de seus irmãos.
Há anos fiz uma entrevista com o Scliar para uma revista e conversamos sobre sua vida, em especial, de como nasceu a novela O Centauro no Jardim. Esse livro, depois, seria eleito, em 2002, pelo National Yiddish Book Center dos Estados Unidos, uma das cem melhores obras de temática judaica dos últimos 200 anos. Scliar passava a figurar ao lado de expoentes como Bashevis Singer e Philip Roth. A gênese da insólita trama de seu livro é esta: “O centauro no jardim nasceu assim: tudo partiu da ideia de um centauro, um ser mitológico. A minha primeira aproximação foi uma coisa sem maiores consequências, uma crônica sobre uma corrida de cavalos, ligada ao Grande Prêmio Bento Gonçalves, que era vencida por um centauro. Mas senti que não tinha esgotado e terminei escrevendo uma novela. A cena fundamental foi a da circuncisão: fazer a circuncisão no centauro, em um cavalo, me fascinou, e sua vida ficou judaica”.
Scliar fora circuncisado, como todos os guris judeus do Bom Fim, e na ficção foi quem fez a circuncisão com tensão e humor. Amplificou assim o clima emocional angustiante e gracioso da circuncisão, essa estranheza do ritual judaico. Um crítico do Washington Post escreveu: “Dr. Scliar é médico e judeu, mas deve ter também sangue de centauro”.
Em uma mesa-redonda, em 2004, sobre os cem anos de imigração judaica no Brasil, Scliar falou sobre sua infância no Bom Fim. Disse que havia pobreza, mas tinha o que comer, pois os ratos que via em sua casa eram gordos. A plateia riu e se quebrou a formalidade, pois o escritor, quando falava ou escrevia, era, geralmente, bem-humorado. Um exemplo de sua graça está num livro meio esquecido, Cenas da Vida Minúscula. Nele, Laila, uma mulher minúscula, de um palmo só, está doente, e seu esposo vai à farmácia. Ao pedir ao farmacêutico um antibiótico, fica preocupado com a dose certa, devido ao tamanho da mulher. O outro, tomado pela curiosidade, imagina tratar-se de uma anã e começa a discorrer sobre as vantagens eróticas de uma mulher pequena. Seu jeito bem brasileiro de falar contrasta com o sofrimento do marido. Melancolia e humor se integram, daí uma definição do humor como um sorriso entre lágrimas.
Aliás, o humor é essencial na cultura judaica, sempre presente na obra do Scliar. Evoluiu de um humor ácido em contos como no livro O Anão no Televisor para um humor suave e com gozo, como no livro Manual da Paixão Solitária. O humor é rebelde, crítico tal qual Scliar, que foi um humanista, como no livro de crônicas A Nossa Frágil Condição Humana. Algumas vezes questionou certas orientações políticas dos governos de Israel ou Estados Unidos e, por ser um democrata, foi opositor à ditadura militar. Amava a liberdade, convivia bem com o contraditório aprendido nos Movimentos juvenis judaicos.
As palavras são pontes afetivas essenciais e fontes de beleza. Scliar escreveu sobre elas: “Palavras são fundamentais para quem escreve, como a madeira, a serra, o martelo, os pregos, para o marceneiro. Essa comparação, no meu caso, é muito mais do que adequada. Passei boa parte de minha infância na oficina de móveis do meu tio fazendo brinquedos”.
No final do livro autobiográfico, O Texto, ou: a Vida, escreveu que é “apenas o escritorzinho do bairro Bom Fim contando sua história com a esperança de que as pessoas a acolham com um pouco de simpatia”. Hoje tem milhares e milhares de leitores no mundo todo. Ainda escreveu: “O sonho de todo escritor é ter atrás de si pessoas que espiam sobre seu ombro para ver o que ele está escrevendo”.
Horas e horas sem fim, Moacyr Scliar se dedicou a escrever para os leitores que somos nós. Nosso sonho poderia ser que o Mico esteja nos espiando e escute o coro de um muito obrigado.
10 dicas de leitura, por Abrão Slavutzky
- O Exército de um Homem Só (1976): “A história do heroico Capitão Birobidjan, o solitário herói das utopias”.
- Sonhos Tropicais (1992): “Narra a trajetória de Oswaldo Cruz, que iniciou o controle das epidemias na Revolta da Vacina, em 1904. Um livro atual”.
- A Majestade do Xingu (1997): “Aborda a vida de Noel Nutels, médico judeu-brasileiro indigenista, em um livro de denúncias do genocídio dos índios, que segue em curso.”
- A Mulher que Escreveu a Bíblia (1999): “Romance histórico imaginativo que é, talvez, seu maior best-seller”.
- Os Vendilhões do Templo (2006): “O primeiro episódio, sobre a história de Jesus Cristo, é uma graciosa reflexão histórica sobre os tempos do Segundo Templo”.
- O Centauro no Jardim (1980): “Ficção fantástica que se passa no interior gaúcho e que talvez seja seu livro mais lido no Exterior”.
- A Orelha de Van Gogh (1989): “Scliar foi um mestre dos contos, e um exemplo é a história que dá título a este livro”.
- Do Éden ao Divã – Humor Judaico (1990): “Li e reli este livro, sendo que a ótima orelha é do seu amigo Luis Fernando Verissimo”.
- Manual da Paixão Solitária (2008): “Por este livro ganhou um dos seus três prêmios Jabuti. Trata-se de uma novela bíblica com erotismo e humor”.
- O Texto, ou: a Vida (2006): “Um ensaio autobiográfico que tem muito a ensinar”.