Por Roberta Flores Pedroso
Professora, doutoranda em Literatura Brasileira (UFRGS), autora de “Pão, Texto e Água: Retrato da Literatura Quando Negra” (Ed. Figura de Linguagem, 2020)
Em 2011, em uma entrevista célebre, o poeta Ferreira Gullar afirmou: “Falar de literatura brasileira negra não tem cabimento. Os negros, que para cá vieram na condição de escravos, não tinham literatura, já que essa manifestação não fazia parte de sua cultura. Consequentemente, foi aqui que tomaram conhecimento dela e, com os anos, passaram a cultivá-la”.
Complementando as palavras do poeta, podemos associar um trecho da tese VII de Walter Benjamin: “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie”.
É num contexto de barbárie marcadamente histórico e sincrônico que manifestações como a de Gullar evoluíram e se cristalizaram no tempo perdido da literatura oficial brasileira. Perdido sim! Se a destituição dos direitos do homem negro tivesse sido restituída – e a subjugação dos anseios desse povo tivesse data de término –, suponho que teríamos uma literatura brasileira que desse conta de retratar toda a diversidade cultural.
A barbárie sugerida neste texto e refletida na população negra pode ser parafraseada e entendida como: os povos que não descendiam de origem europeia eram incultos, primitivos e animalizados, portanto, sem cultura, sem passado, e a única forma de legitimá-los era mergulhar seu presente no eurocentrismo.
Na obra Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra, o professor Luiz Maurício Azevedo, um dos mais importantes pensadores atuais sobre a literatura dessa especificidade, nos oferta 17 ensaios de enfrentamento ideológico que desestabilizarão algumas verdades e sentidos até então consagrados, principalmente no que concerne à crítica literária.
Se, de um lado, o autor nos afirma que a obra não é um manual didático, um guia introdutório para estudos mais profundos sobre a negritude, de outro ele discorre longamente sobre a inoperância dos cursos de formação de professores, que, quando muito, apresentam Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto como os únicos literatos negros da nação.
O livro tem um ponto de vista marcadamente materialista, politicamente engajado, através do qual as implicações de ser negro no Brasil são consideradas não como manifestações meramente sociológicas, mas como reverberações do fazer literário.
Em um recorte que vai desde Maria Firmina dos Reis (1859) a Jeferson Tenório (2020), há uma forte disposição a questionar os motivos que levaram nossos teóricos a construírem uma crítica que parece feita mais para justificar suas invenções e menos para avaliar os objetos estéticos que escolheu.
Na direção contrária, Azevedo localiza, em ensaios, a crítica literária como uma área em crise, embora ele demonstre com clareza e objetividade a possibilidade da superação desse impasse por meio do corajoso exercício da crítica da crítica.
Por fim, Estética e Raça: Ensaios sobre a Literatura Negra refuta veementemente as afirmações tanto de Ferreira Gullar quanto dos teóricos responsáveis pela formação da fortuna crítica dessa literatura negra que vem desafiando o poder literário da segregada literatura brasileira. Esta obra nos desafia desde a sua epigrafe, de Malcom X: “Se você não está pronto para morrer por ela, é melhor retirar a palavra liberdade de seu vocabulário”. E nos convoca a repensar, a partir do nosso lugar de fala, o que é literatura e o que é crítica literária.