Por Luís Augusto Fischer e Roberta Flores Pedroso
Professor da UFRGS, escritor; Professora, mestra em Literatura Brasileira pela UFRGS
Em pleno século 19, no auge do Romantismo, quando o direito à escrita era privilégio do sexo masculino, uma jovem maranhense, negra, professora e de origem humilde, tomou a pena para escrever um romance de grande interesse, em vários sentidos e direções: em 1859 saía a primeira edição de Úrsula, que estampava, em lugar do nome da autora, o genérico "Uma maranhense". Poucos críticos e historiadores registraram o caso, e a posteridade não o conheceu a não ser mais de um século depois do lançamento – um exemplar do romance foi descoberto em 1962, e com ele se preparou uma edição fac-similar que sairia em 1975.
Não se trata de pouca coisa. Foi o primeiro romance escrito por uma mulher, e uma mulher negra; é o primeiro romance abolicionista brasileiro. Não precisaria mais do que esses títulos para ter forte relevância.
A maranhense era Maria Firmina dos Reis e morreu em 1917, a 11 de novembro, cem anos atrás. Em recente pesquisa realizada pela professora da UFMA Dilercy Adler, descobriu-se que a data real do nascimento da escritora é 11 de março de 1822, na ilha de São Luís (MA), dia que difere daquele registrado até então – 11 de outubro de 1825. Segundo a professora, a solicitação dessa correção fora feita pela própria Firmina, precisamente em 1847, quando da sua nomeação para o cargo de professora. Seu pai, João Pedro Esteves, era negro, e sua mãe, Leonor Felipe dos Reis, não era branca e sim mulata, tendo sido inclusive escrava do comendador Caetano José Teixeira, um dos maiores negociantes do Maranhão na passagem do século 18 ao 19. Vale a pena considerar esses aspectos biográficos sobre Maria Firmina, cuja fisionomia verdadeira não se conhece, mas foi reinventada de modo equivocado, a descambar para um branqueamento característico do racismo brasileiro (veja imagem ao final deste artigo).
Como estudou, como pôde vir a ser professora e a escrever? Sabe-se que o Maranhão da época era uma terra de vários escritores – Gonçalves Dias (também filho de mãe mulata), Aluísio e Artur de Azevedo, mais Sousândrade atestam a intensa vida literária daquela província, terreno portanto propício. Segundo Luiza Lobo, uma especialista em sua obra (em capítulo de Literatura e Afrodescendência, Volume 1, obra organizada por Eduardo de Assis Duarte para a editora da UFMG), Maria Firmina perdeu a mãe aos cinco anos de idade, vindo a ser criada pela avó materna; mas parece ter vivido algum tempo com uma tia materna, mais bem situada economicamente, o que lhe teria permitido estudo, que no entanto não tem documentação, a sugerir muita autoeducação. Seja como for, é certo que se tornou professora pública, a primeira concursada no Maranhão, em 1847. Depois de Úrsula, publicou outros textos em revistas literárias de seu Estado, incluindo um Hino à Libertação dos Escravos, em 1888.
O romance é concebido e estruturado no modelo romântico, com aspectos góticos. Apresenta uma descrição ufanista da natureza, a que não falta, porém, um certo verismo – "o ardente sol" do Brasil é registrado diretamente. Mas o centro do enredo não é a realidade empírica, e sim uma trama de amor proibido. Úrsula é filha de uma viúva empobrecida e se apaixona por Tancredo, também filho da elite; ele carrega uma desilusão amorosa terrível com Adelaide, seu primeiro amor, que aproveitou um período de ausência dele para, com cálculo frio, casar com o pai de Tancredo, um homem mau que fizera sofrer agudamente sua esposa, a mãe do herói. Úrsula e Tancredo chegam a casar, num convento, mas ele será assassinado pelo vilão número 1, Fernando, nada menos do que tio de Úrsula, que morre louca.
Nesse plano, o romance é convencional, ainda que bem engendrado, e flui numa linguagem narrativa frenética, de vez em quando histérica – não raro há "passos desordenados", "palidez espectral", "cabelos eriçados", "lábios convulsos", "ódio infame", "fulvo brilho", "assomos de dor". Há uma coletânea de clichês estruturais, como identidades obscuras e truncadas, anonimatos estratégicos, revelações triunfais, segredos e coincidências, desmaios e doenças; os personagens são ou excelentes, ou terríveis.
Mas o grande valor do trabalho de Maria Firmina dos Reis se revela em outra dimensão, que participa do enredo e compõe um mundo social paralelo, exatamente como a escravidão na vida brasileira. Aqui está sua grande virtude e singularidade. Em sentido geral, a autora expõe um conjunto de dados inéditos: aparece, por exemplo, a memória da África, para escravizados que vivem no Brasil; o navio tumbeiro é descrito com força expressiva (antes e com muito maior qualidade do que em Castro Alves); há descrição das condições objetivas da vida de escravizados na fazenda; temos flagrantes de vida cotidiana; em certo momento, são mencionados os instrumentos de tortura com que o perverso senhor suplicia seus escravos. E há toda uma galeria de personagens.
Mãe Susana, uma velha escrava, recorda sua infância nos sertões africanos. Foi ela que criou Túlio, o mais importante dos personagens negros, amigo de Tancredo, que o salva já na primeira cena, revelando seu caráter exemplarmente correto. Susana criou Túlio porque a mãe dele, ainda jovem, foi mandada para outro destino, numa cena rotineira na vida real de escravizados no Brasil. Finalmente, outro personagem destacado, Antero, exemplifica o sujeito que, para sobreviver (e manter seu vício da bebida), aceita ser cão de guarda de seu dono. Há ainda outros indivíduos, que aparecem sem nome, mas sempre destacados da mera paisagem, numa prova da atenção da escritora para com sua humanidade.
Não se poderia esperar que um romance com esses ingredientes encontrasse uma forma plenamente realizada, sem arestas ou problemas. Se quisermos comparar, vamos a Caldre e Fião (1824–1876), o gaúcho autor de A Divina Pastora (1847), romance de interesse documental, mas atravessado de problemas estruturais e de linguagem, por motivos diversos mas análogos – a rigor, a forma chamada romance não é neutra, como qualquer outra forma artística, e depende de um jogo nada óbvio de apropriação, aclimatação, amoldamento para acolher em si novas geografias e experiências sociais para as quais não foi concebido, em sua origem europeia. A rigor, da mesma geração apenas um gigante como José de Alencar (1829–1877) soube haver-se com o molde romanesco, não por acaso um filho das camadas superiores e cultas da sociedade brasileira, bem ao contrário de nossa Maria Firmina (e de nosso Caldre e Fião, também ele um sujeito de origem modesta, criado entre os "exposto" da Santa Casa).
O caso é que Úrsula às vezes tropeça em problemas pesadamente históricos. Túlio, o altivo escravo que salvou Tancredo, é por este recompensado com um dinheiro suficiente para comprar sua alforria. E lá vamos encontrar Túlio alegre, agora como pajem de Tancredo, mas livre. O texto, porém, omite o nome de seu proprietário, de quem ele comprou a liberdade. Quem seria? Somente muitos capítulos depois é que se sabe que sua dona era Luísa B..., mãe de Úrsula, outra oprimida, no contexto do romance.
A linguagem é outro caso interessante: na maior parte das vezes, todos falam entre si num tratamento de segunda do plural, "vós", até mesmo alguns escravos, numa evidente superestimação.
O único momento em que aparece algum vocabulário popular é na boca de Antero, que está com saudade da bebida, dizendo que "não mata o bicho" faz tempo. Também em Antero temos uma imprecisão de registro social: em discussão com Túlio, Antero defende seu vício de beber dizendo que trabalhava muito, e o dinheiro era seu. Então recebia pagamento? Mas ele é dado como um "escravo velho"! Ou era um escravo de ganho, que podia reservar parte dos ingressos para si?
Vale o registro crítico de que a nova edição, que vem acompanhada de ótimos paratextos (uma cronologia abrangendo casos brasileiros e americanos relativos à literatura escrita por ou sobre afrodescendentes na América, assim como um ensaio final, ambos de Eduardo de Assis Duarte), deixa muito a desejar em pelo menos dois aspectos. Um, não soube fixar o texto a contento, mantendo injustificadamente oscilações erráticas da primeira edição e mesmo alterando para pior algumas passagens; dois, apôs notas dispensáveis e deixou de anotar coisas de maior importância.
Como se vê, Maria Firmina enfrentou temas e situações que eram ao mesmo tempo cotidianas e por assim dizer invisíveis, ou ao menos indizíveis. Teve coragem e qualidade para romper esse circuito. Como diz um dos mais importantes estudiosos do tema no Brasil, o já citado Eduardo de Assis Duarte, Firmina mostra que os bárbaros são os escravizadores, ao passo que os escravizados são mostrados como paradigma moral positivo (estando toda a narrativa mergulhada numa ética cristã piedosa). E mostra mais: o romance arma um triângulo social em cujo vértice superior "se coloca a vontade do senhor como intocável, a oprimir os que estão sob sua tutela, a mulher e o escravizado".
Como ler
Maria Firmina dos Reis ganhou homenagens recentes em livro e também um selo. Houve casos em que a imagem da autora foi "embranquecida", como na pintura acima. A versão de Úrsula com o selo da Editora PUC Minas é um dos mais acessíveis: pode ser encontrado em livrarias e sites de vendas de usados.