Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “O Terapeuta e o Lobo” (Artes e Ofícios, 2010), entre outros
No bairro Bom Fim pós-Moacyr Scliar, em plena Rua Henrique Dias, há uma árvore de jasmins florescidos. Segundo Bergson e outros filósofos que agora me escapam, ela não existe. Para tal, precisaria ser olhada, e o bairro está vazio. A sinagoga está vazia, os cultos agora são virtuais. Não se trata de grandeza humana, em tempos de pandemia, pois, à mesma hora, há aglomeração nas praias e haverá aqui mesmo, logo mais, com faces sem vergonha, máscara ou distanciamento.
O jasmim, por ora, é quase o último sobrevivente da manhã que começa. Há este escriba e o verdadeiro protagonista do arremedo de artigo: um mendigo sobrevivente ao sereno da madrugada. Já não é o filósofo Bergson que nos socorre, mas o romancista Erico Verissimo, pedindo uma ação para a sobrevivência da cena. Sem o seu contador, afinal, as histórias não podem continuar.
O mendigo trava um diálogo firme no orelhão desativado. Desativado? Só para os estraga-prazeres, patrulheiros da verossimilhança e da realidade.
O homem, em trapos, chega a botar novas fichas e conversa com um amor do seu passado ou presente. Não aceita o que lhe fizeram, propõe um encontro para logo mais, na Felipe Camarão, adiante da sorveteria. Quer discutir novamente a relação. Oferece um copinho de creme com cobertura de chocolate. Ao ver-se observado, abre um sorriso e acrescenta:
– Com um cafezinho.
Socorre-nos o psicanalista René Diatkine, que localizou na capacidade de inventar uma outra história para si mesmo a maior reserva de nossa frágil saúde mental. Lembro-me agora do neurologista André Palmini, explicitando algo análogo sobre o quanto, já acometidos pelo Alzheimer, ainda podemos guardar de lucidez, graças a uma reserva neuronal.
Reserva. Alma. Neurônio. Resiliência. O mendigo ainda os tem. Na mão esquerda, segura a garrafa cujo conteúdo pode tê-lo afastado de mulher, homem, trabalho, reputação e o jogou nas ruas. No entanto, ainda mantém um diálogo imaginário no meio-fio, em meio ao fio disperso e invisível que o deixa atado à vida. Igual a nós todos, continua remando contra a morte. Então, rimos juntos. Ele pergunta se tenho um recado para a sua amada, mando um abraço e o pedido que lhe trate bem. O jasmim volta à cena, abrindo espaço para o pensamento sobre o quanto somos representados pelo mendigo e Rei do Orelhão.
A pandemia, um mundo louco e um governo mais ainda, tiraram-nos do prumo. As perdas se acumularam, mais ainda localmente, junto à impunidade no descaso à saúde. Aos poucos, fomos perdendo a nossa dignidade, perdemos estranhos e familiares, nossos jardins feneceram. A um só tempo, jogados às ruas e sem podermos estar nelas, sobraram-nos janelas para observar os inconsequentes.
O mendigo não é um inconsequente. Ele ostenta a parte principal da nossa saúde mental, essa capacidade de reinventar orelhões e buscar fichas lá onde concretamente elas não mais existem, mas restam intactas na nossa imaginação. Porque foi assim que sobrevivemos ao ano inverossímil, buscando recursos na ficção (sim, fomos alimentados por leituras), reinventando a ópera onde imperava o silêncio, brincando como uma criança com o que lhe falta. Sábias, as crianças sabem que só brincar seriamente nos salva.
Enquanto não vem a vacina, salvou-nos o distanciamento, a máscara, a higiene nas mãos, mas não só. Sem que pudesse ser vista, salvou-nos essa reserva de capacidade de imaginar, forjada desde a infância, segundo Freud e Winnicott, e alimentada pela capacidade de narrar, segundo Benjamin. Sim, fomos salvos pelo que contamos e, sobretudo, pelo que imaginamos. Foi assim que o jasmim sobreviveu, será assim que ele renascerá.
E o mendigo ganhou mais um dia. Já não vejo sua garrafa e ainda ouço sua voz meio firme, confirmando o encontro na sorveteria da Felipe Camarão ou no sushi da Fernandes Vieira. No Bom Fim pós-Scliar, sabemos que fomos salvos pela capacidade de nos mantermos em contato, em torno das histórias reais e imaginárias.
Não sei quem o teria dito. Pierre Lévy, talvez, pensando o virtual. Ou primo Levy, escrevendo sobre um confinamento incomparavelmente mais atroz. Ou Boris Cyrulnik, o pai da resiliência, e que também sobreviveu a ele. Mas repito: não foram as plataformas que nos salvaram, tampouco os aplicativos de última geração, brilhando em telas cada vez mais finas. Fomos salvos pelas fichas grossas e pelos clássicos orelhões, reativados pela velha capacidade de nos mantermos imaginando.