A placa vermelha fixada abaixo da marquise do Mercado do Bom Fim, na Redenção, ostenta com orgulho: "Zé do Passaporte — o primeiro cachorro quente de Porto Alegre".
O mais antigo certamente ele é: chega ao seu 61º aniversário neste mês. O negócio nasceu como uma carrocinha em 1959. O Zé — José Ribeiro Faillace, falecido em 1994, aos 84 anos — era garçom do famigerado Bar do Fedor, na Osvaldo Aranha. Resolveu empreender ao mesmo tempo em que dava uma opção de lanche aos frequentadores do boteco que, reza a lenda, nunca fechava. O seu cachorro-quente acabaria ganhando fama parecida.
Logo faria um upgrade para um pequeno caminhão adaptado — um pioneiro dos food trucks na Capital — e, por fim, passaria para o trailer que está na memória do escritor, jornalista e professor aposentado Flávio Aguiar, 73 anos. Ele lembra que o lugar era frequentado principalmente por universitários, mas havia de tudo e todos: pessoas vestindo paletó e gravata depois das reuniões dançantes, boêmios, algumas prostitutas, também “gente da alta”.
— A tradição cultivada era ir ao Zé depois que a noite acabara, o baile terminara, vez ou outra o cinema e algum teatro ou concerto, ou a reunião política clandestina — diz ele, referindo-se ao movimento de resistência dos estudantes à ditadura militar. — A gente ia para lá nos “bondes fantasmas” que corriam na madrugada fria da cidade, ou mesmo a pé, pois, comparando-se com hoje, nada era muito distante naquela Porto Alegre.
Para Aguiar, Zé inovou em duas frentes: ao ficar aberto a noite inteira e na variedade dos ingredientes acrescentados ao lanche.
— A tradição era que o cachorro-quente fosse servido com mostarda e catchup. De vez em quando, para quem gostasse, maionese (escrevia-se maionaise) ou ainda um molho acebolado. O Zé botou de tudo nos cachorros: ervilha, milho, purê de batata, cebola crua e um molho feroz — rememora.
Foi a versão completa e super apimentada do lanche que acabou sendo chamada de Passaporte para o Inferno. E de quebra denominou o Zé do Passaporte — a criatura que deu nome ao criador.
O letreiro em cima do trailer era decorado com uns diabinhos de aparência marota. Mas as mascotes foram abandonadas lá pelas tantas, conta a nora de Zé, Márcia Bernardete da Cruz Lemos, 53 anos.
— Depois, com tendências religiosas, tivemos que tirar. Até funcionário pediu demissão quando se converteu — diz Márcia.
Para mostrar onde ficava o trailer, ela aponta para uma goiabeira em meio às vagas de estacionamento. Foi o próprio Zé quem plantou a árvore ali.
— Era uma perturbação. Pessoal querendo subir nela para roubar goiaba, e ele atrás. Ele cuidava da goiabeira que só.
Com a retirada dos trailers de lanche das ruas de Porto Alegre, o Zé do Passaporte mudou para uma loja no Mercado do Bom Fim em 2000, onde segue tocado pela família. Ainda tem gente que vai lá pedir o Passaporte para o Inferno, e daí Márcia sabe que não deve poupar nos molhos apimentados. Ela recebe clientes de décadas atrás, que querem matar a fome da barriga e da memória.
— Tem pessoas que param com o carro aqui para levar cachorro-quente para São Paulo — conta.
Trabalhando há 38 anos no Zé, ela diz que mantém o mesmo tempero usado pelo sogro e que os molhos continuam caseiros. Hoje, o lanche custa a partir de R$ 16. Marcia destaca que, enquanto tiver saúde, quer continuar garantindo seu sustento com o cachorro-quente e honrando a memória de José:
— Ele era um homem à frente do seu tempo.