Moacyr Scliar faleceu há quase 10 anos; há quarenta, publicou aquele que parece ser seu livro mais bem-sucedido, O Centauro no Jardim. Por que mais bem-sucedido?
Recorro a um levantamento que produzi, para a Zero Hora, em 2017, como festa de lembrança para o que seriam os 80 anos do escritor. Encaminhei 160 e-mails para gente leitora — leitores especializados, como professores de Literatura, mas também gente de outros mundos, os tais leitores comuns, que são a maior razão de ser da literatura — com uma pergunta na cabeça: da vasta obra publicada por Scliar, mais de 70 títulos em vários gêneros literários (conto, crônica, ensaio, romance, memória), qual seria aquela mais apreciada, mais lida, mais lembrada? Em qual gênero?
Houve então uma convergência importante: 57% dos consultados preferem o romance aos outros gêneros. E o título mais citado — quase três vezes mais do que qualquer outro livro individual — foi justamente O Centauro no Jardim. Por quê?
A resposta depende de muitos fatores. Para começar, Scliar tinha já praticado o gênero da narrativa longa em livros já significativos, como O Exército de um Homem Só, A Guerra no Bom Fim e outros. Mesmo tendo começado sua carreira de ficcionista com contos, foi no romance que ele encontrou um eco duradouro, ao que parece. Depois, na história do centauro se encontram três linhas de força marcantes de sua obra. Uma é o exame da condição judaica, que envolve esse sentimento de autoestranhamento constante, como aqui se vê na vida do menino-centauro, cindido ao meio em duas condições irreconciliáveis.
Outro elemento é a ambientação em Porto Alegre e arredores, o que aparentemente contradiz o cosmopolitismo do tema (imigração é por definição um tema anti-localista), mas tem um grande ganho em precisão e vigor ao dar a atmosfera que o autor conhecia como paisagem ficcional — e supera a visão provincial, lamentativa ou autoindulgente, que considera que boas mesmo são as paisagens de outros lugares. Finalmente, temos a força do romance de formação, que repassa a descoberta do mundo, e do lugar do personagem nesse mundo, de maneira a levar o leitor a um processo, a um percurso, que no fundo é revivido por cada um e por todos.
Como suplemento, há ainda uma piscada de olho para a mitologia gauchesca, que tem (ou tinha?) na figura do centauro uma de suas representações significativas. Em Scliar, o centauro não vive nos pampas, nem é herói da fronteira, aliás nem é de guerra.