Um vírus mortal que surgiu do outro lado do mundo e avança impiedosamente acima das fronteiras nacionais, obrigando boa parte da humanidade a se fechar em casa, nos isolando uns dos outros do convívio social. Esse é um retrato da pandemia de coronavírus, que traz insegurança, ansiedade, medo e aprofunda a desconfiança e o preconceito em relação ao outro – representado pelo chinês, afinal foi no Extremo Oriente que a covid-19 surgiu, ou pelo vizinho de porta, uma vez que qualquer um pode transmitir o Sars-CoV-2.
É nesse contexto de apreensão global que o pensamento disruptivo do sociólogo húngaro-canadense Frank Furedi, 73 anos, ganha especial relevância. Um dos maiores especialistas mundiais na “cultura do medo”, em paranoia e guerra cultural, o professor emérito da Universidade de Kent, em Canterbury, no Reino Unido, defende que, mesmo antes da pandemia, havia uma tendência de transformar todos os problemas globais em ameaça à sobrevivência humana: as mudanças climáticas, o terrorismo, a crise da obesidade e o próprio risco representado por um vírus desconhecido são, para Furedi, inflados a tal ponto que os alarmistas avisam que estamos chegando a um ponto sem volta.
– Essa forma de pensamento apocalíptico é inútil, pois nos distrai de lidar com sobriedade e objetividade diante das ameaças que a humanidade enfrenta – argumenta em entrevista a GZH.
Com uma perspectiva histórica, o pesquisador defende que a humanidade já passou por vários outros momentos obscuros, como pestes, fome, grandes guerras mundiais, e que a própria descoberta da vacina contra a covid-19 em menos de um ano é uma amostra inequívoca da capacidade criativa do ser humano e de sua força ao enfrentar desafios.
Autor de mais de 20 livros, entre eles How Fear Works – Culture of Fear at the 21st Century (“Como o medo opera – a cultura do medo no século 21”, em tradução livre), Furedi sustenta que o medo se tornou regra constante a ponto de colocar em risco nossas liberdades – a começar pela liberdade de expressão, muitas vezes ceifada em ambientes acadêmicos, na imprensa e no debate público pela imposição da autocensura devido ao temor de como os discursos possam ser recebidos pelos outros.
Um dos convidados da edição 2021 do Fórum da Liberdade, Furedi é frequentador assíduo de programas de entrevistas de TV na Europa e habitué das páginas de artigos em jornais britânicos, como The Guardian. Além do medo na psiquê ocidental, debruça-se sobre a história cultural da Grande Guerra. Nesta entrevista, traça perspectivas para o mundo que irá nascer pós-covid-19, a ascensão de nacionalismos, as tentativas de cercear a liberdade e, é claro, o medo do vírus.
Por que vivemos em uma cultura de medo?
Nas últimas décadas, parecíamos ter perdido o espírito humano e termos pouca confiança em influenciar nosso futuro. Essa falta de confiança se reflete na tendência de subestimar a capacidade das pessoas de lidar com os problemas que enfrentam. Ao mesmo tempo, tendemos a aumentar os perigos que enfrentamos. Consequentemente, transformamos o medo em resposta padrão para a incerteza. A cultura ocidental nos leva a isso. A evidência mais clara da normalização do medo é que falamos sobre o medo o tempo todo.
Antes da pandemia, havia um ressurgimento do nacionalismo. O Brexit e a Catalunha são indicativos disso. Durante a covid-19, vimos como a ideia de cooperação foi superada pelo egoísmo: fronteiras fechadas na Europa, luta por equipamentos médicos. O mundo pós-pandemia será mais egoísta?
Não tenho certeza se egoísta. Contudo, muitas pessoas percebem que só podem contar com sua própria comunidade e seu próprio governo. A pandemia mostra que a globalização cria conexões econômicas, mas não oferece solidariedade real. As instituições internacionais não se mostraram úteis na pandemia, então temos de repensar como podemos criar uma cooperação genuína entre as pessoas de diferentes nações.
A pandemia mostra que a globalização cria conexões econômicas, mas não oferece solidariedade real. As instituições internacionais não se mostraram úteis na pandemia, então temos de repensar como podemos criar uma cooperação genuína entre as pessoas de diferentes nações.
Como, então, o senhor espera que sejam as relações internacionais no pós-pandemia?
Parece que a pandemia minou a política da globalização, mas também enfraqueceu a autoridade de instituições internacionais como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e a União Europeia (UE). Muitas pessoas chegaram à conclusão de que o Estado-nação é muito mais importante do que imaginavam. Infelizmente, a pandemia também exacerbou tensões geopolíticas pré-existentes, por exemplo, entre os Estados Unidos e a China, entre a Índia e a China e entre Rússia e Estados Unidos. A tensão entre os Estados Unidos, uma potência global que representa o status quo, e a China, uma potência desafiante, é potencialmente a mais perigosa.
A pandemia aumenta o ódio contra o “outro”, contra as “pessoas diferentes”? Observamos muitos episódios ilustrativos de medos que vêm de fora, como do “vírus chinês”.
“Ódio” é uma palavra muito forte. A pandemia aumentou a suspeita em relação a outras nações, e os governos frequentemente culpam uns aos outros pelos problemas que enfrentam. No momento, a suspeita e a tensão entre as pessoas tendem a ser direcionadas a outras que vivem em suas próprias comunidades e se comportam de maneira diferente. Por exemplo, há muita tensão e conflito entre aqueles que usam máscaras e aqueles que não as usam.
Durante a Guerra Fria, vivemos o risco de destruição mútua entre os Estados Unidos e a União Soviética. Com a pandemia, voltamos a viver a possibilidade da extinção da humanidade? São sentimentos semelhantes?
Não creio que enfrentemos risco de extinção. Acho que o que enfrentamos é uma constante promoção da condenação que afirma que, a menos que mudemos nossos métodos, enfrentaremos a extinção. Muitas pessoas exploram a pandemia para afirmar que, a menos que mudemos radicalmente nossa vida, será o fim do planeta. Estou muito mais preocupado com os efeitos negativos da constante promoção do que seria a destruição do planeta do que com os efeitos físicos de longo prazo da covid-19.
Por quê?
Mesmo antes da pandemia, havia uma tendência de transformar todos os problemas globais em ameaças à sobrevivência humana. Em um momento ou outro, a crise global de obesidade, a ameaça de um vírus, o aquecimento global, o terrorismo global etc. foram inflados a tal ponto que os alarmistas avisam que estamos chegando a um ponto sem volta. Essa forma de pensamento apocalíptico é inútil, pois nos distrai de lidar com sobriedade e objetividade diante das ameaças que a humanidade enfrenta. A invenção incrivelmente rápida de novas vacinas durante esta pandemia mostra que temos a capacidade de resolver as mais graves ameaças globais, portanto, em vez de nos assustarmos até o estado de paralisia, deveríamos ter uma maior confiança na capacidade da humanidade de resolver os problemas que enfrentamos. Do meu ponto de vista, a maioria das afirmações sobre a extinção humana é motivada por impulsos moralistas e ideológicos que visam mudar a maneira como vivemos nossas vidas. Essas afirmações nos distraem de encontrar soluções técnicas e científicas para problemas como o aquecimento global.
Em poucos meses, teremos um contingente de vacinados, nos países desenvolvidos, e não vacinados, nos países pobres. Isso pode aumentar as divisões?
Infelizmente, no momento, tudo parece intensificar as divisões. A história dos desastres nos ensina que uma catástrofe tem um impacto diferenciado. Em alguns casos, os ricos ficam mais ricos, e os pobres ficam mais pobres. Precisamos fazer um esforço muito real para compartilhar nosso estoque de vacinas – não apenas porque isso é moralmente correto, mas também porque, a menos que as pessoas em todo o mundo sejam vacinadas, ninguém pode alegar estar seguro.
Sabemos que o mundo conviveu, ao longo da história, com pragas e guerras. Nossas gerações não viveram uma guerra mundial. E não tínhamos passado por uma praga. Percebemos nossas fraquezas?
Considero que a atual catástrofe é um teste de nossa humanidade e de nossa capacidade de lidar com a incerteza. Durante o ano passado, demonstramos grandes atos de solidariedade, pois muitas pessoas se esforçaram para ajudar os menos afortunados. Também demonstramos um nível de criatividade sem precedentes na maneira como nos adaptamos a circunstâncias difíceis. A invenção de novas vacinas mostra que podemos lidar com a maior ameaça que enfrentamos nos tempos modernos. Pelo lado negativo, também mostramos que podemos ser passivos, sem imaginação e mesquinhos uns com os outros. Existem também muitas falhas na formulação de políticas governamentais pelo mundo. No entanto, quando o balanço for feito, ele mostrará que nossos pontos fortes superaram os pontos fracos.
A cultura contemporânea é atraída para o pessimismo. A cultura popular – por exemplo, produções da Netflix – é obcecada pelo lado obscuro da humanidade. Mas quem leva a liberdade a sério abraçará sua nova vida pós-pandemia com alegria.
Após a Segunda Guerra Mundial, o horror do conflito levou a “anos dourados”, um boom de nascimentos, uma sensação de liberdade. Depois da covid-19, viveremos com o medo de uma eventual próxima pandemia ou teremos um novo momento de “felicidade”?
É difícil prever. Mas a cultura contemporânea é atraída para o pessimismo e constantemente sinaliza pessimismo sobre a condição humana de um modo geral. A cultura popular – por exemplo, produções da Netflix – está continuamente obcecada pelo lado obscuro da humanidade. Em tais circunstâncias, muitos acharão difícil acreditar que realmente tudo acabou. Mas quem leva a liberdade a sério abraçará sua nova vida pós-pandemia com alegria.
Contínuos lockdowns podem levar as pessoas em geral ao fenômeno do medo de sair à rua? Uma espécie de fobia social?
A pandemia reforçou atitudes e comportamentos pré-existentes. Isso significa que aqueles dispostos a esperar o pior desconfiarão da vida no novo mundo. Para uma minoria significativa, levará algum tempo para recuperar a confiança e em sentir-se à vontade para ir à rua.
Podemos perceber diferentes tipos de radicalismo em muitas sociedades. O medo do que os outros possam pensar nos leva à autocensura?
Eu me preocupo muito com a autocensura. Na verdade, a autocensura é mais perigosa do que a censura praticada por governos. Quando as pessoas temem expressar sua opinião por causa do que os outros possam pensar, a própria vida pública fica prejudicada. A democracia só funciona quando os cidadãos se sentem confiantes de que podem expressar livremente suas opiniões. Ao mesmo tempo, em lugares como o Brasil e os Estados Unidos, todos temos de estar preparados para ouvir opiniões de que não gostamos.
A democracia só pode existir se for espacialmente limitada. As fronteiras proporcionam às pessoas o sentimento de pertencimento. Na realidade, um forte senso de nacionalidade é pré-condição para a cooperação global.
A pandemia representou um dilema entre pessoas que defendem a segurança coletiva ao ficar em casa e outras que defendem a liberdade individual, o direito de ir e vir. Trata-se de um dilema ou de um falso dilema?
Estamos constantemente diante de escolhas difíceis. Para mim, o direito à liberdade individual é um princípio de primeira ordem. Liberdade individual significa que você é capaz de fazer o que acha que é certo, desde que não prejudique os outros. A liberdade individual não contradiz a solidariedade e a segurança da comunidade. Na maioria das situações, os indivíduos que exercem sua liberdade ajudam a criar as condições para a segurança coletiva. Se há um problema, é o comportamento irresponsável, não o exercício da liberdade.
Em seu livro Why Borders Matter (“Por que fronteiras importam”), o senhor argumenta que a crise da migração e das fronteiras físicas está ligada ao debate em torno das fronteiras simbólicas na vida cotidiana. estamos diante de um vírus que não respeita fronteiras, mas, ao mesmo tempo, há o reforço de fenômenos como os nacionalismos neste momento. Como equilibrar essas duas forças?
Há lugar para soluções globais e nacionais. Precisamos de cooperação global para lidar com questões como a pandemia, mas precisamos de fronteiras para que a democracia funcione. A democracia só pode existir se for espacialmente limitada. As fronteiras proporcionam às pessoas o sentimento de pertencimento. Na realidade, um forte senso de nacionalidade é pré-condição para a cooperação global. Sem fronteiras ou com fronteiras fracas, segue-se a condição de conflito permanente.
Como o senhor vive a pandemia? como tem lidado com o medo e a incerteza?
Tive sorte, porque nunca parei de escrever e de dar palestras, mesmo online. Durante o confinamento, minha esposa e eu descobrimos o prazer de caminhar e desenvolvemos o hábito de sair para andar por duas horas todos os dias. Portanto, não tenho tempo para me preocupar com a incerteza. Meu único medo é de que demore muito antes de minha academia ser reaberta e antes de que eu possa ir ao estádio assistir ao jogo do meu time de futebol. De vez em quando tenho um momento ruim e me preocupo com algo, mas aí ouço uma boa música para me ajudar a perceber que, em comparação com a situação difícil enfrentada por nossos ancestrais, somos muito, muito afortunados.
A programação do 34º Fórum da Liberdade
Organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE), o Fórum da Liberdade será realizado nesta segunda e terça-feira (12 e 13/04), totalmente online e gratuito. Serão 11 palestras ou debates. Analistas políticos, empreendedores e pensadores de diferentes campos da ciência abordarão o tema “O Digital Limita ou Liberta”, refletindo sobre o paradoxo das novas tecnologias, que trazem incríveis oportunidades aos negócios e ampliam o alcance de vozes dissonantes, mas também polarizam debates e criam bolhas nos meios digitais. Nesta 34ª edição, o IEE seguiu a tradição convidando especialistas de dentro e de fora do país, com visões antagônicas ou complementares. As inscrições estão abertas em forumdaliberdade.com.br. Ao efetuar o cadastro, o interessado recebe o link de acesso para acompanhar a programação. Confira a programação completa:
Segunda-feira
- 16h – As mídias sociais vão implodir a democracia? Com Alexandre Ostrowiecki, João Pereira Coutinho e Murillo de Aragão
- 17h10min – Abertura oficial. Com David Feffer e Hamilton Mourão
- 18h20min – Detox Digital. Com Cláudio Manoel, Luis Vabo e Ítalo Marsili
- 19h30min – O que um presidente tem a dizer? Com Michel Temer
- 20h20min – Vai tudo virar fintech? Com Guilherme Benchimol, Marcos Boschetti e Sergio Furio
- 21h50min – Encerramento do primeiro dia
Terça-feira
- 15h – O desafio das ferramentas digitais na educação. Com Salman Khan
- 16h15min – Reféns de milícias digitais? Com Frank Furedi, Jason Brennan e Luiz Felipe Pondé
- 17h40min – Caiu na rede, é venda. Com Alexandre Birman, Bel Humberg e Rachel Maia
- 19h05min – O vencedor leva tudo? Com João Pinho de Mello, Ricardo Geromel e Ronaldo Lemos
- 20h20min – Special guests. Com Mary O’Grady
- 21h10min – Quem vigia os vigilantes? Com James Robinson e William Waak
- 22h – Encerramento do evento