Um dos principais pesquisadores brasileiros sobre temas chineses, o economista mineiro Alexandre César Cunha Leite, 45 anos, avalia que as relações entre o gigante asiático e o Brasil estão estremecidas por episódios como as declarações hostis do deputado Eduardo Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo. A China é o principal comprador de produtos agrícolas brasileiros, e as palavras das autoridades da política externa sofreram dura resposta.
Professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Cunha Leite afirma que não se pode esperar uma reação pública de grande repercussão por parte do líder Xi Jinping. Mas, nos bastidores, a nação atua com planejamento de longo prazo e buscará alternativas, caso entenda que o Brasil deixou de ser um parceiro confiável.
Nesta entrevista, ele analisa o atual cenário do sistema internacional, a disputa pelo 5G e questões internas chinesas como a ascensão de uma classe média que pode contestar o regime autoritário do país.
A China está disposta a substituir o lugar dos EUA no sistema internacional como potência hegemônica ou apenas projetar poder econômico no mundo?
Os gestores públicos da China têm mais paciência do que os ocidentais. Não fazem planejamento de curtíssimo prazo para esse processo de substituição. Eles vêm construindo uma estratégia, primeiro, de crescimento doméstico. O Partido Comunista chinês tem o compromisso com a população de não permitir que essas pessoas voltem a sofrer carestia e invasão. A China passou por processos de fome grave, de intervenção estrangeira, inclusive de vizinhos, como o Japão. O compromisso é que não retornem a essa situação. O primeiro objetivo é de crescimento, porque isso acaba sendo distribuído para a população. Posteriormente, vem uma estratégia de desenvolvimento: não mais exclusivamente o acesso, mas sim um acesso com qualidade. Isso tudo pensado de forma doméstica. Mas chegou um momento, na passagem da década de 1980 para 1990, em que a administração chinesa entendeu que isso não é possível de ser feito só com as variáveis dinâmicas domésticas. Eles precisaram acelerar variáveis externas. Entre essas variáveis, há o processo de inserção internacional. No planejamento deles, o primeiro objetivo era ser um vendedor no mercado internacional. Alcançar espaços exigiu que a China passe por processos de adaptação, adequação e preparo. Em um primeiro momento, foi no mercado regional, asiático, e, depois, foi ao mercado africano. Depois, conseguiu se aproximar da Europa e até de América Latina e EUA. Não é que a China simplesmente quer expandir poder, ela está chegando a um nível de crescimento que não é só querer: está sendo impulsionada a fazer esses movimentos. Não são movimentos meramente econômicos, mas também políticos, pois houve conflitos. O que tenho observado é que a China tem condições de bancar isso, mas ainda não tem uma estrutura de disseminação da sua base ideológica, ou dos seus modos comportamentais, como tiveram Reino Unido e EUA.
Muita gente diz que “Hollywood nunca vai ser em Pequim” e o mandarim nunca será o idioma internacional, como o inglês.
Há 20 anos, eu não ouvia ninguém falando mandarim. A China hoje tem cadeira em praticamente todas as organizações internacionais. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), hoje, é dirigida por um chinês (Qu Dongyu). Isso é um elemento de soft power (poder de influência) impressionante. O dirigente anterior era um brasileiro, Graziano da Silva. Ele conseguiu montar uma agenda de atuação da FAO, que era promotora de um programa sensacional, que o mundo inteiro copia, o Fome Zero. O que o Brasil não fez, de dar relevância ao Fome Zero, a FAO conseguiu fazer internacionalmente. Isso só aconteceu porque o Graziano era o diretor-geral. Por ser presidente, ele tem poder de formar agenda. E esse poder de formação de agenda agora é da China. A expansão de Institutos Confúcio mundo afora é impressionante. Os grandes eventos internacionais de futebol normalmente têm uma plaquinha da Wanda. O objetivo desse empresário chinês (Wang Jialin), que começou na construção civil de imóveis populares no interior da China, pegando o boom imobiliário, é ser uma espécie de Walt Disney. Ele é o principal empresário do entretenimento da China. É dono de praticamente todas as salas de cinema da China e constrói empreendimentos imobiliários que são como condomínios fechados, com 15 torres de prédios, nos quais milhares de pessoas moram, têm shopping, salas de cinema. Não consigo afirmar se a população mundial em algum momento vai conseguir falar o mandarim como a maioria das pessoas que trabalha internacionalmente usa o inglês e o espanhol. O francês já foi dominante, também. Mas empresários brasileiros têm feito cursos de mandarim porque já entenderam que precisam do idioma para negociar com os chineses. Minha hipótese é de que, sim, a China vai chegar a um ponto de hegemonia, porque ela tem essas capacidades e está fazendo um exercício muito sério nesse sentido.
A pandemia acelerou fenômenos políticos, sociais e econômicos. Um deles foi a demonstração de força da China como garantidora de equipamentos de emergência, um papel que já foi dos EUA.
Isso tem acontecido desde a década de 1990. A China já vinha ocupando espaços deixados, por descuido, não imagino que seja estratégia norte-americana, de alguns governos, principalmente de presidentes do Partido Republicano. Donald Trump fez uma política muito nacionalista, esqueceu um pouco do cenário externo. George W. Bush teve aquelas iniciativas de segurança internacional no Oriente Médio, esqueceu da Ásia e da América Latina. E isso foi abrindo espaço para a China. Agora, na pandemia, o grande fornecedor de insumos e de bens, respiradores, produção de produtos químicos avançados, foi a China. Até mesmo o insumo utilizado no processo de produção de vacinas é chinês. A gente tem uma tomada de espaço em termos globais que é muito significativa. O que mostra que a China está criando capacidade para chegar a um determinado momento de competir e falar assim: “Agora, esse posto é meu”. O idioma é um elemento que complica. Mas, em termos culturais, a China tem um grau de evolução moral e ética muito grande. Esse processo de adaptação não é rápido, é um ciclo longo, de 50 anos ou mais.
Se somarmos todos os elementos (da expansão chinesa na América Latina) e falarmos para um formulador de política americana que ele não precisa se preocupar, estaremos mentindo.
O crescimento da classe média e formação de uma elite poderiam levar a um questionamento interno do regime chinês e a implosão do modelo autoritário de governo?
Pelo que gente viu em outros casos de processo de transição hegemônica é que o crescimento dessa classe média e de uma parcela que se torna uma classe alta gera desigualdades, problemas de distribuição, que normalmente se tornam empecilho para a base governante. Isso pode ser um elemento de questionamento dessa dominância do Partido Comunista. O problema é sério e já é discutido no partido para que se possa minorar esses eventos de desigualdade. A gente chega na China e consegue ver essa população de renda alta replicando modos de comportamento de países como EUA, Reino Unido, França. Essa desigualdade está começando a crescer. Mas, com essa disseminação de acesso, os grandes grupos empresariais, como o do Wang Jialin e o do Jack Ma (fundador do Alibaba) têm sido perseguidos pelo governo chinês por conta do tamanho da intervenção que conseguem criar dentro da atividade econômica da China. Para um partido que pensa no planejamento de um país daquele tamanho, esses grupos são de fato um risco.
O projeto de infraestrutura e logística chinês, chamado One Belt One Road (também conhecido como “Nova Rota da Seda”) se estende para todos os continentes. Preocupa os EUA a presença chinesa na América Latina, historicamente sua esfera de influência?
Se não preocupa, deveria. Mas também não é uma preocupação que deve ser pensada no curto prazo. O One Belt One Road é de uma extensão que assusta. Já vimos alguns grandes impérios, mas nem esses tiveram mecanismos de planejamento como esse. Nunca vi nada tão bem pensado no nível de planejamento. O One Belt One Road começa inicialmente como proposta de integração asiática, de infraestrutura, redes de logística marítimas, territoriais, de fios, gasodutos. E aí é curioso porque a gente fala integração, só que esta é impulsionada por um único promotor. E da Ásia chega à Europa. Mas aí eu falo projeto porque há muita dificuldade de bater os dados do que de fato está sendo implementado. De todo modo, há passagens de cabeamento de fibra ótica e rotas marítimas que estão sendo constituídas, incluindo a ferrovia que liga Xangai e Beijing a Roterdã. Chegando na América Latina, o que temos observado é que há áreas prioritárias. Uma delas, que eu acho problemática e que os governos latino-americanos me parecem não estão muito preparados para lidar, são atividades de base extrativista. Extrair o máximo de recursos naturais, insumos caríssimos importantes para a base alimentar da China, incluindo a soja. Um dos níveis mais importantes é o uso de recursos naturais na fase extrativista. Nesse sentido, a gente acaba resvalando para alguns setores como a logística.
As bravatas são muito prejudiciais à relação, que, até então, era amigável. O governo Bolsonaro criou um mal-estar com a China, e isso tem custado ao Brasil.
Há também participação chinesa no setor de energia.
Sim, seja no modelo tradicional, espaços de captação de energia, principalmente hidro, ou em energias alternativas, com perfil mais limpo, porque a China é questionada por conta de sua base energética ser majoritariamente carvão. Mas o país já está em fase de transformação para utilizar energia limpa. Na África e na América Latina, existe capacidade imensa de captação dessas bases energéticas: energia solar, eólica e via biomassa. Outros elementos relevantes: a China tem se apresentado para a América Latina como grande comprador de espaços físicos – terra, logística, mineração, produção energética e extração de recursos naturais. O ponto preocupante para os EUA é que uma pesquisa recente mapeou as construções portuárias da China na América Central. E todos os espaços onde ela está construindo infraestrutura portuária coincidem com bases americanas. A China não escolheu por acaso os lugares. Alguém pode falar: “Pô, é muito teoria da conspiração. Ninguém está falando que aquilo vai ser utilizado para fins militares”. Só que há uma quantidade imensa de exemplos históricos que mostram que, havendo necessidade, estruturas civis são usadas como estruturas militares. Outro elemento: a América Latina hoje depende da China em termos de investimento e fluxo comercial. Em outros termos, os EUA perderam espaço significativo de obtenção de recursos por via comercial. Se somarmos todos esses elementos e falarmos para um formulador de política americana que ele não precisa se preocupar, estaremos mentindo.
Com relação à tecnologia 5G, o Brasil ficou no meio de um cabo de guerra entre EUA e China. Como a Huawei se enquadra na estratégia chinesa de expansão?
A Huawei nada mais é do que uma das grandes empresas, representante de uma bem-sucedida revolução tecnológica feita pela China. Há outros campos, não exclusivamente de tecnologia, mas na questão de semicondutores, de cabeamento, enfim essa guerra está encaminhada. No quesito tecnologia, os EUA já perderam. O que estão fazendo agora é correr atrás do prejuízo, começando um processo de criação de tecnologia interna (de 5G), que é difícil de ser feito agora, porque já existe uma certa dominação de empresas de países nórdicos e da China. Os EUA não têm condições de competir. No caso do Brasil, é uma lástima, porque perdemos uma oportunidade imensa de ter uma base tecnológica muito mais avançada do que aquela de que dispomos hoje por conta de um alinhamento ideológico obtuso.
O Brasil já perdeu os chineses?
Perdemos a oportunidade no momento em que a China estava querendo entrar nos mercados. O que vai acontecer agora é que o Brasil vai liberar (a participação da Huwaei no leilão da tecnologia 5G), mas não é mais aquele cenário em que os chineses diriam: “Vamos ter condições favoráveis para poder entrar no Brasil”. O prazo para o Brasil se beneficiar com a oportunidade da entrada chinesa, esse timing, foi perdido pelo governo brasileiro. Depois de muita disputa, da questão do insumo para a vacina e da forma como a Coronavac está conseguindo produzir de forma eficiente e em escala maior no Brasil, isso acabou abrindo os olhos não da Presidência, mas do staff que aconselha a base presidencial, que tem orientado esses tomadores de decisão a não continuarem com a atuação xenofóbica que estava minando os interesses chineses no Brasil. Houve um momento específico em que a China estava concedendo facilidades aos países. A gente perdeu esse momento. Vamos ter 5G, a Huwaei vai entrar nos leiloes, mas já não com o interesse cooperativo que tem utilizado nas relações com países emergentes.
A retórica presidencial toca a sensibilidade chinesa?
Imagino que sim. Isso não vai transparecer de forma tão imediata. Se a gente acompanhar a forma como o embaixador chinês no Brasil repercutiu essas situações, consegue reconhecer um pouco. Não é mágoa. Mas trata-se de aumentar uma desconfiança que antes não existia. É criar um problema onde até então não existia. E essa desconfiança mina a forma como os chineses olham para o Brasil. De forma muito racional, aquilo que gera ganho para os chineses, eles não vão mudar o comportamento. Mas a gente já pode reparar: a China está começando a buscar novos fornecedores de soja, inclusive optaram por ter novos fornecimentos americanos, uma vez que estão preocupados com a possibilidade de ter de reduzir suas compras de soja com brasileiros. Algum tempo atrás, para que a China negociasse, liberasse as vacinas e o insumo, foi noticiado que o governo chinês estava pedindo a cabeça do chanceler Ernesto Araújo. Duvido que isso tenha acontecido. A política da China é a da não intervenção. Não porque é nobre, porque é do interesse estratégico deles.
Para que o Ocidente não intervenha em assuntos internos chineses, como o Tibete e Taiwan?
Eles não querem ninguém dando pitaco em problemas domésticos deles. Minha leitura é que deram para o embaixador chinês no Brasil a incumbência de responder em nome da China. E ele o fez.
Acho que houve descuido por conta do atraso (da China, ao avisar o restante do mundo sobre o surgimento do novo coronavírus). Deveria ter sido informado com brevidade maior. Mas essa é ainda uma percepção parcial.
Essa é uma mudança significativa, porque os chineses sempre foram low profile em termos de diplomacia, não?
Isso representa um pouco da tomada de decisão a partir do início do governo Xi Jinping. Porque, se a gente observar bem, o Hu Jintao participava muito da seara ocidental, inclusive com uma política externa de mais inserção, mas ele era muito cuidadoso, low profile. Xi Jinping é mais assertivo, embora seja discreto, não bravateie, não perca a compostura. Em um eventual encontro do Xi Jinping com Bolsonaro, ele nunca se negaria a apertar a mão do brasileiro.
Os chineses não trabalham para produzir imagem ou falas de repercussão internacional?
Não, isso não faz parte da cultura politica chinesa, mas, em determinado momento, eles vão pensar: “Preciso ter uma estrutura fiel de fornecimento de soja, o Brasil é confiável? Não, não é confiável. Então, vamos começar com novas bases de fornecimento”. Ou: “Controlamos energia em tal região do Brasil. É confiável? Não, o ministério não é bem conduzido, o governo é instável, questionado doméstica e internacionalmente, nos tratam de maneira descortês, rude, então a gente tem de repensar essa estrutura”. O Brasil poderia ter recebido volume significativo de investimento em sua melhoria portuária, e esses investimentos foram reduzidos. Os projetos de ferrovias estão estagnados, e espanta porque somos dependentes comerciais da China. As bravatas são muito prejudiciais à relação, que, até então, era muito amigável, principalmente durante o governo Lula. O governo Bolsonaro conseguiu criar um mal-estar com a China, e isso tem custado ao Brasil.
A falta de transparência com a qual a China lidou com o surgimento da covid-19 era esperada?
Ainda estou esperando a divulgação de um documento oficial mais confiável para poder entender. Não só da China, mas da própria Organização Mundial da Saúde (OMS). Li um documento segundo o qual não há garantia do lugar de origem do coronavírus. Até então, a gente supunha que fosse o mercado público de Wuhan. Houve alguma discussão de teoria da conspiração, que não consigo atestar veracidade, de que era pesquisa laboratorial que saiu do controle. Pode acontecer, mas a gente não tem comprovação. Normalmente, em casos de algo que foge ao controle e que não existe nenhum meio de combate imediato, é disparado um alerta global, a própria OMS é avisada e dispara o seu alerta para os países se precaverem. O informativo da existência do vírus foi de novembro. A China já registrava casos em outubro. Minha análise inicial era de que, como avisaram entre novembro e dezembro, haveria tempo hábil para reconhecer o problema e informar. Hoje, acho que houve descuido por conta do atraso. Deveria ter sido informado com brevidade maior. É muito distante e muito parcial frente às informações que a gente tem hoje. Sai um resultado mais de um ano depois que dá conta de que não é possível dizer se realmente aconteceu no mercado público de Wuhan? A primeira ação chinesa foi o fechamento de Wuhan e região, e nem eles mesmos sabem, ou sabem e não informaram, se o problema nasceu mesmo em Wuhan? A China demorou para avisar, sim, mas essa é ainda uma percepção parcial e, ouso dizer, frágil, porque a gente não tem o conjunto de informações totais necessárias para avaliar.