Um documento publicado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, no dia 26 de março, abriu as portas para permitir a participação da China na versão brasileira da maior licitação de telecomunicações do mundo: a implantação da internet 5G, tecnologia que transmite dados em velocidade 20 vezes maior que a atual 4G. Era tudo o que a empresa dominante no planeta nesse tipo de tecnologia, a chinesa Huawei, desejava. Era tudo que fabricantes ocidentais, governo dos EUA à frente, queriam impedir. Em disputa, está o direito de participar de um leilão de concorrência avaliada em R$ 20 bilhões – um mercado que deve ser superado em tamanho apenas pelo da Índia.
A pandemia de coronavírus poderia melar a licitação, mas o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Leonardo Euler, assegura que a disputa vai ocorrer no segundo semestre deste ano, nem que seja em dezembro. E justifica a pressa:
– Há estudos que mostram que um aumento de 10% na penetração de banda larga gera um crescimento econômico de 1%.
As fabricantes de 5G também querem isso. Só havia dúvidas quanto a quais indústrias poderiam participar. O documento elaborado em março (clique aqui para ler na íntegra) acaba com o mistério, dando fim à pressão norte-americana pelo veto formal do governo brasileiro aos chineses.
O GSI chefia, entre outras, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o serviço de contraespionagem brasileiro. Tem como missão zelar pela soberania nacional. A instrução normativa do gabinete de segurança institucional a respeito da telefonia 5G, publicada no Diário Oficial da União naquele 26 de março, é típica desse meio: mais importante pelos silêncios do que pela escrita. O documento obriga a empresa interessada a adotar dispositivos de segurança, como capacidade de filtrar mensagens, prover proteção de segurança na camada de aplicação para mensagens do tipo roaming, detecção e mitigação de “tempestades” de pacotes maliciosos, de forma a prevenir e minimizar os efeitos de ataques cibernéticos e prever o monitoramento de metadados de tráfego de rede, para identificação de padrões anormais. Tudo de estranho deve ser relatado ao GSI, sob pena de sanções à empresa.
Na prática, é um recado aos chineses, que vêm sendo acusados pelos EUA de usar o 5G para espionagem. Só que o documento também abre possibilidade de concorrência a todos que se comprometerem com as regras. E isso permite que as empresas chinesas (das quais a Huawei é a mais conhecida) entrem na disputa.
Outro documento obtido por GaúchaZH, a Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (clique aqui para ler, também na íntegra), é mais extenso e igualmente estabelece mecanismos antiespionagem, sem impor vetos.
A decisão do GSI foi comemorada à moda chinesa – com discrição – numa moderna torre empresarial situada na quadra 09, Lote C da Asa Sul, em Brasília. É ali que fica a mais estratégica das representações da Huawei no Brasil. Só no Distrito Federal a multinacional chinesa tem 130 funcionários. Grande parte deles circula pelos gabinetes oficiais, em ofensiva para garantir a participação da empresa na licitação brasileira.
A celebração chinesa é compreensível, já que o GSI era visto como possível obstáculo a seus negócios. O gabinete de contraespionagem é comandado pelo general Augusto Heleno, padrinho da candidatura de Bolsonaro à Presidência. E a família Bolsonaro é defensora intransigente de priorizar acordos com os EUA.
Mas o presidente não governa sozinho. Entre seus apoiadores mais racionais pegou mal a crise diplomática detonada pelo filho de Bolsonaro, Eduardo, que mostra-se adepto de teorias da conspiração em relação aos chineses. Nesse caso, insinuou que o coronavírus é uma arma fabricada contra o Ocidente. Ganhou nisso apoio dos ministros Abraham Weintraub, da Educação, e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, também críticos a cooperações com o país asiático.
Bolsonaro foi convencido pela ala militar do ministério a telefonar para seu colega chinês, Xi Jinping, na tentativa de minimizar as tensões. Três dias depois, o GSI publicou a normativa citada, que abre pela primeira vez possibilidade de participação chinesa na licitação.
O dinheiro e as bravatas
Bolsonaro e os filhos têm se mostrado aliados incondicionais do governo de Donald Trump. Entre os ditames que endossam suas posições, especificamente na questão do 5G, está o de que os chineses podem mexer com a segurança nacional dos países ocidentais – acusação feita pelos EUA ante a dificuldade de criticar a capacidade tecnológica do 5G chinês. Fala-se em uma nova “cortina de ferro”, desta vez digital, a partir da acusação de Trump: o mundo pode se dividir entre os países que vão abrir-se ao 5G chinês e os que usarão a tecnologia desenvolvida pelas empresas ocidentais. Quem fizer negócio com a China, ao que tudo indica, sofrerá represália dos EUA.
Em entrevista a GaúchaZH, o novo embaixador norte-americano no Brasil, Todd Chapman, reforça essa impressão ao dizer que governos e cidadãos do mundo devem se cuidar em relação à dependência de produtos chineses. E usa como exemplo o que chama de barganha feita pela China quanto à entrega de medicamentos, máscaras e respiradores às demais nações no combate ao coronavírus:
– Acho que muita gente vai reexaminar essa dependência em relação a países que, na hora H, não estavam lá apoiando.
Ao falar especificamente sobre o 5G, Chapman faz referência à competição entre empresas:
– Nós respeitamos as liberdades de expressão e de religião e jogamos com economia aberta e setor privado. Muitos países autoritários, comunistas, de ditaduras, não praticam esses mesmos princípios.
Mesmo com esse tipo de advertência, poucas nações globais aderiram às sanções propostas pelos norte-americanos, talvez por desconfiança quanto à verdadeira motivação dos EUA, explica o professor de Relações Internacionais Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas:
– O alerta dos EUA é verdadeiro. O 5G pode facilitar acesso aos dados por parte da empresa que o constrói, mas não é só a China que pode espionar. Basta lembrar que o NSI (agência de espionagem norte-americana) monitorou o telefone da então presidente brasileira Dilma Rousseff. Talvez por isso a maioria dos governos ocidentais não seguiu a recomendação americana de boicotar a China.
Até agora somente quatro países atenderam ao boicote proposto por Trump: Austrália, Nova Zelândia, Japão e Vietnã. Rússia, Índia, Tailândia e Malásia já aceitaram a possível participação da empresa chinesa em suas redes, assim como a maior parte dos países europeus (veja no quadro abaixo).
Na tentativa de azeitar relações com o Exército brasileiro e manter ligações históricas, os EUA assinaram um tratado militar inédito, que permitirá parcerias entre empresas para o desenvolvimento de soluções de defesa no Brasil. Há dúvidas sobre a continuidade desse acordo, se a Huawei estiver por trás das redes brasileiras de 5G.
Até pouco tempo atrás, os militares brasileiros viam com temor a possibilidade de ruptura de tratados com os EUA. Acabar com parcerias comerciais com os chineses, porém, parece ainda mais aterrador para o governo e alguns de seus sustentáculos, como o agronegócio. Afinal, o território chinês é destino de 32% das commodities agrícolas brasileiras (mais de quatro vezes acima do exportado aos EUA).
A China é também o principal comprador de minério de ferro e petróleo brasileiros e um dos maiores investidores em energia e logística no Brasil. Em momento de recessão mundial, é arriscado boicotar o maior parceiro comercial. Dados do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC) apontam que os investimentos asiáticos no Brasil somam US$ 57 bilhões. Agora, de uma só vez, Xi Jinping cogita que empresas chinesas invistam 75% a mais, sobretudo em agronegócio e energia.
É por isso que Bolsonaro, após as críticas feitas por seu filho Eduardo, telefonou para o presidente chinês. A iniciativa de reaproximação foi tomada por Yang Wanming, embaixador chinês em Brasília. Com formação em finanças, ele comandou as embaixadas na Argentina e no Chile. Impressiona por se expressar muito bem em português. Foi no nosse idioma, aliás, que tuitou respostas a Eduardo Bolsonaro, chamando-o de irresponsável. As rugas, de qualquer forma, parecem ter ficado para trás – após o sinal branco dado à Huawei para participar da licitação da internet no Brasil.
O contra-ataque dos chineses
Um diplomata reativo é apenas uma das pontas da ofensiva chinesa pró-5G. A China, embalada em milhares de anos de relações comerciais, sabe bater e afagar. Levou parlamentares brasileiros a Pequim. Inclusive os da base bolsonarista, parte dos quais moderou a retórica antichinesa após a viagem ao Oriente.
O próprio Bolsonaro tem sido compelido a negociar com os chineses. Apesar de abertamente pró-EUA, desde a posse o presidente brasileiro se encontrou tantas vezes com o presidente da China, Xi Jinping, quanto com Donald Trump (três vezes com cada um deles).
Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio Brasil-China, diz que os ânimos mudaram após a ida de Bolsonaro à China:
– Bolsonaro voltou positivamente impressionado, como todos os que vão lá. Concluiu que se trata de um país capitalista, embora a China não goste dessa definição, prefira os termos “economia mista” e “economia de mercado socialista”. E ministros brasileiros sabem que atacar a China é contraproducente.
Há quatro anos, na pior fase da crise econômica brasileira, a China investiu mais de US$ 20 bilhões aqui, lembra Tang, e emprestou mais US$ 15 bilhões para a Petrobras, quando a gigante nacional do petróleo estava no fundo do poço. Num recente período de bonança, os brasileiros venderam quase 90% da sua safra de soja à China, em razão da briga comercial desse país com os EUA. Agora, com o avanço do coronavírus, como a China domina 90% da fabricação do material hospitalar usado por agentes de saúde e pela população em geral para combater esse inimigo mortal da humanidade, Tang diz que o Brasil precisa estreitar relações.
– Agora é hora de implantar o 5G. Aliás, a tecnologia atual no Brasil, 4G, já está toda na mão da Huawei. Qual é a diferença?
Trump segue pedindo boicote, e o presidente brasileiro mostra-se alinhado ao norte-americano, mas o meio militar, que compõe a maioria dos ministros de Bolsonaro, além de ocupar cargos estratégicos em diversas pastas, tem sido mais pragmático quando o assunto é a relação com a China.
– Vamos buscar o que é melhor para o Brasil. Se os chineses tiverem a melhor e mais barata tecnologia, não haverá sanção dos EUA que os impeça de vencerem a licitação brasileira – diz um influente general da reserva, procurado por emissários da Huawei para análises sobre o cenário brasileiro.
Ele pondera a GZH que excluir a China poderia ferir até mesmo a Constituição Federal, que assegura o princípio da livre concorrência.
– E o histórico recente de espionagem ocorreu por parte dos americanos, tanto a partir do governo quanto de empresas, como o Facebook. Não foi pelos chineses, ao menos que a gente saiba – alfineta o militar, que preferiu não se identificar.
Vamos buscar o que é melhor para o Brasil. Se os chineses tiverem a melhor e mais barata tecnologia, não haverá sanção dos EUA que os impeça de vencerem a licitação brasileira. E o histórico recente de espionagem ocorreu por parte dos americanos, tanto a partir do governo quanto de empresas, como o Facebook. Não foi pelos chineses, ao menos que a gente saiba.
GENERAL DA RESERVA
que preferiu não se identificar
Jeferson Nobre, professor do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que trabalhou em operadoras de celular, confirma que o problema de coleta de dados por parte do fabricante, apesar do viés ideológico forte em relação à Huawei, existe quanto a qualquer tecnologia comprada, seja ela oriental ou das fabricantes do Ocidente.
– Se não tens acesso ao código do software, sempre há a possibilidade de espionagem, via coleta de dados. Isso já existiu em outros sistemas de telecomunicações, muito antes do 5G – observa Nobre.
General da ativa, Guido Amin Naves, comandante de Defesa Cibernética do Ministério da Defesa, faz raciocínio semelhante, considerando que o risco de espionagem via 5G não surgiu com a China. Em fevereiro, durante encontro promovido pelo Instituto Legislativo Brasileiro para debater o novo sistema de telefonia móvel, o militar ressaltou que os chineses são um dos maiores parceiros, se não o maior, do Brasil.
– É um país amigo, como são os EUA e alguns outros. Qualquer empresa operando o 5G tem condições de executar uma ação adversa (espionagem), não tem por que focar o temor exclusivamente na China. Aí voltamos a questões culturais. Já ouvi gente dizendo que, se é para ser espionado, prefere que seja por alguém que professe a mesma opção judaico-cristã que eu. Por quê? Porque esse Estado ficaria constrangido. É um ponto de vista. Mas não é o meu, em hipótese alguma – declara Amin Naves, lembrando que a captura de dados pode vir inclusive de países aliados, embora, apesar do pedido da reportagem, não tenha nominado a quais especificamente se referia.
Uma possível solução
E qual a posição do Ministério da Ciência e Tecnologia, por quem deve passar a licitação? A pasta é comandada por outro militar, o astronauta e tenente-coronel da Aeronáutica Marcos Pontes. Em documento de 32 páginas elaborado no ano passado, intitulado Estratégia Brasileira de Redes de Quinta Geração (5G), ao qual GZH também teve acesso (clique aqui para ler na íntegra), o ministério não toma partido. Analisa o cenário nos principais países do mundo, admite que a China quer dominar a implantação do 5G no planeta e não coloca objeções específicas a isso.
Tudo indica que se encaminha, aqui, solução similar à do Reino Unido: aceita os chineses, com proibição de atuarem nos 35% do espectro de ondas reservados às estruturas militar e estratégica.
LEONARDO TREVISAN
Economista, professor de Relações Internacionais da ESPM São Paulo
E a razão soa pragmática: a Huawei é considerada, tanto por amigos como por adversários comerciais, a empresa que mais avançou no 5G, seja em tecnologia, seja em preço. A companhia fornece cerca de metade dos equipamentos do 4G brasileiro, a geração atual de telefonia móvel e de troca de dados. As quatro maiores operadoras brasileiras (Claro, Vivo, Oi e Tim) já fizeram testes da nova rede com a gigante chinesa e suas concorrentes.
Outro militar influente que mantém laços com a China é o vice-presidente Hamilton Mourão. Ele foi recebido por Xi Jinping em Pequim antes mesmo de Bolsonaro e mantém constantes diálogos com a Câmara Brasil-China.
Essas relações do país asiático com o militares, no momento em que o Brasil registra a maior presença de generais-ministros em sua história moderna, deve pesar. Oliver Stuenkel considera pouco provável que o Brasil bloqueie a tecnologia chinesa, entre outras razões, pelo problema diplomático que isso traria:
– Bolsonaro, creio, tem desejo genuíno de alinhamento ideológico com os EUA. Talvez isso seja um erro de cálculo, porque o governo Trump é protecionista. Dificilmente vai abrir mercado norte-americano para os brasileiros. Eles competem por acesso ao mercado chinês.
Já Leonardo Trevisan, economista e professor de Relações Internacionais da ESPM São Paulo, compreende por que o GSI sinalizou que os chineses podem participar do leilão:
– Eles já estão no 3G e no 4G, o que diminuiria custos na implantação do 5G. Tudo indica que se encaminha, aqui, solução similar à do Reino Unido: aceita os chineses, com proibição de atuarem nos 35% do espectro de ondas reservados às estruturas militar e estratégica.