A Biblioteca Pública do Estado do RS tem confirmado nas últimas semanas sua vocação para ser habitada por fantasmas. Com o Estado sob bandeira preta de distanciamento controlado, o prédio não tem recebido visitantes, e as equipes de trabalho estão reduzidas.
Nesta quarta-feira (14), no entanto, dia em que completa 150 anos, um encontro virtual reunirá personalidades da área literária como Jane Tutikian, Alcy Cheuiche, Luiz Coronel e Miguel Frederico do Espírito Santo, e também os membros da Academia Brasileira de Letras Antônio Secchin e Geraldo Carneiro.
A reunião também contará com a presença do governador do Estado, Eduardo Leite; da secretária da Cultura, Beatriz Araujo; e da diretora da Biblioteca, Morganah Marcon. A abertura do evento será às 15h, com recital apresentado pela Bach Society Brasil, com o maestro Fernando Cordella ao cravo. Será possível acompanhar pelo canal youtube.com/governodors.
— Estávamos articulando as comemorações antes da pandemia. No entanto, precisamos nos adaptar para o novo momento. Esperamos que ao longo do ano as coisas melhorem, e a gente possa realizar ações presenciais — projeta Morganah Marcon.
Ainda em abril, a administração também deve promover uma visita virtual guiada pelo prédio da Rua Riachuelo, em Porto Alegre.
— Apesar de muitas pessoas conhecerem a fachada do prédio, muitas nunca o visitaram — explica Morganah.
É uma oportunidade e tanto de trafegar pelo prédio, mesmo a distância, já que a visitação presencial só voltará a ocorrer quando Porto Alegre alcançar a bandeira amarela no distanciamento controlado. No entanto, quando a Capital chegar à bandeira vermelha, já será possível frequentar o prédio via agendamento.
Sob bandeira preta, as visitas ficam apenas por conta dos fantasmas, já conhecidos frequentadores do espaço. A fama das assombrações já motivou até o evento Tu Frankenstein 2, promovido pela Feira do Livro de Porto Alegre de 2013, em que escritores passaram ali uma madrugada inteira escrevendo contos de horror e fantasia.
Morganah Marcon aponta que não há nada de ficção no caráter mal-assombrado da construção. A diretora jura que já viu o vulto de uma mulher em uma noite, pouco antes de fechar os portões do prédio. Além disso, ao pulsar o botão do antigo elevador para subir um andar, o mecanismo a levou para um andar abaixo, onde ouviu cochichos em uma sala despovoada.
Morganah afirma que gostaria de ver outra vez a mulher do vulto e, quem sabe, reconhecer sua identidade. Já com o elevador não carrega a mesma curiosidade. Desde então, só usa as escadas.
— Tenho amigos sensitivos que veem espíritos aqui. Ainda bem que não os vejo. Só vi uma vez e me assustei bastante — diz Morganah.
Projeto de restauração
Seja para acomodar melhor os livros, visitantes ou assombrações, a Biblioteca Pública vem enfrentando desafios para manter sua estrutura. Em 2015, foi entregue uma reforma com R$ 2,55 milhões do BNDES, obtidos por meio da Lei Rouanet, além de uma complementação no valor de R$ 65 mil do Sinduscon-RS. O trabalho de recuperação havia começado em 2007, com verba de R$ 465 mil do Programa Monumenta, que serviu apenas para resolver problemas emergenciais.
Um projeto de restauro de R$ 8,97 milhões também foi aprovado pela Lei Rouanet em 2012, mas a captação não teve sucesso.
— Estamos trabalhando agora em reparos pontuais. Precisamos reforçar a parte elétrica para instalar climatização e elevador de cadeirantes. Também precisamos realizar a limpeza e a pintura da fachada, que foi pichada na pandemia. Além disso, também queremos viabilizar o reparo das pinturas do hall de entrada e do Salão Mourisco. Estamos orçando tudo para buscar recursos em diferentes frentes — conta Morganah.
Além de reformar o espaço, há também o objetivo de expandir a biblioteca para um anexo. Em 2013, surgiu a oportunidade da ocupar a antiga Casa da Cidadania, na esquina da Andrade Neves com a General Câmara, com recursos do governo federal. Porém, segundo Morganah, o Estado não conseguiu pagar a contrapartida necessária para concretizar o projeto. A diretora afirma que, há poucas semanas, voltou às tratativas para ocupar novamente o espaço:
— Nosso atual prédio não tem mais capacidade para suportar a demanda crescente de livros e serviços — diz a diretora.
150 anos de história
Um século e meio após sua inauguração, a Biblioteca Pública do Estado mudou completamente seu perfil. Ao longo de 150 anos, o prédio da Rua Riachuelo abandonou a vocação de ponto de encontro da intelectualidade local para se tornar espaço de apoio didático e de acesso a periódicos e internet. Morganah aponta que o uso das salas de leitura era, em seus primeiros anos, um privilégio das elites:
— Havia salas de leitura separadas para homens e mulheres.
A das senhoras ficava no térreo, pela entrada da Riachuelo. Já a dos homens ficava ao lado do jardim, provavelmente porque os senhores saíam para fumar. O próprio Borges de Medeiros fazia suas leituras diárias de jornais no prédio.
Ao longo dos anos, a biblioteca consolidou seu papel como apoio para estudantes e pesquisadores.
— No início, era um espaço de elite até porque só as elites tinham acesso à educação. Com o passar dos anos, o ambiente escolar se aproximou da biblioteca, e até os anos 1960 se tornou um eixo fundamental da instituição — explica a diretora.
Com a chegada dos anos 1980, o papel das bibliotecas públicas do país voltou a ser problematizado.
— As escolas passaram a ter suas próprias bibliotecas, com um público dirigido a professores, alunos e funcionários. Nesse momento, as bibliotecas públicas começaram a receber perfis mais diversos, de quem queria ter acesso aos livros de forma gratuita e democrática. Além disso, tornaram-se centros de convivência, com programação cultural — conta Morganah.
A diretora aponta que o público escolar ainda é muito presente, mas não majoritário:
— Nossos espaços se renovam e se adaptam com o tempo. Antes da pandemia, tínhamos um público muito grande de leitores que queriam ter acesso aos jornais do dia. Em sua maioria, são moradores do Centro e entornos. Também temos muitos leitores com deficiência visual, para acessar livros em braile, e de jovens, para acessar a internet.
Uma característica curiosa da edificação é que todos os seus murais das salas de leitura foram apagados. Isso aconteceu porque, em décadas passadas, muitos frequentadores avaliavam que a presença de recursos visuais podia tirar a concentração da leitura. Foram poupadas apenas as salas com perfil administrativo, como o Salão Mourisco e o Salão Egípcio.
— São dois salões que vale a pena conhecer. O Salão Egípcio, além de remeter ao Egito, tem também referências de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. A gente conta esses detalhes para os visitantes, que ficam encantados. Tudo aqui tem um significado — assegura Morganah.
Mais uma relíquia arquitetônica é o elevador. Instalado em 1916, talvez seja o mais antigo ascensor do Estado. O interior é ricamente decorado com madeira entalhada, e todo o maquinário passou por reformas e está em perfeito funcionamento.
— Além de todos os detalhes do prédio, temos relíquias inestimáveis em nosso acervo, como itens de 1519. Nossa biblioteca precisa ser cuidada e estar acessível a todos — afirma a diretora.