A Guerra do Paraguai – ou Guerra Grande, como a chamam no país que lhe deu o nome – é a mais sangrenta já ocorrida nas Américas. Gestou mais de 300 mil mortos, inclusive mulheres e crianças. De um lado, soldados pobres, em grande parte negros escravizados, que combatiam sob promessa de libertação. De outro, índios guaranis, base da população paraguaia.
Assim como todas as outras, essa guerra nunca foi uma unanimidade entre pesquisadores. As primeiras narrativas, ainda do século 19, foram de envolvidos na matança e, portanto, suscetíveis a engrandecer os feitos da causa que abraçaram. Ex-combatentes douravam os feitos de seus compatriotas e minimizavam os do adversário.
Nos anos 1970, houve um revisionismo. Historiadores brasileiros se dedicaram a abalar a triunfante história oficial, contada pelo regime militar brasileiro. Pintaram o Paraguai como nação pequena vitimada pela ambição dos vizinhos gigantes. Era uma meia verdade. A guerra, é bom lembrar, começou com atos desencadeados por Exército e Marinha paraguaios. É por isso que é oportuna uma nova obra, como Guerra do Paraguai – Vidas, Personagens e Destinos no Maior Conflito da América do Sul. Parceria do escritor e tradutor José Francisco Botelho com a historiadora Laura Ferrazza de Lima, o livro, ricamente ilustrado, serve de base para um dos capítulos da série de documentários Guerras do Brasil.doc, disponível na Netflix.
O livro apresenta o conflito como thriller de suspense, só que com personagens reais. Mais do que bem escrito, é também equilibrado: pinça documentos e abordagens de testemunhas e pensadores de diversas correntes: conservadores, liberais e esquerdistas. Um dos pontos salientados é o de que, ao contrário do senso comum, o Brasil nunca foi um país pacífico. É mito que somos todos irmãos e amáveis, descrevem os autores.
Botelho e Laura escapam do maniqueísmo comum ao gênero. Ressaltam que Solano López, o presidente do Paraguai à época, determinou o aprisionamento de um navio mercante brasileiro e a invasão do Mato Grosso, que foi seguida de estupros e aprisionamentos. Isso antes que algum brasileiro desse o primeiro tiro. Ainda invadiu o Rio Grande do Sul, numa tentativa de blitzkrieg (guerra-relâmpago), na qual buscava uma saída para o mar via Rio da Prata. Poderia ter dado certo, e os gaúchos estariam hoje falando guarani. Deu errado, frente à barreira montada pelo Brasil.
Claro que os brasileiros não foram santos. Do meio para o final da guerra, foram comuns as execuções de prisioneiros paraguaios, inclusive com degolas. O livro aborda esses crimes em detalhes. Mostra suas consequências, como a ascensão da classe militar nos bastidores políticos do Brasil, com intervenções no governo, inclusive a derrubada da monarquia.
É uma obra de fôlego, que narra a história da guerra desde antes de ela começar. Os autores demonstram que o isolamento paraguaio remonta ao ditador José Gaspar de Francia, que no início do século 19, buscando garantir a independência paraguaia em relação às pretensões argentinas, blindou seu país e quase eliminou o comércio externo. Facilitava o fato de a língua oficial, o guarani, ser indígena. Era quase tão inatingível aos vizinhos como a China.
Com a morte de Francia, chegaram ao poder o advogado Carlos López e seus descendentes. Ele tentou abrir o país ao mundo, contratando ingleses e alemães para industrializar o Paraguai. Foram construídos estaleiros, fundições, ferrovias e telégrafo. Conforme os autores do livro, ele detestava argentinos – a quem chamava de anarquistas – e brasileiros (chamados de macacos), mas recomendou aos filhos usar a caneta e não a espada para lidar com os países vizinhos. Conselho que não seria seguido pelo primogênito, Francisco Solano, que almejava uma saída paraguaia para o mar (algo de que até hoje aquele país se ressente). A ambição de conseguir uma aliança com o Uruguai ruiu e ele tentou isso pelas armas, invadindo o Rio Grande do Sul, na ideia de chegar a Montevidéu. O resto é história e bem conhecida.
A vitória brasileira aconteceu apesar de a carreira militar ser insalubre para a soldadesca. Eles só ganhavam uma refeição por dia, o soldo estava congelado há 40 anos, os recrutas eram vistos como a escória da nação (recrutados muitas vezes à força) e viam o serviço militar como castigo.
A obra descreve como em São Borja e Uruguaiana os gaúchos foram surpreendidos numa invasão em que 5 mil paraguaios se sobrepunham a cerca de mil soldados brasileiros. Os riograndenses estavam mal equipados, mal armados, mal vestidos, mas reagiram com bravura à invasão paraguaia, repelida após dias de intensa luta. No Rio Grande e perto dali, na Argentina, na famosa batalha naval de Riachuelo, na qual brasileiros destroçaram navios paraguaios e impediram o avanço rumo ao mar.
O livro reforça como o Império Brasileiro deu a volta por cima, via batalhões de Voluntários da Pátria. Como o nome indica, eram pessoas que se ofereciam para guerrear. Em troca, recebiam terrenos para morar e direito a pensão para herdeiros, em caso de mortes. Foi um sucesso. De 18 mil soldados, o Exército brasileiro passou a contar com mais de 100 mil.
A retomada de São Borja e Uruguaiana só se deu com a presença pessoal do imperador Pedro II, que assistiu do alto das coxilhas a rendição de 5 mil paraguaios esfaimados perante os 20 mil brasileiros e argentinos que os cercavam. Não foram executados graças à presença do soberano, pois já era costume na época a degola de prisioneiros.
Mas o mérito desse livro não se limita a recontar a guerra do Paraguai, mas decifrar a personalidade dos nela envolvidos. O leitor fica sabendo pormenores da vida privada dos governantes e governados algo que costuma faltar nos livros da história oficial. Desfilam pelas páginas personagens como o já citado Carlos López, o mais rico vendedor paraguaio de erva-mate, para o qual governar era um negócio de família. Com a tremenda influência do pai, o filho primogênito de Carlos, Francisco Solano López, se tornou general aos 19 anos e ministro da Guerra aos 23!
Os autores abordam episódios pouco conhecidos, como a suposta pretensão de Solano em desposar a princesa Isabel, do Brasil. Com isso formaria uma aliança política e matrimonial capaz de afastar a Argentina, um espantalho permanente sobre o sonho de independência paraguaio. A ideia não prosperou e ele acabou se juntando a Elisa Lynch, a irlandesa, com quem teve cinco filhos. Amazona, ela cavalgava de pernas abertas, algo escandaloso para mulheres da época. Conheceu o futuro marido em Paris e trouxe da França refinamentos logo adotados pela alta sociedade paraguaia. Foi rica, admirada e invejada, sobretudo pelas mulheres.
Os Lopes e Elisa são a espinha dorsal do livro, mas outros personagens menos conhecidos ganham luz. É o caso do padre, farmacêutico, homeopata e erudito francês João Pedro Gay, por exemplo, o primeiro a alertar sobre os preparativos paraguaios de invasão ao Brasil, via Rio Grande do Sul.
Outro gaúcho que sai engrandecido no livro é o general Manuel Luís Osório, que se expunha à balaceira na frente dos seus homens e por isso foi ferido gravemente. Já o Conde D’Eu, francês marido da Princesa Isabel, tem sua biografia bastante arranhada nesta obra. Mas vamos parar com os spoilers. Guerra do Paraguai, em suma, é um trabalho que vale fazer parte de qualquer biblioteca.
Botelho e Laura incluem pormenores da vida privada de governantes, que costumam estar ausentes da história oficial. Episódios pouco conhecidos, como a suposta pretensão de Solano em desposar a princesa Isabel, do Brasil, para formar uma aliança política e matrimonial capaz de afastar a Argentina, também são abordados. Mas vamos parar com os spoilers. Guerra do Paraguai, em suma, é um trabalho que vale fazer parte de qualquer biblioteca.