Há episódios históricos cujas repercussões vão além dos seus efeitos imediatos, por mais intensos que tenham sido na sua época. Dentre esses eventos, para a América do Sul, sobressai aquele que empurrou o Paraguai de vez para a periferia da região e que consolidou o Brasil na condição de potência latino-americana, com exército pujante e coesão territorial forjada pelo confronto: a Guerra do Paraguai - ou Guerra da Tríplice Aliança, em que os paraguaios enfrentaram o poderio de Brasil, Argentina e Uruguai unidos.
Desde então, a sociedade paraguaia passou à indigência regional. Resultaram-lhe alternativas de legitimidade discutível, que acabaram por modelar um estereótipo de desconfianças: apelo à falcatrua do comércio ilegal e do contrabando. Pudera: a guerra, travada entre 1864 e 1870, dizimou algo como 90% da população paraguaia masculina acima de 20 anos.
- O Paraguai seria outro, certamente, se não tivesse vivido essa experiência trágica - diz o jornalista Moacir Assunção, autor de Nem Heróis, Nem Vilões (Record, 2012), sobre o confronto (leia entrevista abaixo).
Passados 150 anos, os motivos para o Paraguai ter se aventurado no conflito são controversos - uns dizem que o presidente Solano López se defendia, temendo invasão do Império brasileiro, que recentemente havia destituído o presidente uruguaio. Outros sustentam que López tinha intenções expansionistas. São escassos os documentos existentes para comprovar definitivamente quem está certo, uma vez que grassava o analfabetismo entre os combatentes e as comunicações eram precárias.
- As causas da guerra estão no contexto regional. O Paraguai era um país isolado, que buscava uma saída pelo porto do Uruguai. O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência paraguaia, em 1844. A Argentina, em 1852 - conta o historiador Francisco Doratioto, professor da Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro Maldita Guerra (Companhia das Letras, 2002), que vê o Paraguai da época como "o país de uma família, a família López".
Os efeitos nefastos da guerra para o Paraguai só se aprofundaram com a passagem do tempo. E, nas sombras da documentação insuficiente, surgem frequentemente aspectos novos a serem analisados. Exemplo: como decorrência dessa absurda eliminação de homens adultos, 300 mulheres paraguaias se casaram com militares gaúchos. O estudo Sob o Olhar da Imprensa e dos Viajantes - Mulheres Paraguaias na Guerra do Paraguai, dissertação de mestrado do historiador Fernando Lóris Ortolan na Unisinos, é recheado de casos pitorescos ocorridos em 1870, último ano da guerra. Um deles é o pedido formal de casamento elaborado pelo capitão Honório José Teixeira, do Rio de Janeiro, e pela paraguaia María Felipe Iralgo. "Achando-se amasiados e ela já grávida, desejando-se unir a esse matrimônio e estando próxima a retirada do suplicante para o Brasil, pede a Vossa Reverendíssima o pedido desta formalidade", dizem, em carta ao bispo. Outro pedido formalizado ao bispado de Assunção é o do cabo José Joaquim da Silva. "Com o favor de Deus, querem casar-se o cabo do Esquadrão da 1ª Bateria de Infantaria José Joaquim da Silva, filho de José Duarte da Silva e Maria Cristóvão da Silva, natural de Pernambuco e atualmente em Humaitá, com Maria Dorothea, filha de Izidro Franco e Carlota Benitez Izidro, natural de Pilar, República do Paraguai, sendo seus pais mortos".
A população paraguaia, quando se iniciou a guerra, girava, em tese, entre 420 mil a 450 mil habitantes, conforme o censo de 1846 - há historiadores, porém, que falam em 800 mil habitantes ou menos de 400 mil. Ao terminar a guerra, a população seria de 231 mil paraguaios e 56 mil estrangeiros.
A guerra começou quando o Brasil realizou uma intervenção armada no Uruguai. Solano López, o presidente paraguaio, tentou agir como mediador, o que o Brasil rechaçou. Então, López invadiu as fronteiras do Brasil (no hoje Mato Grosso do Sul) e da Argentina (em Corrientes). Em 1865, formou-se a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) para combater López, e a guerra só acabou com sua morte, em 1870. Mais de 1 milhão de pessoas padeceram nos confrontos.
As forças brasileiras de ocupação, conforme Ortolan, ficaram até 1876 no país derrotado. Em 1872, dos 55.796 estrangeiros no Paraguai, 30 mil eram soldados. Alguns dados oficiais fornecidos pelos historiador: entre os anos de 1882 e 1907, chegaram 12.241 imigrantes ao porto de Assunção, dos quais 9.053 eram homens e 3.188 eram mulheres. Já o censo de 1º de março de 1886 mostra que havia 94.868 paraguaios e 137.010 paraguaias em seguida à guerra. E - mais impactante - havia entre os adultos (de 31 a 70 anos), depois da guerra, 12.569 homens e 40.105 mulheres. Quase quatro paraguaias para um paraguaio.
Além do extermínio de boa parte da sua população, o Paraguai teve territórios tomados por Brasil e Argentina e a infraestrutura destruída. E uma crueldade é salientada, em especial, pelo historiador Júlio José Chiavenato, autor de Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai (Brasiliense, 1979). Diz ele que, no pacto da Tríplice Aliança, havia uma cláusula prevendo que a guerra terminaria com a morte de Solano López, como efetivamente ocorreu. Só então se assinaria o armistício. Diga-se, a propósito: o autor do ataque com lança que matou Solano López em 1870, foi o gaúcho de Camaquã José Francisco Lacerda, também conhecido como Chico Diabo.
Chiavenato, aliás, vê a guerra como traumática não só para o Paraguai, mas para toda a região. O Brasil, que se endividou com a Grã-Bretanha e usou escravos na linha de frente para poupar os filhos da elite - soldados que voltaram ao país exigindo a abolição da escravatura -, viu se formarem os contornos do país de hoje. Mais: capitaneou uma matança que, conforme Chiavenato, levou o Paraguai a ter cerca de 2 mil homens acima de 20 anos, com 9 mil meninos menores de 10 anos, 180 mil mulheres e uma dependência da qual nunca se livrou.
Entrevista com Moacir Assunção, jornalista e escritor que lançou, em 2012, "Nem Heróis, Nem Vilões" (Record, 462 páginas), livro em que aborda a Guerra do Paraguai e suas consequências:
Por que Solano López declarou guerra ao Brasil?
Na verdade, ao que parece, havia há muito tempo a intenção de López de envolver o Paraguai numa guerra. Ele queria que o país, pobre e atrasado ante os gigantes Brasil e Argentina, mas sem dívida externa e com um nascente comércio exterior, tivesse voz ativa na região. Os uruguaios tentaram seduzi-lo com o "canto de sereia", alegando que o Brasil, depois de invadir o Uruguai, faria o mesmo com o Paraguai, o que não era verdade. Uma guerra não tinha nada a ver com outra e o Brasil não estava preparado para uma conflagração como aquela, nem a desejava. O Império vivia o seu melhor momento. O presidente do Paraguai usou a invasão do Uruguai como uma desculpa para romper relações com o Brasil e aprisionar o navio brasileiro Marquês de Olinda, criando um casus belli. O que se constata é que ele esperava uma Tríplice Aliança ao contrário, com parte da Argentina, além do Uruguai, ao lado do Paraguai, o que não ocorreu. Há uma entrevista de López a um jornalista argentino, antes da guerra, em que ele afirma que somente uma grande guerra tornaria o seu país conhecido. Os europeus nem sabiam onde ficava o Paraguai. Daí, se meteu (e envolveu o seu povo) numa grande aventura, ao desafiar os dois países mais poderosos da região, Brasil e Argentina, de uma vez. O exército paraguaio, cerca de 80 mil homens, era muito superior ao do Brasil (12 mil) e ao da Argentina (8 mil). O Uruguai nem contava (2 mil). O Império teve que formar do nada um exército para lutar. A diferença é que, por ser um país muito maior, o Brasil tinha reservas, enquanto o Paraguai dispunha de um grande exército, mas não tinha reservas.
Como é a documentação a respeito do episódio?
Há uma documentação razoável, se levarmos em conta todos os países envolvidos. Creio que a maior é a da Argentina, que preservou melhor seus arquivos, mas há algo no Brasil, Paraguai e pouco no Uruguai. Com ela, os livros antigos e os jornais é possível traçar um panorama bastante razoável dos fatos.
Os dados são controversos. O Paraguai tinha 400 mil ou 800 mil habitantes antes da guerra, por exemplo? Perdeu que percentual da população?
Como não havia um censo minimante confiável, é difícil responder a essa questão, mas podemos tentar nos aproximar do real. O Paraguai "inflava" sua população, para parecer mais poderoso aos vizinhos. Uma forma de dizer que poderia montar um grande exército, o que não era verdade, de modo a intimidá-los e desestimular tentativas de anexação, principalmente por parte da Argentina, que considerava o país uma província desgarrada, que deveria ser trazida de volta à confederação. Veja que, no fim da guerra, o Brasil evitou que a Argentina tomasse todo o Paraguai, como era o desejo dos governantes daquele país, o que quase gerou outra guerra. O número mais aproximado da população era algo em torno de 600 mil a 700 mil habitantes no país, que era pouco habitado, mas se vendia que eram mais de 1 milhão, o que se constatou que não era verdadeiro, mas ninguém tinha condição de aferir. O Paraguai perdeu 75% de sua população masculina adulta no episódio. Preocupado, o governo do pós-guerra permitiu a poligamia por algum tempo, de forma a recompor a população. Havia mais ou menos seis mulheres para cada homem ou um pouco mais. Interessante lembrar que nem todos foram vítimas dos combates, mas de outros problemas como a fome e as doenças, causadas diretamente pela guerra também.
Quais foram os efeitos concretos sobre o país?
Os efeitos da guerra sobre o Paraguai foram terríveis: o país perdeu cerca de 40% do seu território - parte do atual Mato Grosso para o Brasil e a área de Bahia Blanca para a Argentina -; perdeu sua autonomia, já que ora o Brasil ora a Argentina mandavam na política interna, o Brasil quando o Partido Colorado estava no poder e a Argentina quando era o Partido Liberal; perdeu sua industrialização nascente e o seu pequeno protagonismo regional. Depois, um grande grupo de brasileiros, os brasiguaios, passaram a viver no país, que tem a segunda comunidade de brasileiros fora do país, superado somente pela dos EUA, e jamais se recuperou. É justo dizer que parte dos problemas paraguaios de hoje se iniciaram na guerra e nunca foram resolvidos. Tiveram a desventura, na sequência, de passar por vários governos ditatoriais - em parte apoiados pelo Brasil em outros pela Argentina - e viver períodos de grande incompetência governamental. Claro que não foi só a guerra e não há o "se" em história, mas o Paraguai seria outro país, certamente, se não tivesse vivido essa experiência trágica.