O Rio de Janeiro está em polvorosa na medida em que um vírus epidêmico faz vítimas fatais e a classe política está mais preocupada com seus próprios interesses. É o princípio do século 20 e as ruas cariocas explodem com um movimento popular que entrará para a história como uma rebelião contra a vacinação obrigatória. Uma dessas pessoas é Zelito, um migrante nordestino que sonha em desenhar para os jornais da então capital federal.
É este o enredo da primeira obra do premiado quadrinista André Diniz para a editora Darkside, intitulada justamente Revolta da Vacina. Trata-se de uma nova versão da graphic novel Z de Zelito (2013, da Nova Fronteira), que retorna às livrarias mais atual do que nunca graças à atual pandemia:
— Cheguei mesmo a redesenhar cada página com um acabamento diferente — conta André, que desde 2007 está às voltas com o assunto, por sugestão do editor e amigo Alexandre Linares. — O incrível é que, com isso, a história dialoga muito mais com a atualidade do que lá no começo.
Ambientados na Belle Époque brasileira, que de bela teve pouco para a classe trabalhadora, os quadrinhos acompanham a jornada do jovem Zelito de Fortaleza para o Rio de Janeiro. Ele desembarca, em 1904, em uma cidade em obras: casas velhas caem, ruas são alargadas. Trata-se do "bota-abaixo", movimento de urbanização que, se por um lado pregava uma reforma sanitária, por outro foi peça chave no processo de gentrificação que empurrou os pobres para cima dos morros cariocas, devido à demolição de cortiços e hospedarias no centro.
"A população da cidade, sobretudo a de baixa renda, tinha razões para estar enfurecida. Os aluguéis eram caros, o desemprego crescia, os salários diminuíam e, no meio de tudo isso, o prefeito Pereira Passos iniciara a reforma urbana que visava transformar a cidade", destaca o historiador Luiz Antônio Simas no posfácio da obra.
É em meio a tal cenário que um jovem médico decide acabar com a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, que ceifam vidas de forma descontrolada na cidade. Por meio de uma brigada sanitária, ele orquestra o extermínio de ratazanas e mosquitos, o que o transforma em piada no Rio de Janeiro; além da invasão de residências para desinfecção de focos de doenças, o que o torna persona non grata por toda a região.
Mas Oswaldo Cruz não é o protagonista desta história, e sim Zelito — um dos descontentes, pego quase sem querer no meio da revolta contra a vacina.
— Gosto de criar personagens fictícios e inseri-los em contextos reais, históricos ou sobre a atualidade. É um ótimo caminho para se ter uma boa história: o potencial criativo da ficção e a loucura do mundo real — explica André. — Neste caso, achei mais interessante inserir o leitor na confusão da época, no meio de tanta desinformação, mortes, autoritarismo e as fake news, já naquela época, para manipulação política.
Ciência e política
Zelito, por sinal, ao longo da trama está mais preocupado com seus desenhos, seu emprego e seu futuro do que com a inquietação que varre as ruas do país. Ainda assim, quando o descontentamento toma a cidade, reflete o caos que ele sente em sua vida, e ele toma parte na insurreição.
O estopim de tanta revolta? A decisão do Congresso, promovida por Oswaldo Cruz, de tornar a vacinação contra a varíola obrigatória em todo o território nacional — de forma que só vacinados conseguiriam contratos de trabalho, matrículas em escolas, certidões de casamento e outros documentos oficiais. Para a população pobre, de certa maneira, era a certeza de ser excluída da sociedade, mais uma vez.
— Cabe lembrar que uma vacinação em massa era algo totalmente desconhecido por todos, ao contrário do Brasil de hoje, que até há pouco era referência mundial em vacinação — ressalta o quadrinista.
A próprio Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em seu site, lembra que à época "corria o boato de que quem se vacinava ficava com feições bovinas", uma vez que o imunizante consistia no líquido de pústulas de vacas doentes. Hoje, esperava-se que a população já estivesse vacinada contra essas mentiras e boatos. Vale sublinhar, por exemplo, que menos de cinco anos após a Revolta, a vacinação já era recorde, devido a uma epidemia de varíola em 1908.
Ainda assim, o episódio é um lembrete de que, em situações de crise, a ciência sozinha não salva ninguém — sem lideranças políticas confiáveis e comunicação eficiente, até Oswaldo Cruz foi visto como vilão, teve sua casa apedrejada e seu nome amaldiçoado. A Revolta da Vacina, aliás, não foi sem consequências: deixou um saldo de 945 prisioneiros, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos, apenas em números oficiais e sem contar os mortos por varíola nos anos seguintes.
— Talvez a única vencedora nessa história seja mesmo a ciência. Oswaldo Cruz esteve certo o tempo todo quanto à eficácia e à importância da vacinação, mas politicamente ele foi um desastre — conclui André. — Se for para usar as palavras "herói" ou "vilão", eu arriscaria dizer que ele foi um herói desastrado... Com toda a confusão gerada, é impossível negar sua determinação em combater as doenças e as milhares de vidas que foram salvas como consequência de seu trabalho.
É apenas apropriado, então, que a graphic novel chegue ao fim com um tributo a dois entusiastas da vacinação: o cientistas francês Louis Pasteur ("Os benefícios da ciência não são para os cientistas, e sim para a humanidade!") e o cantor MC Fioti ("É a vacina saliente, que vai curar 'nois' do vírus e salvar muita gente"). A ciência, afinal, é imprescindível, mas a comunicação é também fundamental.