O escritor moçambicano Mia Couto foi o conferencista desta quarta quarta-feira no ciclo de estudos Fronteiras do Pensamento. Biólogo de formação, o autor de Terra Sonâmbula dissertou sobre diferentes aspectos da pandemia de coronavírus, abordando a questão do ponto de vista científico, mas também social e político. A transmissão foi realizada pela internet a partir de Portugal – Couto, que vive em Maputo, estava de passagem por Lisboa.
A fala inicial do autor foi pautada pelo tema do Fronteiras do Pensamento neste ano, a "reinvenção do humano". Mia Couto ponderou que, para a cultura bantu, por exemplo, não há separação entre o humano e o não-humano, assim como não é possível separar natureza de sociedade. Porém, apontou que a pandemia deixou claro que existem visões excludentes de humanidade:
– É incrível como muita gente toma esse confinamento de luxo, que eu mesmo experimento, como uma amostra da tragédia pela qual está passando a humanidade. É fácil esquecer que a maior parte das pessoas não vive em apartamentos com vários cômodos e nem em uma casa repleta de livros e discos. Tomamos facilmente nossa realidade por aquilo que é o mundo inteiro.
Mia Couto também questionou a possibilidade de isolar o que é puramente humano:
— Será que existe algo que podemos chamar de puramente humano? Começamos a pensar no humano para nos demarcar de outras criaturas, que no discurso judaico-cristão eram desprovidas de alma. Por vezes, eram animais, mas nem sempre. Às vezes humanos iguais a todos nós ficavam do lado de fora da porta por não terem a cor ou o deus certo.
Evolução
Segundo o escritor, as pesquisas realizadas acerca do genoma humano nos últimos 20 anos apontam que não existe uma “pureza humana”, já que parte das células do nosso corpo, por exemplo, são bactérias que se agregaram a ele ao longo da evolução. Couto citou as mitocôndrias, que são organelas derivadas de bactérias primitivas, mantendo uma “linguagem própria”, apesar de fazer parte das células humanas.
— A evolução foi narrada de uma forma distorcida, com o foco na competição. De fato, a competição é algo muito poderoso, mas o processo de trocas simbióticas é mais central. Os organismos que escolheram a solidariedade foram os mais capazes de sobreviver. Governantes como Bolsonaro até hoje recusam enxergar isso — afirmou o conferencista.
Da mesma forma que as bactérias, vírus também são responsáveis pelo nosso código genético, segundo Couto. Por isso, considera limitada a visão estrita de combate ao coronavírus.
— Os vírus não estão fora, mas dentro de nós. Somos feitos a partir deles. Nós, mamíferos, não seríamos capazes de desenvolver placenta se não tivéssemos incorporados vírus antigos. Foi assim que conseguimos desenvolver essa coisa milagrosa que abraça o bebê. Se não fossem os vírus, estaríamos botando ovos até hoje – explicou o escritor.
Couto defendeu que o entendimento de que não há uma pureza humana deve ir além dos livros de Biologia:
– Uma criança que entende que somos formados pela pluralidade está menos suscetível a ser tornar um adulto que se deixa seduzir por discursos de pureza de raça.
Futuro
Questionado a respeito do futuro pós-pandemia, Mia Couto afirmou que não acredita que haverá grande mudança nas relações humanas:
— Vamos regressar ao velho anormal. O novo normal será uma "miséria melhorada", como dizia Guimarães Rosa. O sistema político e econômico vai se adaptar para que a crise pese sobre quem é mais pobre. Não tenho esperança de que surja uma consciência completamente nova.
O Fronteiras do Pensamento é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre, Hospital Moinhos de Vento e Gerdau, empresa parceira Unicred RS, universidade parceira UFRGS, apoio educacional Colégio JPSul e promoção Grupo RBS.