Voz respeitada no debate da área econômica, Aod Cunha, 52 anos, lamenta a “falta de coordenação” do governo federal no combate aos impactos da pandemia. Diante do cenário repleto de dificuldades, o ex-secretário estadual da Fazenda resolveu assinar, em março, uma carta que ganhou repercussão ao solicitar medidas efetivas contra a covid-19 no país. O movimento reuniu economistas, ex-ministros e empresários de renome. Nesta entrevista, ele frisa que a vacinação é o caminho para a superação da crise, que gera reflexos no dia a dia de empresas e consumidores. Também chama atenção para a necessidade de o Estado e o Brasil avançarem em educação. A melhora na área, diz, é fundamental para o desenvolvimento no pós-pandemia. Em sua passagem pelo governo Yeda Crusius (PSDB), Aod teve destaque na busca pelo equilíbrio das finanças públicas.
A crise sanitária restringe uma série de atividades econômicas no país. Como define o atual momento?
É um momento triste e desafiador. É triste pelo número de mortes que já tivemos. A crise humanitária é vista no mundo todo. Mas, quando comparamos os números do Brasil com os de outros países, temos a percepção de que a crise é mais intensa e mais grave aqui. Meu resumo é esse. Tenho tristeza e, evidentemente, preocupação com o quão rápida será a saída disso.
Como surgiu o movimento que culminou com a carta pedindo medidas efetivas de combate à covid-19 no país? O que o manifesto representa?
A ideia surgiu em um grupo de WhatsApp de alguns economistas. Faço parte dele há bastante tempo. É um grupo que discute políticas econômicas, reformas. Avaliamos que seria importante uma manifestação mais forte. Começou com um número menor de pessoas. Fui o 12º a assinar. O movimento foi crescendo. Passou a ter adesão de executivos do mercado financeiro e empresários. A ideia foi chamar atenção sobre a gravidade do momento e, principalmente, sobre a necessidade de termos melhor coordenação, liderada pelo governo federal, para um conjunto amplo de medidas. Entre elas, a vacinação, o uso de máscaras e o isolamento enquanto a imunização não avança. Além disso, há as medidas de mitigação de impactos do ponto de vista da atividade econômica, da geração de renda e emprego. Foi um apelo olhando para todos. Apesar de algumas diferenças de ideias, os países seguem um rumo, com coordenação de ações entre governos centrais e locais. Isso nos parecia ser o mais relevante, porque estávamos assistindo à falta de coordenação no governo federal, ainda que tivéssemos todo o cuidado de não citar nomes, de não colocar os políticos na carta. A ideia foi chamar atenção, fazer o país olhar para as melhores práticas no mundo, aquilo que a ciência está recomendando, e, principalmente, ter uma ação mais concreta de coordenação das medidas.
A falta de coordenação foi o maior erro do país na pandemia?
Acho que sim. É um erro que, na minha avaliação, está associado a uma resistência do governo federal em aceitar recomendações e diagnósticos da área científica sobre o que funciona e o que não funciona. Por exemplo, o presidente (Jair Bolsonaro) relutou muito em recomendar a vacinação. Mais do que isso, teve uma posição contrária por muito tempo, desdenhando da vacina, não incentivando o uso de máscaras, estimulando aglomerações. Então, a falta de coordenação, o problema maior, esteve associada a uma falta de convicção da liderança maior sobre essas medidas importantes. Isso dificultou e retardou ações que poderiam salvar vidas no Brasil.
Por outro lado, o senhor vê algum acerto no combate aos diferentes impactos da pandemia?
Precisamos entender que estamos vivendo a maior pandemia em cem anos. É uma situação quase de guerra. É evidente que está fora da normalidade. Então, os governos e as pessoas precisam se unir para saírem o mais rápido possível dessa situação. O ponto principal, no Brasil, foi a demora para convergir para padrões mínimos de condução da pandemia, feitos em outros países com sucesso. Dito isso, do ponto de vista econômico, no início da pandemia, havia estimativas de que o PIB (Produto Interno Bruto) poderia ter queda de até 8% ou 9% no Brasil. Ao final do ano passado, a queda da atividade econômica foi bem menor, de 4,1%. Você me perguntou se houve alguma coisa em que fomos melhores: foi a queda menor da atividade econômica. Agora, se olharmos para o quanto o Brasil precisou gastar para ter medidas como auxílio emergencial e programas de assistência de crédito, veremos que não foi pouco. O Brasil gastou o equivalente a cerca de 10% do PIB. Isso foi um pouco mais do que o dobro da média dos países emergentes, que ficaram próximos a 5%. Também traz consequências. Temos pressão na inflação, na taxa de câmbio. Não teremos a mesma capacidade de socorro neste ano, e a pandemia não se encerrou.
Nos últimos meses, o consumidor sentiu o aumento de preços de produtos como alimentos e combustíveis. O quanto isso preocupa? É um choque mais duradouro do que se esperava no início da pandemia?
Desde o ano passado, venho manifestando preocupação com a alta de preços. Não me parecia ser uma alta momentânea. Faço parte de conselhos de administração de várias empresas. Via a elevação de custos, principalmente de insumos básicos para a indústria. Há uma questão de tempo entre o aumento no atacado e a chegada ao consumidor. No ano passado, o IPCA (do IBGE), usado pelo Banco Central no programa de metas de inflação, ainda não refletia o aumento de preços que já era visto no IGP-M (divulgado pela FGV), que capta mais esses movimentos de atacado. Pelos riscos fiscais, a desvalorização do real ficou maior. Parecia que era questão de tempo para a inflação chegar ao consumidor, no IPCA. É o que está acontecendo. O próprio Banco Central reconheceu isso. Em sua reunião mais recente (em março), o Copom (Comitê de Política Monetária do BC) aumentou em 0,75 ponto percentual a taxa de juro, e o mercado financeiro esperava menos do que isso. O mercado esperava 0,50 ponto percentual. O Copom já sinalizou que devemos ter nova alta de 0,75. Então, isso mostra que a inflação está mais persistente. É preciso ter muita atenção com ela. O Brasil tem um tema fiscal que precisa resolver. É mais difícil resolvê-lo com a pandemia. Se descuidarmos da responsabilidade fiscal, teremos problema lá na frente, mesmo entendendo que é preciso ter políticas mitigatórias. Essas políticas devem ser temporárias.
A melhor medida econômica hoje, para o Brasil, é acelerar a vacinação. Infelizmente, a gente demorou muito.
Além da vacinação contra a covid-19, há outras ações necessárias para auxiliar a economia no momento atual?
O tema da vacinação não é apenas um tema de saúde. É econômico também. O presidente do Banco Central (Roberto Campos Neto) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, vêm insistindo nisso. A melhor medida econômica hoje, para o Brasil, é acelerar a vacinação. Infelizmente, a gente demorou muito. O fato é que o Brasil tem uma das melhores estruturas de vacinação do mundo, talvez a melhor. Pela resistência inicial, demorou para fazer negociações da vacina no horizonte mais amplo. Agora, tudo indica que vamos avançar de maneira mais rápida. Mas esse avanço ainda vai levar alguns meses para atingir percentual maior da população que garanta ritmo normal de vida e atividade econômica, o que todos nós queremos. Até lá, vamos precisar de medidas de isolamento, porque hospitais estão superlotados, o que faz com que a confiança no consumo e nos investimentos se reduza. É importante que se tenha coordenação, unificação das políticas e discursos de governo federal, Estados e municípios. Além disso, para empresas e pessoas com dificuldades de geração de renda, também é importante ter uma coordenação de políticas mitigatórias. Precisamos focar. Vimos o auxílio emergencial ser concedido em uma escala ampla no ano passado. Precisamos focalizar os diferentes tipos de auxílio para as pessoas mais pobres.
Recentemente, o senhor escreveu sobre dois desafios brasileiros: a necessidade de equilíbrio fiscal e o combate à desigualdade social. Como é possível conciliar rigor com as contas públicas e medidas de auxílio para quem mais precisa?
É uma pergunta ampla. O Brasil é um dos países com os maiores níveis de desigualdade de renda. Esse não é um tema que será resolvido rapidamente, no meio da pandemia, em um, dois ou cinco anos. O Brasil vai levar um bom tempo para reduzir a desigualdade – se fizer as coisas certas. A melhor forma, e mais sustentável, é reduzir a desigualdade de oportunidades na sociedade. Ou seja, que o fato de o indivíduo nascer rico ou pobre não determine a qualidade de vida dele. Em um momento como este, de pandemia, de redução da atividade econômica, a desigualdade mostra suas consequências mais graves. É evidente. Então, precisamos ter políticas mitigatórias. Aliás, o governo federal fez uma série de medidas. Nesse aspecto, agiu na pandemia. E vamos precisar levar isso por mais alguns meses. Agora, o que não pode ocorrer é esquecermos que, em algum momento, vamos sair da pandemia. Pode demorar um pouco mais ou um pouco menos. Aí, vamos encontrar um país que, antes da pandemia, já tinha um problema de baixa capacidade de crescimento econômico. O Brasil teve uma recessão muito severa em 2015 e 2016.
Depois, de 2017 a 2019, cresceu na faixa de 1% ao ano. O Brasil está, sim, com problema de baixo crescimento econômico. Na minha opinião, isso só será resolvido com muitas reformas que aumentem a produtividade. A primeira coisa é a seguinte: para combater a desigualdade, você precisa voltar a ter crescimento econômico. Depois da pandemia, também vamos voltar para a realidade de um país com problema fiscal sério, com déficits altos. Responsabilidade fiscal não é incompatível com medidas mitigatórias. Precisamos estabelecer prioridades, cortar despesas em áreas que são menos prioritárias do que a de medidas compensatórias de renda. Algumas medidas já foram apresentadas, como focalização de programas sociais. Há um universo grande de programas no orçamento com eficiência mais baixa e que poderiam ser unificados. São ações que podem ser feitas com responsabilidade fiscal. Sem isso, quando terminar a pandemia, vamos encontrar um quadro de inflação e taxa de juro subindo ainda mais. Não vai adiantar tirar completamente o olho do problema fiscal. Ele vai voltar depois da pandemia e pode afetar, de maneira ainda mais grave, as pessoas de baixa renda.
Não conheço nenhum país que tenha melhorado sua performance econômica sem ter avançado em educação. Esse é o grande tema do Brasil.
Em termos históricos, o Brasil amarga baixo desempenho econômico nas últimas quatro décadas. O PIB do período de 2011 a 2020, por exemplo, teve o pior resultado em uma série de 120 anos, conforme levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV). O que explica esse quadro?
Tenho explorado bastante esse tema, porque acho que se dá pouca atenção a ele. Costumamos olhar mais para ciclos curtos de expansão ou recessão, e esquecemos o quadro mais amplo. Nos últimos 40 anos, o Brasil cresceu menos do que a média nacional. Não é só menos do que os emergentes. A principal explicação para isso é que a produtividade da economia brasileira está estagnada. A produtividade não é só a do trabalhador, que é afetada pelos problemas na área de educação. Tem uma série de outras questões no ambiente de negócios: dificuldades de infraestrutura, sistema tributário, economia fechada. Quando somamos tudo, a produtividade da economia brasileira é baixa. O Brasil era um país muito jovem. Isso mudou radicalmente. Está no final do chamado bônus demográfico. Quando pegamos a média de crescimento do Brasil nos últimos 20 anos, por exemplo, temos uma alta de 2,2%, mas 1,7 ponto percentual veio do bônus demográfico. Ou seja, do aumento no número de pessoas no mercado de trabalho. Só 0,5 ponto percentual veio da produtividade total. A produtividade do trabalhador está praticamente estagnada nos últimos anos.
Como não vamos ter o impulso pela oferta de trabalho, todo o crescimento futuro da economia brasileira terá de vir do aumento da produtividade. Como podemos fazer isso? Só tem um jeito: muitas reformas por muito tempo. Reforma tributária, administrativa, abertura econômica. A melhora na qualidade da educação é fundamental, mesmo que não traga reflexos no curto prazo. Não conheço nenhum país que tenha melhorado sua performance econômica sem ter avançado em educação. Esse é o grande tema do Brasil. Se não aumentarmos rapidamente a produtividade, não vamos voltar a crescer mais. O Brasil não vai ser um país de crescer 2,5% ou 3% de maneira sustentável. Vai ser 1%, o que é muito pouco. Não podemos ter a ilusão de que fazer uma ou duas reformas em um ano vai dar essa condição de aumento de produtividade. O Brasil é um país que precisará ter uma agenda de reformas por muito tempo. Vamos precisar dessa agenda de construção junto à sociedade, de compreensão política, para mostrarmos que não há outro caminho. Esse é o caminho do crescimento econômico maior, de redução de desigualdades.
O senhor já foi secretário estadual da Fazenda. Como avalia a condução da crise sanitária e econômica no Rio Grande do Sul?
O governador Eduardo Leite, desde o início, teve uma postura muito responsável. Ouviu diferentes frentes, lideranças científicas, empresariais, a classe política. Desde o início, deu pesos adequados quando estabeleceu medidas de distanciamento escutando a comunidade científica. É preciso preservar vidas. Há, sim, impactos econômicos difíceis. As pessoas perdem emprego, perdem renda. Ter bom senso e equilíbrio é muito importante nessa hora.
Além da pandemia, quais são os principais desafios que precisam ser encarados pelo Estado?
O primeiro é ter uma condição de superar de forma mais consistente o quadro de desequilíbrio fiscal agudo. Isso está sendo bem enfrentado pelo governo. O Rio Grande do Sul fez uma boa reforma da Previdência, melhor do que outros Estados. Fez a reforma administrativa, o que o governo federal ainda não fez. Está avançando em privatizações. Não há setor privado pujante e suficiente, em qualquer lugar do mundo, que consiga conviver com um quadro de disfuncionalidade do governo. Esse é o primeiro ponto. O Estado também tem desafios estratégicos do ponto de vista econômico. Por quê? O desafio demográfico chegou antes ao Estado. O Rio Grande do Sul envelheceu antes do que o resto do Brasil. Temos uma população perto de 11 milhões de habitantes, estamos distantes do eixo Rio-São Paulo e não temos o tamanho do mercado consumidor do Nordeste, ainda que essa região tenha uma renda mais baixa. Precisamos de uma reinvenção no dinamismo econômico do Estado.
O Rio Grande do Sul tem uma economia ligada ao agronegócio, bastante dinâmico, que continua indo bem. Diria que o caminho da prosperidade está na inovação e na tecnologia. Isso pode valer tanto para o agronegócio, mas também para indústria e serviços. Estamos vendo alguns movimentos interessantes no Estado. Unir o setor privado e as universidades em busca de inovação e empreendedorismo é importante. A gente não pode pensar o Rio Grande do Sul como polo de atração de investimento baseado no mercado consumidor. Não temos essa escala para competir com o centro do país e o Nordeste. Mas podemos ser um lugar que, pela qualidade do capital humano, tenha capacidade de gerar negócios que exportem serviços e produtos de valor agregado mais alto. Essa é a saída. Então, assim como no restante do Brasil, melhorar a qualidade da educação é determinante. De todas as minhas frustrações com o Estado, aquilo que mais me incomoda é ver o que aconteceu com a educação nas últimas décadas. A sociedade não pode aceitar isso. O Rio Grande do Sul já foi conhecido como o Estado de melhor qualidade de vida e educação. Fomos perdendo isso. Sem uma reversão no quadro, sentiremos os impactos no futuro. Aí, não adiantará falar em inovação e tecnologia em larga escala.
Em 2011, o senhor atuou como CEO do Inter. Qual é sua expectativa para o clube do qual é torcedor, que teve recente troca na presidência e na comissão técnica?
Estou animado. Marcelo Medeiros, o presidente anterior, pegou o clube em uma situação muito difícil. Fez um bom trabalho, responsável, entregou um bom time. Estou muito animado com os conceitos da nova gestão. São conceitos modernos de gestão e de como ver o futebol. O presidente Alessandro Barcellos, inclusive, me convidou para participar do novo projeto. Gostaria muito de aceitar o convite. Mas, como estou com muitas atividades, não teria como. Preferi continuar como torcedor. Os conceitos estão corretos. Há uma separação entre questões políticas e gestão profissional, o que não é fácil no futebol brasileiro. Vi uma entrevista pós-jogo e mandei mensagem para o presidente Alessandro, porque fiquei impressionado com as falas do novo treinador, Miguel Ángel Ramírez. Ele (Ramírez) defende a ideia de que é importante ter um modelo de jogo. Disse que, se tem um modelo de jogo, sabe por que ganha ou por que perde. Sem modelo, não sabe. Tenho muita esperança. Sofri muito no último jogo do Brasileirão do ano passado (contra o Corinthians). Mas tenho esperança de que nosso título está mais próximo (risos).