Até dois meses atrás, o médico Alberto Beltrame expandia no outro extremo do Brasil uma carreira iniciada no Rio Grande do Sul. Como titular da Secretaria Estadual de Saúde do Pará, presidia o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), liderava campanhas de combate à pandemia do século, provocada pelo coronavírus, e fazia interlocução com o governo federal. Tudo mudou quando equipes da Polícia Federal (PF) bateram na porta de sua residência em Belém (PA), em junho, atrás de documentos para uma apuração que o coloca como suspeito de participar de uma fraude milionária.
A operação jogou luzes sobre um especialista em política de bastidores, um quadro nacional do MDB que já ocupou cargos importantes de primeiro e segundo escalões em governos estaduais e na União, incluindo o de ministro. Em pouco mais de um mês, Beltrame foi alvo de duas operações policiais, virou réu em um processo por improbidade administrativa, deixou o Conass e, também, o cargo de secretário de Saúde. Além disso, agora se sabe que está no radar da Operação Lava-Jato, no Rio de Janeiro.
A primeira visita da PF, em 10 de junho, revistou os endereços de Beltrame e seus aliados no Pará, em busca de provas de superfaturamento na compra de respiradores para doentes com covid-19 por R$ 50 milhões. Encontrou cerca de R$ 748 mil escondidos num recipiente na casa do secretário adjunto de Beltrame, o também gaúcho Peter Cassol Silveira, que migrara com ele para o Pará. Dia 23 de junho, nova incursão da federal em imóveis de Beltrame, desta vez em Porto Alegre e no litoral gaúcho. Foram confiscadas obras de arte e, também, dinheiro vivo. Por fim, em 30 de junho, o médico virou réu na ação que investiga fraude na compra de garrafas pet para armazenar álcool gel.
Beltrame nega qualquer irregularidade e aponta o dedo para o Ministério da Saúde. Para ele, houve omissão da pasta por não ter centralizado compras de produtos e equipamentos essenciais para o combate à epidemia.
— Estados e municípios foram deixados sós, abandonados num verdadeiro cassino internacional, num leilão de equipamentos e insumos, competindo com preços altos e muitas vezes cartelizados. Agora, chegamos à fase da criminalização de gestores, quando se penaliza quem ousa fazer e acaba por se premiar quem se omite — resume ele, em entrevista a GaúchaZH.
Além dos processos criminais e por improbidade a que responde no Pará, Alberto Beltrame pode ter outra frente com que se preocupar, resumida na expressão Lava-Jato. A mais famosa operação de combate à corrupção no país examina alguns contratos milionários que passaram pela gestão do médico no Ministério da Saúde.
Esses contratos foram citados por duas figuras bastante conhecidas: o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (MDB) e o ex-subsecretário da Saúde fluminense César Romero. Em depoimento prestado em 2019 por Cabral ao juiz da Lava-Jato no Rio, Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal, o ex-governador falou de ilegalidades na área de saúde praticada por filiados ao MDB.
Cabral disse que Beltrame, quando foi nomeado secretário nacional de Atenção à Saúde por indicação do partido, teria intermediado esquemas que favoreceram o empresário Miguel Iskin (dono de importadora de próteses) e o então secretário de Saúde do Rio, o ortopedista Sérgio Côrtes. Os dois foram presos por fraude em licitações.
"Esse Beltrame se tornou secretário nacional de Saúde e por intermédio dele o Miguel Iskin, junto com o Côrtes, fizeram, agiram e forneceram muita coisa para vários Estados do país. Eu não participei disso, não me beneficiei disso, mas tenho certeza absoluta de que isso aconteceu. Foi no Projeto Suporte, tudo o que o senhor possa imaginar. O Alberto Beltrame era o elemento de ligação com o Iskin e o Côrtes. Depois virou ministro, substituiu Osmar Terra quando esse se afastou para ser candidato", pontuou Cabral, que está preso por corrupção e condenado a mais de cem anos de reclusão.
Já Romero, que também foi preso por corrupção, fez delação premiada e detalhou como teria sido montado no Ministério da Saúde um esquema destinado a fraudar licitações que beneficiaram, entre outros, a empresa traumato-ortopédica de Iskin. Foi em 2005 que surgiu naquele ministério o Projeto Suporte, para estruturação de serviços de traumato-ortopedia com apoio técnico e financeiro às secretarias estaduais e municipais de Saúde. A implantação coube ao Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into), do Ministério da Saúde, que recebeu, para isso, orçamento de R$ 180 milhões entre 2005 e 2010. Romero foi assessor jurídico do Into, antes de virar subsecretário da Saúde no Rio.
Quem avalizava o trabalho do Into e a implantação do Projeto Suporte era a Secretaria de Atenção à Saúde, do ministério, chefiada a partir de 2008 por Beltrame. Romero não cita especificamente o nome de Beltrame, mas o gaúcho é mencionado num relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2017, que registra: Alberto Beltrame, no período de 26/12/2008 a 4/1/2011, e outro secretário que o sucedeu, "não avaliaram a implementação do Projeto Suporte, mesmo cientes da assinatura dos Termos de Cooperação Técnica e da transferência de recursos orçamentários do Ministério da Saúde para o Into no valor de R$ 180 milhões, com infração ao disposto na portaria que implementou o projeto".
A auditoria inclui a delação de Romero e diz também que nos processos examinados — e que não foram vistoriados com o cuidado devido na gestão de Beltrame, segundo os auditores — foram constatados indícios de direcionamento nas licitações, bem como falhas na execução contratual. A gestão de Beltrame como secretário no ministério é objeto também de outra auditoria do TCU, sobre controle eletrônico do ponto em hospitais federais no Rio, que tramita de forma confidencial.
Romero, em depoimento, disse que o esquema traumato-ortopédico ligado ao Into envolvia empresas especializadas em equipamentos hospitalares internacionais, que combinavam entre si o preço de oferta. O cartel seria organizado pelos empresários responsáveis por trazer ao Brasil as companhias estrangeiras que participavam das licitações internacionais. Elas venceriam a concorrência mediante pagamento de propina. Os empresários foram presos pela PF e depois libertados mediante habeas corpus do STF.
Tanto Cabral quanto Romero declararam que o esquema contava com anuência do Into, supervisionado pela secretaria comandada por Beltrame. Procurado pela reportagem, o chefe da força-tarefa do Ministério Público Federal na Lava-Jato do Rio, procurador Eduardo El Hage, não quis detalhar até que ponto a declaração de Cabral sobre Beltrame e os contratos firmados na gestão do gaúcho são investigados pela operação, mas confirmou que tudo que se refere à delação de Romero teve ou terá desdobramentos. A estimativa da Lava-Jato é que até R$ 300 milhões em compras envolvendo o governo fluminense tenham sido superfaturados no esquema envolvendo o Into.
Beltrame ressalta que ele foi excluído do rol dos responsáveis, na tomada de Ccontas que examinou a importação dos equipamentos ortopédicos. Quanto à Lava-Jato, diz que vê "com surpresa e indignação" o depoimento de Cabral, "que é vago e não corresponde à realidade".
As suspeitas
- A porteira aberta para compras sem licitação para enfrentamento da covid-19 envolveu a Secretaria da Saúde do Pará e Alberto Beltrame em um emaranhado de suspeitas. Uma delas envolve a compra de 1,4 milhão de garrafas pet por R$ 1,7 milhão
- As pet seriam usadas para envasar álcool gel doado ao governo. O Ministério Público (MP) do Pará, que entrou com ação de improbidade contra Beltrame, suspeita que a doação nunca existiu, já que a secretaria, mesmo cobrada por autoridades, jamais deu informações sobre quem doou o produto e qual a quantidade de álcool. O fato é que a compra das garrafas, feita em março sob a égide da emergencialidade, nunca se justificou. Até o final de junho, o material seguia armazenado em um depósito, sem uso
- O MP esmiuçou o processo de compra das garrafas, constatando situações que destoariam do correto trâmite para esse tipo de aquisição, ainda que com dispensa de licitação. A primeira delas é o fato de 11 movimentações processuais terem ocorrido em um único dia, inclusive a pesquisa de preços e o empenho do valor integral a ser pago. Esse empenho foi ordenado, segundo o MP, por Cassol
- Outro problema foi o parecer jurídico inserido, que tinha teor genérico — ou seja, não era uma análise específica para aquela demanda — e carecia de assinatura. Também faltaram no processo documentos da empresa contratada: segundo o MP, não havia nem o contrato social ou certidões que indicassem a capacidade de fornecimento. Sobre a pesquisa de preços, outra curiosidade: das cinco propostas pesquisadas, quatro eram decorrentes de licitações públicas e apenas uma de consulta direta ao fornecedor, no caso, a empresa que venceu
- Além disso, as outras quatro propostas continham preço para squeezes, produto diferente e de qualidade superior ao que se buscava comprar, portanto, também de valor mais alto, o que teria facilitado a opção pela empresa Marcoplas Comércio de Móveis. Ainda como indicativo do processo direcionado a fim de supostamente favorecer a empresa e gestores públicos, o MP destacou um superfaturamento em torno de 125% na compra
- Em sua defesa, Alberto Beltrame alegou que não ter assinado o processo. Ele emitiu nota à imprensa: "Quanto à compra de garrafas pet, informo que não assinei o processo, não empenhei e não determinei o pagamento. Minha assinatura no processo foi escaneada de outro documento e colada por quatro vezes no processo. Determinei a abertura de sindicância para apurar as possíveis irregularidades neste processo no dia 22 de junho"
- O MP contrapôs e, em agravo de instrumento ainda em análise, registrou que essa sistemática de uso de assinatura por carimbo era amplamente usada na secretaria para contratações e havia sido até apontada como irregular pelo Ministério Público de Contas. O processo tramita na 1ª Vara da Fazenda de Belém.