O gaúcho Alberto Beltrame está licenciado do cargo de secretário da Saúde do Pará desde que entrou no alvo de investigações da Polícia Federal em duas operações sobre supostas fraudes na compra de equipamentos no Estado do norte do país. Em pouco mais de um mês, também virou réu em um processo por improbidade administrativa e deixou a presidência do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Além disso, está no radar da Operação Lava-Jato, no Rio de Janeiro.
Beltrame aceitou responder por escrito a perguntas de GaúchaZH. Nas respostas, defende-se das suspeitas e afirma que não há irregularidades em sua gestão. Também explica como formou um acervo de arte, apreendido pela PF em seu apartamento em Porto Alegre.
Confirma os principais trechos da entrevista.
Como presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o senhor entrou em choque permanente com o governo federal e com amigos de décadas, como o deputado federal Osmar Terra. Por quê?
Cobrei publicamente, por diversas vezes, que o Ministério da Saúde centralizasse as compras de respiradores, equipamentos de proteção individual, medicamentos e outros insumos. Diante de uma grave emergência em saúde pública, cabe ao ministério coordenar os esforços, exercer sua força de Estado, utilizar seu poder de compra e de escala para economizar recursos públicos, melhor atender a sociedade brasileira e fazer a interlocução internacional como país. Infelizmente tivemos muitas promessas, pouco auxílio e muitos problemas perduram. Neste cenário, Estados e municípios foram deixados sós, abandonados num verdadeiro cassino internacional, num leilão de equipamentos e insumos, competindo em absoluta desigualdade com governos de outros países, com preços altos e muitas vezes cartelizados. Agora, chegamos à fase da criminalização de gestores, quando se penaliza quem ousa fazer e que acaba por premiar quem se omite. Este é o cenário em que começa haver um verdadeiro "apagão" de decisões, onde o gestor, intimidado, opta por não fazer, mesmo diante da premência da necessidade e em prejuízo da saúde das pessoas. Este é o pior dos quadros para a gestão do SUS. Muitas injustiças estão acontecendo nesta onda. Em poucos minutos são destruídas carreiras, reputações, honra e dignidade de muitos.
Estarem em lados opostos durante a pandemia fez o laço de quatro décadas de amizade com Terra se romper?
A amizade e fraternidade com Osmar Terra seguem inalteradas, passados 44 anos da época em que o conheci. Nunca houve ruptura com o Osmar. O que há é uma profunda divergência em relação à pandemia, de natureza técnica e política, jamais pessoal. Na verdade, sequer chegamos a discutir pessoalmente estas posições. Ele adotou uma postura negacionista no início da pandemia. A realidade que se apresenta no país fala por si só e dispensa comentários. Outra divergência é quanto ao isolamento social. Terra, na contramão do mundo inteiro, se posiciona contra. Seus argumentos são de que os reflexos do isolamento social sobre a economia, o emprego e a renda seriam mais deletérios para a vida das pessoas do que a própria pandemia. Argumenta que, cedo ou tarde, chegaremos à imunidade de rebanho e que a quarentena é inútil. Trata-se de uma questão de valores. Eu não consigo ver antagonismo entre saúde e economia. É falso o dilema de termos de escolher uma ou outra. Mas é inegável que nosso bem maior a ser protegido é a vida, mesmo que à custa de um algum sacrifício a ser feito mais adiante para a recuperação da economia, do trabalho e da renda. Quanto ao isolamento social, o que verificamos no Brasil e no resto do mundo, é que com ele reduzimos o número de casos que podem ocorrer ao mesmo tempo, evitando assim o colapso dos sistemas de saúde locais. Quem nega isso, nega evidências do mundo inteiro. Hoje, até mesmo o efeito da imunidade de rebanho é questionado cientificamente, diante do muito pouco que já se conhece sobre a covid-19 e o grau de imunidade que ela confere. Quem está correto? Quem nega a letalidade do vírus, seus efeitos devastadores e a importância do isolamento social, ou a ciência, os cientistas, epidemiologistas e especialistas do mundo inteiro que dizem o contrário?
Chegamos à fase da criminalização de gestores, quando se penaliza quem ousa fazer e que acaba por premiar quem se omite
O senhor acredita em viés político nas investigações abertas?
Quanto à operação policial ocorrida no Pará, a mesma foi autorizada pela Justiça e não vejo como atribuí-la a questões políticas. O governo do Pará foi vítima de uma fraude, não seu causador. No final de março, sem sinalização de envio de respiradores pelo ministério, o governo do Estado resolveu comprar 400 respiradores da China. O Estado pagou R$ 25,2 milhões, metade do valor total, quando a legislação atual permite seu pagamento integral antecipadamente. Os R$ 25,2 milhões foram integralmente devolvidos aos cofres do Estado há mais de 45 dias. Os recursos utilizados nesta compra frustrada são exclusivos do Tesouro do Estado, sem nenhum centavo da União. Inobstante todas essas diligentes providências, ocorreu a operação da Polícia Federal. O processo está no STJ (Superior Tribunal de Justiça), de onde se espera uma decisão para após o final do recesso de julho. Estamos à disposição das autoridades policiais e do Judiciário para prestar todos os esclarecimentos. Estou absolutamente seguro de não ter feito nada de errado e espero que a verdade prospere e se faça justiça.
A Polícia Federal encontrou escondidos na casa de Peter Cassol, também gaúcho e seu assessor de confiança, R$ 748 mil. O que ele contou ao senhor sobre o dinheiro?
No dia da operação, após a busca e apreensão em minha casa, fui ao palácio. Foi lá que soube que a PF havia encontrado dinheiro na casa do Peter. Desde a operação policial não falei com ele e não tive qualquer contato, direto ou indireto. Espero que ele possa se explicar e se defender em um processo justo.
Um dos eixos da investigação da PF sobre a compra de respiradores no Pará é verificar se seu patrimônio é compatível com seus ganhos. O senhor garante que sim?
Absolutamente, sim. Não há nada de mal havia em meu patrimônio. Insisto: os recursos relacionados à compra dos respiradores foram integralmente restituídos aos cofres públicos, não restando qualquer prejuízo ao erário. Meu patrimônio foi construído ao longo de minha vida, seja por bens herdados, rendimento de imóveis locados ou conquistados com meu trabalho.
Meu patrimônio foi construído ao longo de minha vida, seja por bens herdados, rendimento de imóveis locados ou conquistados com meu trabalho.
O senhor foi dono de um antiquário na Cidade Baixa. Em que período? São de lá algumas das obras de arte encontradas em seu apartamento triplex na Capital?
Fui sócio do Antiquário Passado Presente, aberto em 1997. Neste período me dediquei à compra e venda de antiguidades, algo que sempre gostei. A loja abrigou, em determinado momento, uma galeria de arte, de propriedade de Lívia Chaves Barcellos. Foi um período em que pude conhecer melhor diversos artistas e também o mercado das artes. Afastei-me da atividade diária no antiquário em 1999, ocasião em que fui pela primeira vez para o Ministério da Saúde. A loja foi fechada em 2004 e o que restou de seu acervo foi levado para casa.
O senhor acredita que as obras valham mais de R$ 20 milhões, como foi estimado por um especialista consultado pela PF?
Esta estimativa é um verdadeiro absurdo e não resiste a qualquer apreciação mais acurada. A avaliação feita pelo especialista chamado pela PF, além de apressada, sem critério, sem laudo conhecido, foi leviana em afirmar que a coleção valeria R$ 20 milhões, ou até mais. Garanto que não há a menor possibilidade de atingir nem a mais pálida fração disso. Basta ser avaliada criteriosamente, por avaliador sério e independente, por leiloeiro oficial de arte ou perito. Asseguro, também, que toda ela é compatível com minha renda e de meu companheiro ao longo destes últimos 30 anos. Pode mesmo ser "banal" como um especialista consultado pela ZH chegou a cogitar. Representa para nós uma história de vida.
O gosto pela arte vem desde a juventude?
A avaliação feita pelo especialista chamado pela PF foi leviana em afirmar que a coleção valeria R$ 20 milhões
A arte sempre me encantou. Desde muito jovem comprei um objeto aqui, uma escultura ali, um quadro acolá. Eu e meus irmãos herdamos de minha mãe o gosto pela pintura, que desempenhamos com pouco virtuosismo. Por todos os locais por onde passei, tratei de levar arte. Foi assim no Hospital de Campo Bom, no Ipergs, na FGTAS, no Ministério da Saúde e no Desenvolvimento Social.
O que pode nos contar sobre sua coleção de arte?
Ao longo do tempo, fomos comprando esculturas, objetos, pinturas, gravuras. Uma das nossas aquisições mais bacanas foi um busto masculino em Montevidéu em 1990 e uma coluna que o sustenta, trazidos de ônibus para Porto Alegre. Uma epopeia. Sou capaz de lembrar de cada uma delas e das circunstâncias em que foi comprada. Nesta coleção há de tudo, desde aquarelas pintadas pela minha mãe, que ironicamente foram parar na lista do "acervo" de 300 obras de arte fotografadas pela PF, quadros pintados por mim e meus irmãos, até quadros de artistas renomados e mesmo réplicas. Os de maior valor têm nota fiscal, foram comprados em leilões públicos e constam de nossas declarações à Receita Federal. Muitos foram comprados há muitos anos, outros mais recentes. Quando em Porto Alegre, eu era figura carimbada em todos os leilões, volta e meia comprando algo legal, mas também itens absolutamente baratos, mas icônicos.
O senhor está apontado por falhas de gestão enquanto trabalhava no Ministério da Saúde. Um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2017, enviado à força-tarefa da Lava-Jato no Rio, tem apontamentos, além de ter sido citado em delações da Lava-Jato. O que o senhor diz a respeito? O senhor já prestou depoimento nessa investigação do Rio?
De fato, houve este apontamento pelo TCU na minha gestão frente à Secretaria de Atenção à Saúde no período mencionado, bem como de secretários que me antecederam. Todos os questionamentos foram por mim respondidos quando recebi o mencionado relatório em 2018. Todo este processo foi transformado em uma tomada de contas especial para determinar responsabilidades e ressarcimento ao erário daqueles que deram causa ou foram responsáveis pelos fatos apurados. Eu fui excluído do rol de responsáveis pelas irregularidades.
Na apuração da compra das garrafas pet, no Pará, o senhor disse que sua assinatura foi escaneada, negou ter assinado o processo de compra. Mas o MP diz que era hábito nos processos de sua secretaria o uso desse tipo de assinatura, como carimbo. Inclusive, o TCE já havia apontado isso como irregular em outros processos. O que o senhor tem a dizer?
A compra das garrafas pet não era do meu conhecimento e, como já disse, não assinei o processo. O processo aparece inteiro no Portal da Transparência da covid-19 do Pará, com minha assinatura escaneada sem meu conhecimento e autorização. Abri sindicância para apurar os fatos tão logo tomei conhecimento, antes mesmo da propositura de ação pelo MP do Pará. Minha assinatura não foi aposta como carimbo e sim apenas colocada nos processos do portal. Identifiquei outro contrato similar, com minha assinatura igualmente escaneada, em que o processo físico integral está sem minha assinatura. Felizmente, era um processo que não havia sido empenhado e nada pago. Determinei que nada fosse pago e enviei cópia integral do processo ao MP.
Em relação a seu patrimônio, além do triplex na Duque de Caxias e de uma casa na praia, o senhor e seu companheiro teriam uma mansão nas ilhas. É verdade?
A casa da praia foi construída há vários anos por meu companheiro, que tinha o objetivo de concluí-la e vendê-la, aproveitando o mercado aquecido da época. Infelizmente, o mercado mudou e ele não conseguiu vendê-la. Todos os recursos utilizados na sua construção estão por ele declarados em seu Imposto de Renda e a casa se encontra escriturada em seu nome. Jamais houve casa em qualquer das ilhas.
O senhor pensa em voltar ao comando da Saúde no Pará?
Estou licenciado do cargo de secretário de Estado do Pará para cuidar da minha saúde e para defender meu maior patrimônio: minha honra e dignidade. Neste momento, não tenho como afirmar quando e se retornarei ao exercício do cargo. Espero apenas que a tempestade passe logo, que a verdade venha à tona e que a justiça seja feita. Sempre de consciência tranquila de nada ter feito de errado ou de que possa me envergonhar.