A longa carreira de Alberto Beltrame em cargos estratégicos na área da saúde tem suporte nas suas relações partidárias, especialmente com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS). Amigos de quatro décadas, são correligionários e colegas de profissão. O ápice do relacionamento político ocorreu no final do governo Michel Temer. Ao se afastar do Ministério do Desenvolvimento Social, Terra colocou Beltrame no seu lugar, como ministro, em 2018.
Os dois se conhecem desde os anos 1970 porque tinham parentes em comum na região de Santa Rosa. Quando Beltrame se graduou em Medicina, Terra já era clínico geral e bem mais antigo, formado em 1974. Os unia o repúdio à ditadura que vigorava no Brasil desde 1964 e a ideia de trazer para o país algumas políticas de saúde, como as que vigoravam em Cuba.
No início da década de 1980, Terra decidiu fazer política institucional, pelo MDB. Beltrame fazia residência em pediatria no Hospital de Clínicas. Foi lá que conheceu João Gabbardo dos Reis, outro pediatra. Os três formariam uma amizade que os uniu na luta contra o regime militar, na simpatia pelo MDB e no sonho de reformular a política de saúde do país.
Beltrame é de uma família tradicional de Santa Rosa. Ele e os colegas médicos tiveram a ideia de fazer algum trabalho na prefeitura naquela região próxima à fronteira com a Argentina. Afinal, uma das principais ruas daquela cidade, a mais importante do noroeste do RS, leva o nome do pai de Beltrame, Etore Alberto, que foi vereador e presidente da Câmara Municipal por duas vezes. Ele e os irmãos tinham uma rede de lojas de ferragens que chegou a ter cem filiais. Mesmo após se retirarem desse tipo de negócio, os Beltrame permaneceram com vários imóveis em Santa Rosa.
Terra não conseguiu se eleger prefeito de Santa Rosa em 1988, apesar da intensa atividade política e da influência de Beltrame junto aos conterrâneos. Como Terra já era concursado no Inamps (atual INSS), voltou para Porto Alegre, sua cidade natal, onde foi nomeado superintendente do Inamps no RS. Levou para a Capital Beltrame, como seu chefe de gabinete.
Terra se elegeu prefeito de Santa Rosa em 1992, passo decisivo de uma carreira que o levaria a ser deputado federal e ministro, várias vezes, sempre pelo MDB. Beltrame preferiu os bastidores, sendo convidado para cargos gerenciais. Atuou no Instituto de Previdência do Estado (IPE) e em duas funções fora da área de saúde: presidiu a Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social e foi diretor do Trabalho na Secretaria Estadual do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (1996 e 1997).
— Beltrame é um raro exemplo de capacidade articulatória acima dos partidos. Basta ver a atuação dele no Conass. Sabe tudo de saúde e conseguiu direcionar sua expertise pelas diferentes tribos ideológicas. Atuou no governo Simon, no meu governo, no governo Yeda, no governo FHC, no governo Lula e no governo Temer. É de uma turma que inscreveu seu nome na saúde pública no Brasil — elogia o ex-governador Antônio Britto.
Foi nessa época que Beltrame deu vazão ao seu gosto por arte. Quadros, ele tinha desde que morava em Santa Rosa. Começou a ampliar o acervo e chegou a ser sócio de um antiquário no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre.
Nos anos 2000, após passagem pelo Ministério da Saúde, Beltrame voltou à área médica, como superintendente do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul e, depois, como presidente do conselho de administração do Grupo Hospitalar Conceição. Foi nesses dois hospitais, aliás, que formaria nova parceria que dura até hoje: com Peter Cassol Silveira. Ele foi gerente de materiais do Grupo Conceição quando Beltrame presidia o conselho. E exerceu função semelhante no Cardiologia, quando Beltrame era superintendente.
Beltrame consolidou sua carreira ao se mudar para Brasília. De 1999 a 2016, excetuadas algumas interrupções, alternou cargos diretivos no Ministério da Saúde e inclusive foi honrado com a Ordem do Mérito Médico, homenagem da Presidência da República. Em 2016, se tornou secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento Social, quando Osmar Terra era o titular. Quando Terra saiu para disputar reeleição como deputado federal, em 2018, Beltrame assumiu seu lugar na pasta.
A longa relação começou a ser abalada após a eleição de Jair Bolsonaro. Terra virou ministro da Cidadania em 2019. Beltrame acabou indo trabalhar com um desafeto do bolsonarismo, o governador paraense, Helder Barbalho, aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e duas vezes ministro de Dilma Rousseff. Levou junto Cassol, que ganhou cargo de direção na secretaria. Logo, Beltrame foi ungido presidente do Conselho dos Secretários de Saúde (Conass) e bateu de frente com o antigo parceiro e correligionário, Terra. A cisão aconteceu ante a visão oposta de ambos sobre como lidar com a maior emergência sanitária já registrada no Brasil.
Enquanto Bolsonaro classificava a covid-19 como "gripezinha", Beltrame, alinhado aos colegas dos Estados, clamava por providências federais contra a pandemia. Do outro lado, Terra se tornou aliado ferrenho do presidente, crítico do distanciamento social.
O afastamento entre os dois gaúchos chegou ao auge em 15 de maio. Naquele dia, em que o Brasil registrou 14 mil mortes pelo coronavírus, a revista Veja noticiou: "Beltrame prevê uma crise com o Ministério da Saúde se Terra virar ministro".
— Osmar adotou uma postura negacionista no início da pandemia. Previu que a covid-19 se comportaria como a H1N1, que causaria poucas mortes. Chegou a dizer que no máximo atingiria 700 óbitos, depois ajustados para 2 mil. A realidade que se apresenta no país fala por si só e dispensa comentários. Ele também é contra o isolamento social, na contramão do mundo inteiro. Me manifestei à Veja não contra o amigo Osmar, mas contra suas posições — resume Beltrame.
Terra, procurado pela reportagem, não quis falar sobre o assunto. Gabbardo, que mantém amizade com os dois, também prefere não se pronunciar. Tanto Terra quanto Gabbardo não são investigados nos casos dos quais Beltrame é alvo.