À frente de um dos maiores condomínios ministeriais da Esplanada, Osmar Terra já não perde tempo com perguntas dos amigos sobre sua súbita conversão à extrema-direita. Militante comunista na juventude, entusiasta de programas sanitários de Cuba e com mais de 30 anos no MDB, o ministro da Cidadania puxa o celular e encerra o assunto exibindo uma mensagem de Natal do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, incendiário caudilho asiático.
— Você sabe, eu continuo sendo um humano. Então permita-me desejar um Feliz Natal para vocês, viciados em drogas, ladrões, corruptos, criminosos, e aqueles que tornam miserável a vida dos filipinos. Mas se você não quiser parar, e continuar cometendo crimes, então este será seu último Feliz Natal — diz Duterte, cuja tolerância zero no combate às drogas patrocina execuções extrajudiciais de traficantes e usuários.
Terra termina o vídeo às gargalhadas. Seus interlocutores, assustados. Para amigos, aliados, colegas de partido e até adversários políticos, nem a antiga luta contra as drogas explica a radicalização do discurso. Dirigentes históricos do MDB evitam falar abertamente, mas deixam transparecer constrangimento.
Em conversas reservadas, emedebistas creditam a adesão ao bolsonarismo ao desempenho de Terra na última eleição, quando esperava colher 200 mil votos, sagrando-se o mais votado do partido na disputa pelo quarto mandato de deputado federal. Abertas as urnas, sua votação encolhera quase um terço em relação a 2014, e os 86 mil votos fizeram dele o último da sigla a se eleger. Começava ali uma operação para tentar manter o status de ministro.
Osmar Gasparini Terra nasceu em Porto Alegre em 1950, mas a família mudou-se para o Rio, onde o pai, Walter Terra, atuou como assessor parlamentar e a mãe, Nelly, era servidora do Incra. Bom aluno, passou no vestibular para Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Chamado de Chinelão pelos colegas devido ao pé grande e o costume de usar sandálias franciscanas, logo aderiu ao movimento estudantil e, por consequência, ao PCdoB.
Por que fizemos esta matéria?
Osmar Terra comanda uma das maiores estruturas da Esplanada na atual gestão. Na reforma dos ministérios realizada por Jair Bolsonaro no início do mandato, coube ao deputado gaúcho em quarto mandato chefiar uma pasta que absorveu as atribuições de três estruturas extintas (Desenvolvimento Social, Esporte e Cultura). Terra gerencia orçamento de R$ 100,3 bilhões e 3.992 servidores e é responsável por programas com dimensão nacional, como Bolsa Família e Criança Feliz.
Clandestinidade
Na militância, aproximou-se da presidente do DCE da PUC-Rio, uma estudante de psicologia chamada Mônica Tolipan, por quem se apaixonou. Com uma liderança natural sobre os estudantes, Mônica tornou-se alvo do regime militar. Presa três vezes, teve a detenção noticiada pelo The New York Times e motivou uma passeata de 6 mil estudantes por sua liberdade, reivindicada junto aos generais por dom Ivo Lorscheiter, à época secretário-geral da CNBB.
No cárcere, Mônica foi torturada pelo então chefe do Destacamento de Operações e Informações do Exército – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo dos bolsonaristas. Mantida num cubículo escuro e congelante, com água gotejando por dias sobre a cabeça, ela ouviu do carrasco que seria supliciada pelo “método inglês”, baseado em aflições psicológicas, já que não poderia machucá-la por conta da pressão de dom Ivo e da PUC.
Chamado de “César” ou “Comprido” em relatórios sobre “elementos envolvidos em atividades subversivas” feitos pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), Terra sabia que vinha sendo monitorado. Logo após a soltura de Mônica, o casal decidiu fugir. Foram para São Paulo e marcaram um encontro na rodoviária com um casal de amigos e companheiros de militância, o hoje senador Jaques Wagner (PT-BA) e a esposa dele à época, Bete.
No terminal, convidaram os amigos para fugirem juntos à Argentina, mas Wagner e Bete foram para a Bahia, onde tiveram duas filhas, batizadas de Mônica e Mariana, em homenagem ao nome de batismo e o codinome da mulher de Terra na clandestinidade.
— Terra tinha muito medo de ser preso. Agora ele não gosta que fale essas coisas, mas era comunista. Se não me engano, fugiu no dia da formatura e só pegou o diploma muito depois — conta Anderson de Barros Abreu, contemporâneo do ministro na faculdade e hoje presidente da associação de ex-alunos.
Em Buenos Aires, Terra passou a clinicar no bairro popular Once e se uniu a um núcleo do PCdoB, participando de cursos de marxismo ministrado por Diógenes Arruda ao lado de outros militantes históricos do partido, como Raul Carrion e Renato Rabelo.
— Votei no Osmar, pedi votos para ele, sempre apoiei e estive próximo. A decepção é muito grande. É lamentável ver pessoas como ele jogando sua história para o alto para ficar se aproveitando de nacos do poder — comenta João Carlos Bona Garcia, um dos fundadores do MDB gaúcho e um dos poucos a se manifestar publicamente sobre o ministro.
Relação com Temer apagada para vencer desconfianças
Após um ano e meio de exílio, Osmar Terra e a companheira na época, Mônica, voltaram a Porto Alegre. Na Capital, ele trabalhou no Instituto de Cardiologia e dava plantão no Hospital da Associação dos Funcionários Municipais, onde conheceu um médico paulista de poucas palavras e gestos suspeitos.
— Ele insistia em oferecer carona num fusca amarelo que tinha, mas eu guardava meu endereço sob segredo absoluto. Afinal, também estava escondido. Toda vez que a gente chegava perto de casa, eu arranjava uma desculpa e descia duas quadras antes. Achava que ele era militar. Só fomos nos revelar um ao outro muito anos depois, já no Congresso —conta o deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP), habitué dos almoços que Terra oferecia no Ministério do Desenvolvimento Social durante o governo Michel Temer.
Preocupado em ser descoberto em Porto Alegre, Terra foi para o Interior. Por meio de uma prima, Ana Terra, acabou se refugiando em Santa Rosa, onde abriu um consultório. Era 1976 e, com apenas 12 médicos atuando na cidade, os negócios prosperaram, sem o casal deixar de lado a vocação social: Mônica começou a trabalhar na Apae e ele ajudou a montar a creche Mãe Operária.
O médico se manteve longe da política, mas não tardou a participar das reuniões do sindicato da categoria, tornando-se dirigente regional. Em 1986, já filiado ao MDB e servidor concursado do então Inamps (hoje INSS), viu uma greve dos residentes implodir a direção do órgão. Fez campanha pelo cargo e acabou nomeado à chefia da superintendência, onde integrou o movimento pela reforma sanitária e, ao lado de antigos militantes do PCdoB e da esquerda emedebista, ajudou a moldar o conceito do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988. No mesmo ano, perdeu a eleição pela prefeitura de Santa Rosa.
Terra venceu em 1992, fez da gestão municipal vitrine e enfileirou cargos públicos em sequência, de chefe de gabinete do governador Antônio Britto a secretário-executivo do Comunidade Solidária, assessorando a então primeira-dama Ruth Cardoso.
A partir de 2003, à frente da Secretaria Estadual da Saúde, Terra transformou sua preocupação com a saúde infantil em política de Estado. Inspirado no programa cubano Educa a Tu Hijo, trouxe técnicos do país caribenho e criou o Primeira Infância Melhor, uma política de atenção a recém-nascidos que reduziu a mortalidade infantil. Reproduzido em nível federal sob o nome de Criança Feliz, é o maior programa do mundo de visitação domiciliar para o desenvolvimento de bebês, granjeando prêmios e prestígio internacional.
Nos últimos meses, o ministro evita dar ênfase à origem da iniciativa, no governo Michel Temer. Há uma preocupação, sobretudo, em evitar a publicação de fotos com a ex-primeira-dama Marcela. Agora próximo de Michelle Bolsonaro, o gaúcho teme perder o apoio dos radicais hospedados no Palácio do Planalto, sempre cismados de quem não faz parte do petit comité ideológico do presidente da República.
Aproximação
Com três mandatos sucessivos de deputado, Terra nunca foi amigo de Jair Bolsonaro. Na Câmara, atuava com independência dentro do MDB, enfrentando com galhardia os anos de hegemonia petista. Em 2013, num ato de rebeldia interna, concorreu contra o então todo-poderoso Eduardo Cunha (RJ) na disputa pela liderança da sigla. Perdeu, mas dois anos depois estaria ao lado de Cunha ajudando no impeachment. Adotou um discurso cada vez mais anti-PT, aliou-se a Temer e cabalou votos contra Dilma Rousseff, monitorando diariamente mapas com placares do confronto.
Com Temer no Planalto, Terra achou que, enfim, realizaria o sonho de ser ministro da Saúde. Acabou à frente de uma pasta social, unindo num só ministério políticas de seguridade (INSS), transferência de renda (Bolsa Família) e reforma agrária (Incra). Equilibrando-se na dualidade que marcou o governo Temer, zerou pela primeira vez a fila de espera do Bolsa Família, mas viu a procura pelo programa crescer de novo ao sabor da forte recessão econômica.
Na eleição de 2018, temendo prejuízos nas urnas, Terra distanciou-se Temer e passou a flertar abertamente com Jair Bolsonaro. Levou a Santa Rosa o candidato a vice, Hamilton Mourão, e, em campanha para virar ministro, aproximou-se de Onyx Lorenzoni e Eduardo Bolsonaro. Apesar da desconfiança com que sempre foi visto pelo grupo próximo ao presidente, conquistou o Ministério da Cidadania, um combo que agrupou às políticas sociais as atribuições dos antigos ministérios da Cultura e do Esporte.
Simbiose de posições de olho em 2022
Sob a égide da nova direita, Osmar Terra colocou um general para cuidar do esporte e pediu sugestões sobre política cultural a Regina Duarte, Lobão e Alexandre Frota, de quem mais tarde se tornaria desafeto. Acentuou o discurso antidrogas, a ponto de censurar uma pesquisa da Fiocruz e ameaçar fechar a Anvisa caso o órgão tentasse liberar o plantio de maconha para fins medicinais.
Em pouco tempo, virou um polemista. Sempre chancelando declarações de Jair Bolsonaro, disse que não havia fome no país, que a epidemia de violência e drogas esvaziava as ruas de Copacabana e que metade dos filmes nacionais “não tem nem mil espectadores”.
Apesar do alinhamento à pauta ideológica do governo, persistiam as desconfianças do núcleo duro do Palácio do Planalto. Terra então aderiu ao conservadorismo moral. Alertado por um assessor, avisou Bolsonaro que a Ancine havia aprovado filmes com temática LGBT+ para receber incentivos públicos. O presidente estrilou.
Terra revogou o edital, causando a demissão do então secretário de Cultura, Henrique Pires. Em saída tumultuada, Pires disse que o ministro havia se tornado censor, inclusive com tentativa de reverter o resultado do prêmio Camões de Literatura, concedido em 2019 a Chico Buarque. Tanta confusão acabou levando o ministro aos tribunais. No início de outubro, a Justiça Federal abriu ação contra Terra e ordenou que o edital da Ancine fosse retomado. Ele recorreu, mas perdeu.
O período reservou outras derrotas para o ministro. Alvo constante da comunidade artística, Terra se incomodou ainda mais quando o diretor de Artes Cênicas da Funarte, Roberto Alvim, chamou de “sórdida” a atriz Fernanda Montenegro. Com a repercussão massiva do xingamento, Terra convidou Alvim para uma audiência com Bolsonaro na expectativa de obter apoio presidencial numa reprimenda ao dramaturgo. Deu tudo errado.
Diante de Bolsonaro, os dois elevaram a voz na troca de acusações, a ponto de preocupar os seguranças do palácio. Terra disse que havia gente do PSOL na equipe de Alvim, e o diretor respondeu culpando o ministro pela demora na troca dos nomes. O golpe final veio quando Alvim disse que o ministro havia dado cargo de chefia à irmã do jornalista Merval Pereira, da Globo. Enfurecido, o presidente encerrou a reunião ordenando a demissão imediata da servidora, oficializada por Terra no dia seguinte, em 2 de outubro.
O revide não tardou. Em nova portaria, desta vez publicada em 4 de outubro, o ministro exonerou 19 pessoas do Centro de Artes Cênicas da Funarte, deixando acéfalo o órgão. Revoltado, Alvim correu ao Planalto e foi recebido em agenda oficial por Bolsonaro. O imbróglio só teve fim cinco dias depois. Pressionado por um auxiliar do terceiro escalão, Terra se viu forçado a recuar, revogando as 19 exonerações.
Desde então, evitou novas polêmicas. No dia 18, embarcou para a China, onde acompanhou as competições dos Jogos Mundiais Militares e participou da cerimônia de entrega de medalhas aos atletas brasileiros. Na última quinta-feira, estava na fila de autoridades que recepcionaram Bolsonaro. No país comunista, procura manter a simbiose com o chefe, estratégia para a próxima eleição, na qual quer disputar o governo do Estado.