Em entrevista a GaúchaZH na tarde desta quarta-feira (21), o secretário especial da Cultura, o gaúcho Henrique Pires, falou sobre sua saída do cargo. Pires critica atos que ele qualifica como censura praticados pelo governo federal, citando como exemplo os ataques à Ancine e ao setor audiovisual. Nesta quarta, foi oficializada a suspensão de um edital de séries para TVs públicas criticado pelo presidente Jair Bolsonaro por envolver produções de tema LGBT.
Já o ministro da Cidadania, Osmar Terra, pasta à qual a Secretaria Especial da Cultura está vinculada, afirma que foi sua a decisão de demitir Pires "por entender que ele não estava desempenhando as políticas propostas pela pasta", e que ele não havia manifestado discordâncias até então (leia na íntegra a nota de Terra).
Leia, a seguir, a entrevista com Henrique Pires, que deve ter sua saída publicada na quinta-feira (22) no Diário Oficial da União.
Como se deu a saída do cargo?
Foi de comum acordo com o ministro Osmar Terra (ministro da Cidadania, pasta à qual está vinculada a Secretaria Especial da Cultura). Reconheço que neste momento não sou a pessoa adequada ao cargo, tendo em vista o fato de eu colocar como prioridade o não cerceamento da cultura. Não entendo que filtros sejam possíveis em qualquer tipo de atividade cultural, e o artigo 220 da Constituição me diz exatamente isso. Estando desafinado (com o governo), não posso em hipótese alguma permanecer. A gente está conseguindo avançar em muitos temas, mas lamentavelmente essa polêmica envolvendo a suspensão de um edital de filmes em curso por conta de uma temática que desagrada algumas pessoas, não concordo. Se eu permaneço, eu chancelo, e não posso chancelar isso.
Antes desse episódio, houve outras situações dentro do governo que o descontentaram?
Até aqui a gente vinha conseguindo trabalhar de uma maneira conciliadora, passar por obstáculos que foram efetivamente vencidos. Mas houve alguns momentos bastante complicados, e as coisas se agravaram. Chegaram num ponto em que não dá mais para ir adiante. Quando o Supremo Tribunal Federal decide — e isso eu disse publicamente — que homofobia é crime igual a racismo, não posso chancelar qualquer tipo de atitude que possa ir nesse sentido.
Os ataques à Ancine, por exemplo?
A grande questão envolvendo a Ancine e o cinema, que foi a gota d'água desse processo todo... Em primeiro lugar, a Ancine é uma agência reguladora, assim como as outras agências reguladoras que têm independência, e não pode ser alvo de tantos ataques.
O cinema é muito importante como indústria. É possível que se faça ajuste aqui e ali, mas não no nível que estão querendo. Não posso ir adiante nesse sentido. O ministro Osmar (Terra) acha diferente. Eu respeito. Como ele é ministro, e eu sou o secretário especial, agradeci muito a confiança dele, a gentileza de me convidar para ser o secretário nacional da Cultura, e peguei meu boné. Deve sair no Diário Oficial amanhã.
Como o senhor avalia os ataques à cultura?
Na verdade, existe uma expectativa muito grande de dirigir questões culturais no país. É um cartaz que é vetado em São Paulo, é um filme que deixa de ser exibido. O país tem lei para isso, tem classificação indicativa, tem horário, ingresso que a pessoa paga. Até acho que o presidente é um homem sério, um homem simples e mal informado a respeito de certas questões. Tanto que ele muitas vezes volta atrás por conta da informação errada que lhe passaram. É uma pena não poder dizer para ele algumas coisas. Mas quem deveria dizer não diz. Infelizmente, estou saindo antes da hora, não pretendia interromper nesse momento minha trajetória aqui. Mas se eu permanecer, estarei chancelando uma coisa com a qual não concordo. Como eu estou desafinado, e o ministro Osmar está bastante afinado com essa ideia de colocar filtro na cultura, eu estou fora.
Houve desentendimento entre o senhor e o ministro Osmar Terra?
Não. Foi uma conversa muito civilizada ontem (terça-feira, 20) à tarde. Ele inclusive me convidou se eu quisesse assumir algum outro cargo no Rio de Janeiro, me ofereceu duas ou três opções. Eu disse: "Olha, ministro, não tenho plano B". É preciso estar alerta para essas ameaças que estão sendo colocadas publicamente contra a liberdade de expressão.
Que legado o senhor deixa na Secretaria Especial da Cultura?
São quase R$ 6 milhões aplicados no Margs (Museu de Arte do Rio Grande do Sul) para a climatização e o conserto do torreão. Conseguimos manter as obras do Theatro Sete de Abril e garantir que R$ 7 milhões fossem aplicados agora. Consegui nesses sete meses garantir a salvaguarda da memória da Biblioteca Nacional, um prédio com cinco andares que está sendo restaurado no porto do Rio de Janeiro, quase R$ 30 milhões. Consegui colocar de pé, graças ao Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça, um prédio que está sendo feito na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Apesar do contingenciamento, graças ao trabalho dos técnicos da cultura, a gente conseguiu buscar outras fontes de financiamento que não são as orçamentárias clássicas. Sem dúvida alguma, a grande fonte neste ano para nós foi o Fundo dos Direitos Difusos do Ministério da Justiça, que estava contingenciado há muitos anos e foi descontingenciado. Inclusive graças ao ministro Sergio Moro, que foi muito diligente no sentido de disponibilizar para restaurações e atividades os recursos desses acordos judiciais. Sou do conselho do Fundo e conseguimos colocar no nosso orçamento quase R$ 300 milhões em coisas concretas que estão andando. Basicamente, restauração de patrimônio histórico.
O senhor já tem plano para seu período depois do governo?
Não, porque não estou saindo de um lugar para ir para outro lugar. Estou saindo de um lugar por estar desafinado com aquilo que os líderes que tratam dessas temáticas preconizam. Censura, para mim, não. Não pode censurar a arte. Isso está na lei. Agora vão chamar de filtro. Chame como quiser. Como diria Shakespeare, uma rosa, se tivesse outro nome, cheiraria igual. Não admito cerceamento à liberdade de expressão.
Como o senhor avalia sua experiência no governo?
Foi uma experiência maravilhosa porque eu pude aprofundar temas que não conhecia tão profundamente. Conheci pessoas espetaculares do Brasil inteiro e trabalhei com gente muito legal. Muitos que, infelizmente, não podem ter a atitude que eu estou tendo. Diversas vezes, em diversos lugares, eu ouvi relatos de pessoas completamente desconfortáveis com a tentativa de cerceamento à liberdade de expressão.