Assim que conseguiu um estágio em uma unidade de assistência social ligada à prefeitura de Novo Hamburgo, Cátia Luz, 42 anos, decidiu que era a hora de largar o Bolsa Família. Depois de cinco anos tendo R$ 80 depositados todo o mês em sua conta da Caixa, usados para comprar alimento ou substituir o gás de cozinha, riscou o seu nome do cadastro, em 2014, ao deixar de atualizá-lo.
– Tinha conseguido emprego e, economizando aqui e ali, dava para viver – conta Cátia, que, à época, recebia salário de R$ 998.
Mãe de três filhos, a moradora de Novo Hamburgo faz parte de uma realidade cada vez mais comum no Rio Grande do Sul: a de pessoas que pararam de receber o benefício criado para romper o ciclo de pobreza no país. Por deixar de atualizar dados, descumprir critérios, sair de modo voluntário ou ser barrado pela penúria fiscal, o gaúcho está menos assistido pelo Bolsa Família.
Levantamento de GaúchaZH nos dados do Ministério da Cidadania mostra que a quantidade de pessoas que acessam o benefício só não é inferior ao ano seguinte a sua implementação. Quando analisadas as folhas de pagamento de agosto, em 2019, 349,2 mil lares do Estado receberam o pagamento, superando somente os 337,7 mil de 2005. Todos os meses, há famílias que entram e outras que saem do programa. Desde que atingiu o seu ápice, em 2012, o Bolsa Família encolheu 23% entre os gaúchos.
Filha de catadora de lixo, Cátia cursou Administração, na Unisinos, por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni), do governo federal, “com notas sempre acima de oito”, sublinha. Fez dezenas de cursos profissionalizantes, um pelo Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e, há dois anos, teve a carteira assinada ao ser contratada por uma associação beneficente de Novo Hamburgo. Hoje, cursa pós-graduação.
– Quando a minha família saiu, abrimos a possibilidade para que outras entrassem no programa – diz Cátia, de camisa polo e terninho no escritório onde trabalha, no bairro Industrial.
Para a prefeita de Novo Hamburgo, Fátima Daudt (PSDB), a oferta de cursos a moradores que nunca tiveram acesso a qualquer treinamento gestou os dissidentes do Bolsa Família, a exemplo de Cátia. O Cadastro Único, instrumento responsável pela coleta de dados de famílias de baixa renda para incluí-las em programas sociais, é a entrada para outros benefícios, como iniciativas de qualificação profissional.
– Temos trabalhado com oficinas de manicure, cabeleireiro e técnico em comércio que começaram a inserir pessoas em situação de vulnerabilidade no mercado de trabalho – analisa Fátima.
Desde 2014, segundo dados disponíveis mais recentes, o saldo entre novos benefícios concedidos e cancelados tem sido negativo no Rio Grande do Sul. De janeiro a agosto de 2019, 67,2 mil casas deixaram de ter o pagamento, enquanto 41,4 mil passaram a recebê-lo. Por causa da penúria fiscal, o programa não tem dado conta de absorver no mesmo ritmo potenciais beneficiários – em 2017, a extrema pobreza avançou para 3,4% da população gaúcha, chegando a 383,7 mil pessoas. Em recente reunião no Congresso, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, admitiu que tem gente ficando de fora.
– Está voltando a fila de novo em função da nossa dificuldade orçamentária – disse Terra.
Procurado, o governo federal não informou quantas pessoas estão aguardando o benefício – situação que ocorre quando a resposta ao pedido demora mais de 45 dias. A coordenadora do Cadastro Único no Estado, Rosemary Fanfa, confirma que há espera no Rio Grande do Sul, mas sem apresentar dados. Em nota, o Ministério da Cidadania informou que “a concessão de novos benefícios depende da quantidade e famílias habilitadas para o programa e estratégias de gestão da folha”. Já o Ministério da Economia estuda aumentar o orçamento para zerar a fila.
Redução de recursos preocupa especialista
O encolhimento do Bolsa Família no Rio Grande do Sul aconteceu na contramão da crise, que lançou 146 mil gaúchos no hiato do desemprego nos últimos seis anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mesmo que o programa se direcione a pessoas extremamente vulneráveis, sem incidir diretamente sobre a desocupação, a queda na concessão dos pagamentos acende um alerta, segundo especialistas.
Tido como uma das principais autoridades em desigualdade social no país, Marcelo Neri afirma que o programa deveria estar em movimento de ampliação. Um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) Social, dirigida pelo economista, mostra o resultado categórico do programa na economia – a cada R$ 1 investido no Bolsa Família, R$ 1,78 são convertidos para o PIB.
– Desde o início da crise, o programa foi usado com certa moderação. Ele ajudaria a evitar o aumento da pobreza e a fazer a roda da economia girar, sem causar grandes impactos fiscais. O recuo é preocupante – diz Neri.
Hoje, o Bolsa Família está no limite. Até agosto, o programa havia consumido quase um quarto dos R$ 29,5 bilhões reservados para este ano. Para 2020, o orçamento será o mesmo de 2019 – na prática, o congelamento representa corte, uma vez que não haverá correção pela inflação.
– Nesse período de grande recessão e desigualdade, houve enxugamento, dando a mensagem de que a rede de assistência social foi diminuída – avalia Neri.
Uma promessa de compensar as perdas – o último reajuste dos pagamentos foi em maio de 2018 – ocorreu em abril, quando o presidente Jair Bolsonaro anunciou o 13º salário aos beneficiários. O pagamento se dará por uma medida provisória, mas que ainda não foi assinada pelo presidente. Segundo o Ministério da Cidadania, o suplemento deve se confirmar nas próximas semanas, mesmo diante do orçamento apertado.
Para a professora do programa de pós-graduação em economia da PUCRS, Izete Bagolin, o Bolsa Família deveria ser a última alternativa a ser suprimida, mesmo em meio ao ajuste fiscal.
– O governo vem fazendo cortes, mas não parece ter incluído pessoas com necessidades. Em governos com preocupação social, se aumenta a concessão de benefícios em momentos de crise. Mas essa não parece ser uma prioridade – argumenta Izete.
"Parece pouco, mas representa tanto"
Desde que a crise se instalou no país, o Bolsa Família ficou estável ou caiu em nove dos 10 municípios mais ricos do Rio Grande do Sul. Gravataí, na Região Metropolitana, foi o único fora da curva. De 2013 para cá, o número de lares contemplados saltou de 6,3 mil para mais de 9,8 mil, aumento de 56%.
Nesse grupo em ascendência está Rejane Amaral, 51 anos. Desempregada, entrou para o cadastro há pouco mais de um ano. Recebe R$ 91 por mês, que "parece pouquinho", mas "representa tanto", segundo ela:
– É uma gota d'água quando se está morrendo de sede, sabe?
Rejane divide uma casa alugada, feita de alvenaria e madeira, com uma irmã e uma sobrinha. Dorme em um colchão na sala, que, durante o dia, acomoda em cima de um armário por causa da falta de espaço. Ex-servidora pública, a desempregada sofreu revés que a levou a recorrer à assistência.
– Sou cria da crise – resume.
Após pedir demissão do cargo público, se formou técnica em meio ambiente e partiu em um voo para Aracruz, município capixaba de 100 mil habitantes. No Espírito Santo, tinha a promessa de emprego na Sete Brasil, empresa criada para explorar a camada de pré-sal: em uma plataforma de petróleo, trabalharia 15 dias ininterruptos para outros 15 de folga.
Mas a empresa foi implicada na Operação Lava-Jato e o trabalho nunca apareceu. Após dois anos fazendo bicos de faxineira por lá, retornou a Gravataí para recomeçar. Sem renda, viu no programa um primeiro passo.
– Dizia: "meu Deus do céu, como posso estar recebendo o Bolsa Família?". Mas, ao mesmo tempo, dá uma ajuda para respirar em um momento que se está passando por dificuldade – comenta a mulher sorrindo, sem perder o bom humor.
Ao acompanhar o aumento da assistência em Gravataí, Rejane passou a representar um novo segmento do Bolsa Família. São pessoas que perderam tudo por causa da crise e que têm o pagamento como uma espécie de seguro-desemprego – benefício pago somente por cinco meses – durante a procura por uma oportunidade.
– Sem o benefício, hoje, muita gente não tem com o que viver – avalia a secretária-adjunta da Família, Cidadania e Assistência Social de Gravataí, Joice Michels.
Para além da recessão, a secretária menciona outra causa para o aumento dos pagamentos no município, relacionado à capilarização dos centros de atendimento às famílias. Havia somente um ponto para o cadastramento, no Centro, até que, em 2013, outros quatro foram inaugurados, em áreas periféricas.
Mudanças previstas têm foco na infância
Marca da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Bolsa Família está em análise pela equipe econômica do presidente Jair Bolsonaro. Para se distanciar do legado petista, o atual governo quer implementar a sua cara no programa social.
Um estudo encomendado ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) prevê a mais profunda mudança, incluindo o aumento de pessoas assistidas e a unificação de outros benefícios. O trabalho propõe a supressão de benefícios às pessoas de maior renda e aposta em incentivo que seria pago a todas as crianças e adolescentes brasileiros, independente da classe social.
Em resumo, o Bolsa Família seria unificado a outros três benefícios: abono salarial, salário-família e dedução por dependente no Imposto de Renda (IR). Além disso, aumentaria o número de pessoas atingidas dos atuais 80 milhões para 92 milhões, mantendo o orçamento anual de R$ 52 bilhões dos quatro programas.
Pelo estudo, o abono salarial e o desconto no IR seriam cortados. Em compensação, um benefício universal de R$ 45 para brasileiros de até 18 anos seria criado, aliado a pagamento para famílias com renda per capita mensal de R$ 250. Haveria, ainda, incentivos para lares com crianças de zero a quatro anos de idade e um repasse extra para famílias em situação de extrema pobreza.
Pesquisador do Ipea responsável pelo estudo, Sergei Soares afirma que o modelo do Bolsa Família seria mantido, adotando um cadastro único para o pagamento de todos os benefícios. Ele calcula que, ao direcionar o foco para a infância, o programa seria capaz de dobrar o impacto sobre a desigualdade.
– Hoje, programas não se comunicam, cada um tem seu cadastro, seu método de pagamento e seu órgão. A política para vulneráveis à pobreza é um verdadeiro Frankenstein – diz Soares.
Até o momento, o tema é discutido só pela equipe econômica de Bolsonaro. Segundo o Ministério da Cidadania, nenhuma mudança será implantada neste ano.
Situação atual e o que pode ser alterado
Como é hoje
O benefício básico é concedido para famílias em extrema pobreza (com renda mensal de até R$ 89 por pessoa). O auxílio é de R$ 89 por mês. Há benefícios variáveis (com limite de cinco pessoas nas categorias):
– R$ 41 a cada criança de zero a 15 anos.
– R$ 41 a cada bebê de zero a 6 meses.
– R$ 41 para cada mulher amamentando.
– R$ 41 para cada gestante.
– R$ 48 para cada adolescente de 16 e 17 anos.
Famílias extremamente pobres também recebem R$ 89, que se somam aos recursos variáveis.
Como seria
O Bolsa Família seria unificado a outros três benefícios: abono salarial, dedução de dependente no Imposto de Renda e salário-família.
– Abono salarial: pagamento anual de um salário mínimo para trabalhadores que recebem de um a dois salários mínimos.
– Dedução de dependente no Imposto de Renda: desconto de até R$ 2.275 a cada dependente.
Salário família
– R$ 32 mensais a cada filho de até 14 anos para trabalhadores que recebem até R$ 1.319.
– R$ 45 para cada criança ou adolescente para todas as famílias, independentemente da renda.
– R$ 90 para cada criança de até quatro anos para famílias com renda de até R$ 250 por pessoa.
– R$ 1 a R$ 89 para cada criança de até quatro anos para famílias com renda de R$ 251 a R$ 430 por pessoa.
–R$ 1 a R$ 44 para famílias extremamente pobres, com renda de até R$ 89 por pessoa.