Crítico contumaz do que chama de aparelhamento do Estado em governos anteriores e pivô de polêmicas com a Anvisa e a Ancine, o presidente Jair Bolsonaro poderá substituir, até o fim de sua gestão, a diretoria completa de todas as agências reguladoras do país. Embora a lei exija aprovação prévia pelo Senado, os indicados são de livre escolha do presidente, sem necessidade de obediência a listas.
Responsáveis por fiscalizar e normatizar atividades que envolvem investimentos bilionários e operadores estrangeiros, em setores que vão da mineração à cultura, das telecomunicações à energia, as agências têm autonomia operacional. Com mandato estipulado, seus diretores não podem ser demitidos. São 52 cargos de chefia em 11 órgãos. Atualmente, oito postos estão vagos. Bolsonaro já nomeou duas pessoas e as restantes encerram gestões até o final de 2022.
Um dos indicados pelo presidente foi justamente quem protagonizou um dos embates mais caros ao governo. Empossado na Anvisa em agosto, Antônio Barra Torres redigiu o voto vencedor no julgamento que terça-feira decidiu proibir o cultivo de maconha para fins medicinais no país. Médico e ex-diretor do Centro de Perícias Médicas da Marinha, o militar fez duras críticas à forma como a discussão foi conduzida pela agência e apontou supostas fragilidades técnicas e de segurança.
A explanação acabou isolando no colegiado o atual presidente da Anvisa, William Dib, único dos quatro diretores presentes a votar favorável à liberação da plantação de cannabis. Dias antes, um dos dirigentes simpáticos à ideia, Renato Porto havia renunciado ao cargo.
O mandato de Dib se encerra em 26 de dezembro e ele será substituído na presidência justamente por Torres. Prerrogativas do presidente da República, as nomeações para agências também geraram controvérsias em governos anteriores.
— As agências são fundamentais para assegurar o bom funcionamento de setores importantes da economia. Claro que o governo tem legitimidade para impor sua plataforma e a diferença entre uma indicação técnica e uma política às vezes é cinzenta. Existem riscos de perda de independência e uma intervenção do governo pode afastar investidores — salienta o consultor Fabiano Angélico, especialista em transparência e integridade no setor público.
A Ancine está praticamente parada desde agosto, quando decreto de Bolsonaro afastou o presidente Christian de Castro em obediência a decisão judicial. Nomeado por Michel Temer, Castro foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por estelionato e falsidade ideológica. Com quatro cargos de direção, a Ancine tem hoje somente um dirigente atuando, Alex Braga Muniz, cujo mandato se encerra em 2021.
Reflexos
Por causa das lacunas, a agência está engessada e sem realizar reuniões de diretoria. Em setembro, às vésperas do fim do mandato de outra diretora, Débora Ivanov, ela e Muniz assinaram portaria permitindo ao derradeiro diretor aprovar projetos e liberar recursos. Foi a forma encontrada para evitar paralisia total do órgão que cuida do mercado audiovisual brasileiro, gerenciando os R$ 724 milhões orçados para este ano no Fundo Setorial do Audiovisual.
Usada para financiar filmes e séries, essa verba está aos cuidados do colunista social Edilásio Barra, o Tutuca, nomeado em outubro pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra. Crítico de produções LGBT+ financiadas pela Ancine, o ministro virou alvo de ação do MPF por suposta improbidade administrativa após suspender um edital da agência voltado à temática gay.
Nos últimos dias, a Ancine retirou do seu site informações sobre filmes nacionais e removeu mais de cem cartazes de produções nacionais, abrangendo filmes premiados e lançamentos. Nos bastidores do governo, comenta-se que Bolsonaro quer alguém “terrivelmente evangélico” para o órgão, a exemplo do que já afirmou ser o perfil de sua indicação para o Supremo Tribunal Federal.
Quais são as regras
- Oito postos estão vagos
- Dois diretores foram nomeados em 2019
- Dois mandatos se encerram em 2019
- 13 mandatos se encerram em 2020
- 10 mandatos se encerram em 2021
- 17 mandatos se encerram em 2022
As exigências
Para ser indicado à diretoria de uma agência, é preciso ter formação acadêmica compatível com o cargo e experiência profissional de no mínimo 10 anos no setor público ou privado, no campo de atividade da agência reguladora ou em área a ela conexa, em função de direção superior, ou quatro anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos: direção ou chefia superior em empresa no campo de atividade da agência reguladora, cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior no setor público, cargo de docente ou de pesquisador no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa ou ainda 10 anos como profissional liberal no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa.
Indicações proibidas
- Ministro, secretário estadual, municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciado dos cargos.
- Quem tenha atuado, nos últimos três anos como dirigente partido político ou em trabalho vinculado à organização, estruturação e realização de campanha eleitoral.
- Quem exerça cargo em organização sindical.
- Quem tenha participação, direta ou indireta, em empresa ou entidade que atue no setor sujeito à regulação da agência ou que tenha matéria ou ato submetido à apreciação do órgão.
- Membro de conselho ou de diretoria de associação, regional ou nacional, representativa de interesses patronais ou trabalhistas ligados às atividades da agência.
Substituições no Judiciário e em universidades
Para além das agências reguladoras, até o final do seu mandato o presidente Jair Bolsonaro poderá nomear 10 ministros para a cúpula do Judiciário e todos os 63 reitores das instituições federais de ensino. No topo do sistema judicial, a aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade forçará a abertura de duas vagas no Supremo Tribunal Federal (STF), duas no Superior Tribunal de Justiça (STJ), duas no Tribunal Superior do Trabalho (TST) e quatro no Superior Tribunal Militar (STM).
O presidente só pode escolher livremente os ministros do STF, submetidos à chancela do Senado. Na campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a flertar com a ideia de ampliar de 11 para 21 o número de assentos na Corte. Houve reação e ele recuou. Agora, fala em escolher um jurista de perfil conservador.
Nos demais tribunais, é obrigatório obedecer às listas tríplices, o que diminui a ingerência. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável pela organização das eleições e pelos julgamentos das contas partidárias e de campanha, eventual interferência do governo é praticamente nula. Dos sete integrantes, três são ministros do STF e dois do STJ, todos atuando em rodízio. As duas vagas restantes são de advogados indicados pelo STF e definidos pela Presidência.
Nas universidades, alvo de constantes críticas de Bolsonaro e de seus auxiliares, o presidente chegará ao final de 2022 tendo nomeado todos os reitores. A despeito das polêmicas, até agora tem sido respeitada a democracia interna. Dos 16 dirigentes nomeados, oito ficaram em primeiro lugar nas eleições, incluindo instituições com forte protagonismo político. Outros cinco reitores integravam as listas tríplices, sendo quatro terceiros colocados e um segundo. Nos três casos restantes, os dirigentes nomeados são temporários em razão da judicialização da disputa.
— As universidades têm autonomia administrativa e didático-científica, então é natural que também tenham autonomia para escolher seus diretores. Não somos uma repartição. Um único caso de nomeação que não seja do primeiro colocado já é um desrespeito — comenta o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o reitor João Carlos Salles Pires da Silva.
As vagas em tribunais
Supremo Tribunal Federal
- Celso de Mello: Novembro de 2020
- Marco Aurélio Mello: Julho de 2021
Superior Tribunal de Justiça
- Napoleão Nunes Maia Filho: Dezembro de 2020
- Félix Fischer: Agosto de 2022
Tribunal Superior do Trabalho
- Renato de Lacerda Paiva: Setembro de 2022
- Emmanoel Pereira: Outubro de 2022
Superior Tribunal Militar
- William de Oliveira Barros: Outubro de 2020
- Alvaro Luiz Pinto: Maio de 2020
- Luis Carlos Gomes Mattos: Julho de 2022
- Marcus Vinicius Oliveira dos Santos: Fevereiro de 2022